Dossiê Territórios| ano 3, n. 6, 2016 |
EDITORIAL | Susana Dias, Carolina Rodrigues e Ana Godoy
Os artigos, ensaios, resenha e produções audiovisuais de pesquisadores e artistas brasileiros e estrangeiros, que compõem este sexto dossiê da ClimaCom, vêm para contribuir com a politização desse conceito quando o assunto são as mudanças climáticas. São textos, filmes, ensaios fotográficos, séries de experimentações sonoras que aceitaram o convite de deslocamento da pergunta que domina as agendas nacionais e internacionais – “quais os impactos que as mudanças climáticas provocarão sobre os territórios X, Y e Z?” – para outras questões de natureza avaliativa e especulativa: e se os territórios não se reduzissem apenas a uma base ou fundo fixo e inerte sobre o qual os seres-coisas do mundo agem e os eventos ocorrem, um meio previamente dado ao qual temos que nos adaptar?
E se o problema do território não fosse só o de demarcação e distribuição de fronteiras, formas, propriedades e estados de coisas, mas também de experimentação de povoamentos múltiplos, de cooperativismo e composições aberrantes entre seres-coisas-elementos do mundo? Que outros territórios do pensar e do existir poderiam ganhar expressão, lugar e potência se nos precipitássemos para além das habituais oposições entre tempo e espaço, global e local, fora e dentro, real e virtual, poder e combate, humanos e não humanos, sujeito e objeto, mundo e linguagem? Que novos modos de habitar um mundo comum poderiam proliferar se migrássemos das escalas demasiado humanas, se deixássemos as fadigas que nos compõem como humanos, que terminam por definir nossas lutas em função dos dispositivos da espera e da dívida infinitas? E se inventássemos outras escutas para os gritos abafados de populações de seres-coisas-do-mundo – desde os já extintos aos ameaçados de perderem seus refúgios –, insistindo numa escuta não familiar, que fuja à doutrinação e ao controle que marcam as gramáticas dominantes do pensamento? E se…?
Ressoando fortemente essas indagações, na seção Pesquisa emergem os mais distintos territórios em diferentes pensamentos e modos de viver que fazem o contemporâneo se dobrar em múltiplos mundos e humanidades. Os artigos reunidos neste dossiê des-consistem e tornam contingente o Território, propondo adentrar práticas políticas e cosmopolíticas, ontologias relacionais, perspectivas de mundos (e não sobre o Mundo), mitologias e especulações que movimentam intensamente o pensamento.
A partir da coedição de Renato Rodrigues e Stoécio Maia, da subrede Agricultura, da Rede Clima, contamos com o artigo de Édson Bolfe, Daniela Lopes e Elisio Contini cuja proposta é mapear as concepções de território que informam a implementação, execução e avaliação de políticas públicas rurais no Brasil. Para os autores, repensar o território exige reconsiderar a própria concepção de escala em sua conexão com inovações tecnológicas e práticas agrícolas. O desafio de se conceber novos modos de pensar e agir em contextos marcados pelo problema da escala – ou da escala como um problema – também é abordado no ensaio de Bruno Massara. Desta vez, em vez das políticas rurais, os territórios aparecem em sua relação com os estudos dedicados aos espaços urbanos.
Já no artigo de Arturo Escobar, apresenta-se a luta pelo direito ao território na América Latina, que não se restringe à reivindicação pelo direito de propriedade, mas torna-se a defesa do direito à vida na filosofia política dos territórios afrodescendentes do chamado Pacífico colombiano. Na colaboração de Cleber Lambert, identidade, alteridade e relação constituem linhas de força continuamente agenciadas em diferentes configurações cosmopolíticas. Ao propor uma passagem dos “marcadores sociais da diferença” para os “marcadores cosmológicos da diferença”, Lambert repensa o próprio conceito de política e um de seus principais enunciados: a de que ela se restringe, de modo narcísico, aos humanos entre si. Instigante notar, neste sentido, que boa parte dos trabalhos desse dossiê compartilham o suposto de que a força que sustenta a colonialidade do saber/poder são as relações antropocêntricas tecidas em certas lógicas que querem ocupar os territórios do pensar.
Neste sentido, com o trabalho de Alexandre Nodari, institui-se um território em que uma antropologia, em aliança com a literatura, prefere não ser tão antropocêntrica e dedicar-se aos encontros e relações entre mundos diferentes: os atuais e os virtuais, os existentes e os inexistentes. Trata-se da proposta de uma antropologia especulativa que deseja habitar os territórios que nascem desses interstícios. Deles podem emergir deuses, como no artigo de Paola Zordan: personagens conceituais que se espalham pela Terra concebida como plano de imanência. Mitologias que, em vez de representações, expressam forças da vida, do caos e as potências das artes e do pensamento.
