Territórios: modos de entendê-los e agenciá-los nas metápolis


Bruno Massara[1]

 

 

 

 

  1. INTRODUÇÃO

Neste ensaio é proposta uma reflexão dedicada ao conceito de territórios no contexto das grandes cidades contemporâneas ou metápolis. São inúmeras as possibilidades de posicionar relações sobre o conceito de territórios tendo como parâmetro sua relação com os estudos dedicados aos espaços urbanos. Não há aqui a pretensão de tecer exaustivas comparações que esgotem as possibilidades de uso do conceito, mas dar atenção a algumas mais relevantes que, a nosso ver, tangenciam o intuito desta edição de ClimaCom de abordar visões renovadas acerca do que são e como podem ser conformados territórios e territorialidades no contexto da sociedade contemporânea. As análises e reflexões propostas visam despertar o interesse do leitor para o que se considera serem abordagens sintonizadas com o momento atual das cidades contemporâneas, tendo em vista ampliar e instrumentalizar olhares críticos sobre essa cada dia mais complexa conformação urbana que habitamos. Entendê-las como metápolis significa considerar justamente essa condição de grande complexidade, disputa de territórios, metaterritorialidades, desterritorializações que conformar o tecido e a experiência urbana atual. Neste ensaio, para além da definição de conceitos e relações úteis para um entendimento ampliado dos territórios urbanos, oferecemos também exemplos de iniciativas experimentais cujos processos e resultados são significativos para a construção de territórios em locais desprovidos de quaisquer identidade ou ameaçados pela especulação urbana. Cabe ainda destacar que a abordagem aqui proposta sofre influência dos estudos de complexidade uma vez que eles permitem configurar um campo comparativo multidisciplinar, inter-relacionado, que não se apoia sobre um único pilar teórico mas recupera olhares advindos da arte, da geografia, da teoria dos sistemas e das redes.

 

  1. Sobre o conceito de territórios

Partimos da importância em nos situarmos em concordância com a proposta desta edição de ClimaCom que considera o conceito de territórios como algo além de uma base ou fundo fixo sobre o qual agimos nós seres humanos. O entendimento de território enquanto um mero suporte das atividades e construções humanas dialoga com visões excessivamente restritivas mas ainda muito utilizadas nas ciências sociais cuja abordagem está vinculada apenas ao domínio material e físico do ambiente natural (Haesbaert, 2006). Essa abordagem, denominada materialista ou territorialista privilegia o vínculo do significado do território com ambiente natural, o solo, a topografia, a geografia do espaço e todos os atributos materiais que auxiliam na sua caracterização: forma, relevo, cobertura vegetal, elementos naturais, etc. Nesta visão, o território se torna um elemento que pode ser medido a partir de sua área, extensão, definido enquanto lugar geográfico e avaliado a partir de atributos e características de ordem físicas. Não há nesta abordagem elementos suficientes para explorar a complexidade de aplicações que podem ser atribuídas ao conceito de território em análises urbanas mais ampliadas.

Complementar à visão materialista há visões acerca do conceito de territórios como a que associa o entrelaçamento de domínios simbólicos e culturais na formação destes. Esta abordagem, de maior envergadura analítica, considera, por exemplo, que um território não pode ser apenas definido por suas características físicas mas deve ser também interpretado em função do uso que é dado a ele por parte das pessoas. Dessa forma, instaura-se uma condição de apropriação, em que a presença humana é definidora e inseparável para a determinação de um território. No que se refere a esta apropriação, torna-se necessário considerar aspectos que a caracterize, como inscrições simbólicas decorrentes de hábitos e práticas cotidianas, formas de controle e diferenciação, modos de uso e ocupação, entre outros. Aquilo que chamamos de inscrições pode ser analogamente compreendido como representações simbólicas e incluem elementos oriundos dos domínios da arte, da técnica e da combinação entre elas. São estas combinações os indicativos dos vínculos de propriedade, de criação de relações afetivas e subjetivas que o humano constrói ao se apropriar de um local. Este local, que em seu estado intocado se configura apenas como um espaço natural, se torna territorializado em função das representações que a ele são atribuídas. Isso nos mostra que, mais do que um suporte físico definido geograficamente, a abordagem culturalista resgata valores de um domínio relacional entre humano e ambiente apropriado. O filósofo Gilles Deleuze considera que num primeiro momento é possível associar o território a um domínio espacial mas que o recorte geográfico não é suficiente para delimitá-lo objetivamente. Esta análise nos é trazida por François Zourabichvili, estudioso do filósofo francês, que comenta a importância por ele apontada de reconhecer o valor existencial dos espaços como métrica para considerá-los ou não territórios (ZOURABICHVILI, 2004, p.24). Essa métrica existencial configura uma unidade de medida relacionada com o vínculo afetivo que define as relações de apropriação e de construção de uma identidade tendo como base referencial a subjetividade de seus usuários.

