A casa da bruxa
Renato Salgado de Melo Oliveira[1]
Desesterro é o romance de estreia da escritora Sheyla Smanioto, e que já lhe rendeu o “Prêmio SESC de Literatura 2015”, categoria romance, e é finalista do “Prêmio São Paulo 2016”. O livro traz a história de quatro gerações de Marias que carregam em seus corpos as marcas da seca nordestina, da emigração para o sudeste, da violência doméstica, sexual, das favelas paulistas, da fome, das palavras, dos costumes e da própria História.
Romance em que emerge uma força que não é central, e sim rizomática; potente e avassaladora, mas não pelo poder e sim por uma sensibilidade estética do mundo que convoca em nós a fome, “Ler é: devorar a fome dos outros” (SMANIOTO, 2015: 297) nos diz Sheyla Smanioto em seu romance. Essa força é uma potência da escrita, uma escavação obsessiva e febril da sintaxe e da semântica que produz dentro da própria língua um estranhamento: que podemos chamar de feminino, ou bruxaria, ou frio, ou arqueologia… ou horror da fome.
Não se trata da representação da mulher, de sua questão identitária, as Marias valem menos pelos indivíduos que identificam do que pelas relações que agenciam. Sheyla Smanioto vai além da representatividade e constrói, a duros golpes de palavras, uma estética e uma sensibilidade feminina, pois como nos lembra Deleuze, mesmo para uma mulher o devir mulher não está dado, existem infinitas camadas do masculino, do branco, do heterossexual, enfim, de maioridades que repousam em cada uma das palavras que usamos no nosso cotidiano e que precisam ser raspadas para que se chegue a uma intensidade transformadora. Essa raspagem é um processo ritualístico que a autora produz através de sua escrita.
Sheyla Smanioto é uma bruxa, dessas que operam sortilégios e fazem pactos com forças ocultas, forças demoníacas como nos conta Blanchot (2005) a respeito da literatura. Não é ao acaso que as bruxas das antigas histórias falavam em rima, usando-se de cantos poéticos, pois a poesia é um instrumento da feitiçaria tanto quanto os caldeirões ou as varinhas. É preciso muita bruxaria (arqueologia? poesia?) para desenterrar cada uma das palavras que estão soterradas por grossas camadas de sedimentos, de História. É desse esforço de escavação, esforço ao mesmo tempo poético e historiográfico de que se trata o seu Desesterro: cavar, cavar com fome, com desespero, com febre, comer a terra removida em busca de uma saída, de uma nova possibilidade de construção de sentidos.
Por isso que o romance de Sheyla Smanioto não é uma narrativa factual histórica (apesar de profundamente coletiva), ou um romance de superação (talvez de desgaste), de lição de vida (apenas vida, sem lição?), ela não se dá a essa pobreza de espírito (me refiro aqui ao espírito das palavras). Trata-se, ao contrário disso tudo, de uma narrativa de terror, de bruxas que enxergam em um noturno silêncio, de criaturas-cães que latem à noite. Um desses textos que nos remete a Lovecraft em que o horror emerge de um amálgama insolúvel entre a loucura esquizofrênica e a presença devastadora e absoluta do horror, grande demais para ter contornos. Essa é uma criatura de lugares outros, soterrados: fundo do mar, espaço sideral, dimensões ocultas.
Assim temos algo de pavoroso (e libertador) nesse jeito que ela faz com as palavras. Essa coisa de desarrumá-las como se fosse para fazer com que dissessem o que não dizem quando estão arrumadas. Como quem as rouba das bocas de seus inimigos: os gramáticos, os historiadores, os inquisidores, os homens de poder que cospem em bom português. Rouba com a fome para produzir uma outra língua que seja heterodoxa, herética, um novo dicionário autônomo e temporário que não permite as palavras se esconderem em “estado de dicionário” (usando-me de um termo de Drummond):
TEMPO É: trem movido a cadáveres.
TREM É: fantasma fora dos trilhos
(SMANIOTO, 2015, p. 253).
Um dicionário onde as palavras não se apoiam mais apenas umas nas outras ou no sentido que adquiriram historicamente ao ponto dos poderes majoritários (o masculino, o branco, o heterossexual… o normativo) terem se convertido em senso comum, ou no uso comum dos sentidos. As Marias são todas loucas.
Entre tantas coisas a loucura é, também, a forma com que a sociedade privou os outros da palavra, no caso as mulheres. Existe uma faceta da loucura que desmerece antes mesmo da fala ser pronunciada o que será dito. Como o longo monólogo de Tonho, em Desesterro, no qual ele se coloca como vítima do estupro que cometeu contra Maria de Fátima, fazendo-se vítima da tentação e da sexualidade que ele próprio, na verdade, atribui à Fátima. Monólogo não por falar sozinho, pois é uma fala coletiva, do senso comum, familiar, do cotidiano, monólogo porque é unilateral, é silenciadora da voz de Fátima, de seu corpo e de seus desejos, que são apagados pela imposição do discurso de Tonho. Monólogo que silencia a vítima, produzindo uma febre, uma folie, no mundo, onde o opressor se torna a própria vítima, justamente porque levou às últimas consequências a negação da vítima do crime.