Com a contribuição de Stelio Marras, a divulgação científica pode tornar-se um território de incertezas ao ser efetivamente afetada pelas incertezas constitutivas das próprias práticas científicas. E, por que não, da própria vida. Forças de vida desenterradas, com palavras, das grossas camadas de sedimentos que compõem as lógicas dominantes de pensamento. Tal procedimento compõe a experimentação literária Desesterro, de Sheyla Smanioto, apresentada numa resenha de Renato Oliveira.
A Seção Jornalismo, por sua vez, traz uma coluna assinada por Lorena Regattieri. Nela, a politização do conceito de território advém da resistência tornada rexistência em experiências e histórias de luta que podem vir a compor uma frente: a do povo porvir. Povo que nasce da aposta em alianças impensadas e na máxima diferenciação, como modo de se alimentar a confiança em tempos de Antropoceno e sua propagação da sensação de impotência.
E com experimentações de artistas de diversas partes do mundo a Seção de Arte da ClimaCom afirma-se, uma vez mais, como um espaço-tempo de produção de novos territórios do pensar e sentir, indispensáveis nestes “momentos assustadores, tristes e inquietantes” que vivemos, como define a bailarina Lia Rodrigues ao nos apresentar, com texto e fotografias, o trabalho de dança “Para que o céu não caia”, desenvolvido no Complexo da Maré no Rio de Janeiro. Dançar como gesto de criar um delicado, cintilante e móvel contorno político para a noção de resistência, diante do que convoca o mito do fim do mundo, relatado pelo xamã Yanomami Davi Kopenawa, ao colocar em cena corpos que parecem saídos de uma catástrofe de outra natureza, a da intensa conexão com a vida. Uma conexão que não está dada, antes precisa ser continuamente inventada.
E é esse incessante experimentar de uma espécie de derrame e invasão contínua entre a vida e a pintura, entre a natureza, a imaginação e a matéria, sem jamais se fundirem e fecharem numa identificação, nem produzirem uma correspondência, que J.D. Doria traz em “Material Cosmologies – the “Territory of the non yet’”, na qual a noção mesma de território é entendida como processo de diferenciação permanente e de cultivo do que ainda não é. E exatamente por essa abertura incessante é que se multiplicam infindavelmente as possibilidades de ser das coisas-seres do mundo.
E se os territórios não estão dados precisamos nos engajar na sua efetiva composição, cultivando novos modos de estar juntos, ou ainda, nas palavras e práticas de Faetusa Tezelli e Gabriela Leirias: cultivando Jardinalidades. Ali onde a cidade, o corpo, a terra e o pensamento são intensamente revolvidos e arejados por novas relações poéticas e políticas que abrem: à percepção de diferentes temporalidades, criam tensões vitais entre intervencionismo, produtividade e vagabundagem e convidam aos microexercícios do silêncio e da escuta. Instaurando, assim, uma espécie de aprendizado que se tece não apenas entre as pessoas, mas com os próprios terrenos abandonados, com as plantas que nascem espontânea e insistentemente.
E com as práticas artísticas o território emerge também não como o que se vê, mas como um chamado a ver, a inventar visões. Um constante desvio das ordenações e sistematizações do que a visão produz, uma atenção ao que se vê quando os olhos se fecham e aprendemos a sonhar acordados outros sonhos.
Em “Madeira à vista: o xilema me chama”, o pós-doutorando em botânica Peter Stoltenborg Groenendyk compartilha seu chamado por uma espécie de delírio das linhas e cores de imagens científicas, delírio que arrasta rios, mares e constelações inteiras para dentro das árvores. Um delírio que quer dar consistência a uma função desse tecido que não se restringe a sustentar as espécies vegetais, antes dá sustentação a infinitas relações entre espécies, entre o orgânico e o inorgânico. Sem dúvida um chamado a pensarmos que são as relações (inclusive entre ciências e artes) que permitem que algo no futuro se sustente.
E se há uma aposta de que ao inventar outros modos de dizer com as imagens que já circulam são gerados outros refúgios e novas possibilidades de vida para elas, há também apostas que nos interpelam com procedimentos de outra natureza: uma intervenção material nas visualidades já dadas, um rasgo e desmonte das lógicas já dadas. Como a que ganha vida na animação “Cores secas em imagens da ciência” de Fernanda Pestana e explode em “Estilhaços…” nas fotografias de Tatiana Plens.