Essa loucura se repete diversas vezes ao longo do livro, como em outro caso de estupro, agora coletivo, que é o da Maria da Penha, mas há algo de comum em todos esses casos: uma disritmia entre as palavras e o mundo que abre espaço para o reino da loucura. Como dito anteriormente, a autora é uma bruxa, e captura esse jogo de sentidos para produzir uma mudança, uma transformação, fazendo retornar ao mundo a loucura que foi despejada nas palavras.
A bruxa percebe que a organização do discurso é uma forma de feitiço (de definir uma sensibilidade do real) que atende àqueles que têm o poder de pronunciar a palavra. Sendo assim é preciso se desfazer das falas que contrariam uma ordem de poder, uma maioridade, fazer com que as falas menores sejam consideradas “loucas”, desconectadas da razão, impossíveis de falar sobre o mundo. Pois o que faz Sheyla Smanioto é cavar o senso comum dessa fala normativa até que não sobre mais nada, tirar a terra e cada uma das pedras em busca dos escombros do mundo. Trazendo uma nova relação com a loucura: uma que transforme em palavras vivas as marcas dos corpos de mulheres esfomeadas, machucadas, estupradas, cheias de chagas. Buscando um novo encontro entre a fala da “louca” e o mundo, criando novos sentidos através das falas marginalizadas e silenciadas. Produzindo um corpo em mutação, que constantemente habita o entre da molaridade máxima da matéria e do molecular máximo dos fluxos de pensamentos, abolindo a oposição entre o molar e o molecular. Essa potência de construir uma fala da loucura, de tirá-la do silêncio condenatório é a que chamei de feminino no começo deste texto.
É a partir dessa experiência histórica e literária que se escreve o dicionário que está disperso ao longo de Desesterro. É preciso desenhar no chão, comer areia, ver com olhos de urubu, sentir com a fome (como se ela fosse um órgão e não uma sensação), com a loucura para que se possa escrever com sangue, gozo, pus um outro dicionário. Uma escrita de entalhados nos corpos das Marias, no silêncio da menina sem nome e na febre de Maria de Fátima trancada em um barraco acometida de um duplo calor: o de Vila Marta e Vilaboinha. Lá fora, homens escavam (como arqueólogos) o bairro de Vila Marta (que aparentemente é um bairro carente em uma grande cidade paulista) para encontrarem Vilaboinha (um lugar pobre e distante de uma região seca e quente, nordeste?). Vila Marta um duplo de Vilaboinha revelada pela ação do arqueólogo.
Desse modo a autora vai decompondo as camadas que se sobrepõe. Cada camada é um dos estratos de superfícies territoriais que vão se aglutinando. Assim como as cidades se sobrepõe a outras versões mais antigas de si próprias, embaixo de Vila Marta há diversas Vilas Martas que foram soterradas ao longo da história. Em cada estrato uma nova territorialidade dos sentidos, criando uma nova experiência estética e sensível para a loucura: os cães de Tonho, a roupa da mulher gorila, as memórias, a fotografia, a menina sem nome, o barraco… Todo um universo que se reinventa e se ressignifica em cada camada de terra. Diversas loucuras que se sobrepõe, e com cada uma delas toda uma territorialidade afetiva e estética diferente.
Assim a Bruxa responde ao arqueólogo ou ao historiador: mexe e revira a terra, come cada grão, até mesmo a secura, para vomitar um novo corpo/palavra. Encontrar cada uma das territorialidades da loucura para então devolver (mas como o corpo devolve aquilo que abomina: através do vômito) uma outra noção de loucura, não mais a que silencia ou condena, mas a que transforma e faz as palavras criarem novas possibilidades de significar o mundo. Assim, escavar Vila Marta não se trata de encontrar sua origem urbanizada, estatística, socializada, mas uma relação complexa com a memória que faz o espaço dobrar sobre si, há em Vila Marta camadas de Vilaboinha. O arqueólogo escava no terreno as camadas de tempo, a bruxa escava no corpo as camadas da memória. Criando-se assim diversos duplos que não se opõe: terra/corpo; história/memória; morte/vida.
Referências
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: ED 34, 1997.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.
Recebido em: 1/06/2016
Aceito em: 1/06/2016
[1]Graduado em História, mestre em Divulgação Científica e Cultural, e doutor em Teoria e Crítica Literária, todos títulos pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: renatosmo@gmail.com