Além dessas produções de Artes Visuais, a Seção de Arte da ClimaCom traz uma novidade, um segmento dedicado ao Cinema, ocupado pelo projeto NoctilucaScreen. Uma iniciativa em parceria com a revista Hambre | espacio cine experimental. “Noctiluca scintillans são faíscas de mar, pequenos seres bioluminescentes que produzem o mareel ou o Milky seas effect. Elas transformam o mar numa grande tela bioluminescente, numa grande tela não-humana”, como define o curador, o cineasta Sebastian Wiedemann que, para celebrar esta parceria, selecionou quatro filmes – Reign of Silence de Lukas Marxt, Balance de Christoph und Wolfgang Lauenstein, A film, reclaimed de Ana Vaz e Tristan Bera e Shape Shiftin de Elke Marhöfer e Mikhail Lylov. Filmes que criam um território comum para a problemática ambiental ao experimentá-la como uma problemática também do cinema, que exige à fulguração de novos estilos de vida das imagens e, certamente também, desafiam à cintilação de novos estilos de escrita, que tenham como destino o mar, as nuvens, a chuva, o vento…
“Territórios” traz também as diversas atividades desenvolvidas pelos pesquisadores da subrede Divulgação Científica e Mudanças Climáticas, produzidas e publicadas na seção Laboratório-Ateliê durante os últimos quatro meses, entre as quais destacamos a série de áudios “Derivas da catástrofe”, que resultou de um convite feito a professores e pesquisadores para uma travessia por dois territórios desérticos desenhados pelas perguntas: “Por que pensar com as ciências humanas, filosofia e artes as mudanças climáticas?”; “O que podem as ciências humanas, filosofia e artes em tempos de catástrofes?”. As atividades desta seção da revista acontecem nas ruas, escolas, museus, universidades, praças etc. e insistem em abrir a divulgação científica e as mudanças climáticas à experimentação coletiva. Todos os meses compartilhamos nossos processos de trabalho com as imagens, palavras e sons da ClimaCom apostando numa série de exercícios que propõem uma conexão com a vida. Processos que não pressupõem a vida como propriedade e atributo de seres e coisas de um mundo já formado, mas que assumem a libertação da vida como uma operação que cabe às imagens, às palavras, quando são tomadas como laboratórios de re-existências, de re-criação de mundos, em que o problema não é o mais o de comunicar estados de seres e coisas, mas o de entrar intimidade com os seres e coisas do mundo, de modo que imagens e palavras se tornem capazes de entrar em conexão conosco. Estas ações resultaram em todas as imagens que circulam na ClimaCom e estão disponíveis e abertas a para qualquer uso e manipulação.
Queremos lembrar que a revista ClimaCom está com chamada aberta para o dossiê “Incertezas” e em breve abrirá também a chamada para “Cartas e Catástrofes”. Este último será coeditado com Elenise Pires de Andrade (Uefs) e Érica Speglich (Unicamp), pesquisadoras da Subrede Divulgação Científica da Rede CLIMA.
Ressaltamos que, além de artigos, ensaios e resenhas inéditos, a revista aceita capítulos de teses e textos que tenham sido publicados apenas em Anais ou que foram publicados exclusivamente no exterior.
SUMÁRIO | DOSSIÊ TERRITÓRIOS
SEÇÃO PESQUISA
Artigos
Territórios & políticas públicas rurais
Édson Luis Bolfe, Daniela Biaggioni Lopes, Elisio Contini
Territórios de diferença: a ontologia política dos “direitos ao território”
Arturo Escobar
Uma só ou várias fontes cosmopolíticas?
Cleber Daniel Lambert da Silva
La literatura como antropología especulativa
Alexandre Nodar
Paola Zordan
Stelio Marras
Resenha
Renato Salgado de Melo Oliveira
Ensaio
Territórios: modos de entendê-los e agenciá-los nas metápolis
Bruno Massara
SEÇÃO ARTES
Cinema
Lukas Marxt
Christoph und Wolfgang Lauenstein
Elke Marhöfer in collaboration with Mikhail Lylov
Ana Vaz & Tristan Bera
Artes visuais
J.D Doria
Lia Rodrigues
Madeira à vista: o xilema me chama
Peter Stoltenborg Groenendyk
Jardinalidades: jardinagem como prática artística e criação de territorialidades
Faetusa Tezelli e Gabriela Leirias
Tatiana Plens
Fernanda Pestana