Num caminho analítico simbólico convergente, o arquiteto italiano Vittorio Gregotti afirma que o gesto primordial da arquitetura, tomando-a como esse amálgama entre arte e técnica, é a apropriação dos lugares. Gregotti explica que o momento fundamental de criação da arquitetura é definido na ação do humano em fincar uma pedra no chão, demarcando aquele espaço como lugar. Este gesto precede até mesmo a construção da cabana primitiva que, para muitos autores é o marco inicial clássico da arquitetura. No entanto, para Gregotti, gestos menores em termos técnicos mas relevantes em termos simbólicos apresentam o potencial de demarcação e de diferenciação que define um território. Seguindo esse raciocínio, o território está portanto associado a uma atribuição de valor, de significado e um tipo de demarcação espacial que produz nova leitura, nova relação, novo vínculo simbólico e existencial do humano em sua relação com o mundo e com os demais membros de sua comunidade.

Em Territórios da Arquitetura, Gregotti (1978) afirma que a arquitetura é fundamentalmente um meio de se entrar em contato com o mundo, de lançar um olhar sobre ele e construir uma antropogeografia. Dentre os principais elementos conformadores deste território antropogeográfico está a tomada de consciência de questões relacionadas a como devemos viver esse mundo. Cada gesto empreendido pelos humanos que se destina a transformar um espaço existente carrega um conjunto de indagações e tentativas de responder a esta pergunta. O campo da arte é um fascinante laboratório de criação de perguntas. A ideia de que um território deve ser não apenas entendido mas experienciado para além da noção geomorfológica é objeto de investigação e subversão de uma série de artistas do movimento Land Art como Richard Serra, Michael Heizer, Robert Smithson, Thierry de Duve, Christo. Stéphane Huchet (2012) nos escreve que a escala supranormal das obras realizadas por estes artistas traz embutida um gesto de superação do território enquanto identidade nitidamente definível e reconhecível. Os artistas propõem, através de suas pesadas, complexas e topográficas instalações, uma revisão de conceitos ditos fossilizados pelo movimento moderno do início do século XX como lugar e significado. Os trabalhos realizados incluem o remodelamento de cursos d’água (Robert Smithson), o empacotamento de paisagens (Christo), construção de falésias (Michael Heizer) e lançam perguntas que problematizam o modo como lemos e interpretamos um território. Dentre algumas reflexões decorrentes destes trabalhos há a impermanência dos significados atribuídos aos territórios. Eles são mutantes, voláteis, transitórios e se renovam com o passar do tempo. Suas demarcações são constantemente refeitas a partir das alterações naturais nos sistemas de valor das culturas humanas. Não há escala para definir territórios, eles podem assumir conformações macro ou micro espaciais, desde uma pedra fincada a uma falésia construída.

Territórios são situações que não se apresentam como algo dado mas, ao contrário, devem ser criados, conformados, constituídos para, posteriormente, serem preservados e mantidos. Devem ser considerados enquanto ambientes artificialmente produzidos, frutos da ação e intervenção humana e de uma intencionalidade que os acompanha e define. Nessa perspectiva, de que territórios são situações produzidas, o arquiteto Patrik Schumacher aborda processualmente estas ações criativas a partir do conceito de operações de territorialização (2012, p.187). Segundo ele, tais operações são caracterizadas pela produção de singularidades em ambientes originalmente genéricos e implicam em agregar continuamente valor a estes ambientes com o objetivo de adquirirem especificidade e diferenciação frente ao demais. Schumacher considera que os territórios são as unidades mínimas que definem significado aos ambientes e tal significado está entrelaçado com o contexto imediato onde estão inscritos. Para ele, territórios compreendem todos os tipos de lugares, espaços, zonas interiores ou urbanas que produzam sentido de demarcação, distinção, ou seja, que produza um tipo de estruturação reconhecível voltada para a interação social (ibid, p. 183). No entanto, a identificação de territórios no contexto urbano atual não é tão imediata quanto pode parecer uma vez que a complexidade de formas diferenciadas de estruturação e demarcação existentes cria um contexto de sobreposições, hibridações e mesclas que os tornam frequentemente indistinguíveis.

Os espaços urbanos contemporâneos, notadamente os grandes centros, são caracterizados pela formação de territórios dentro de territórios. Este cenário de sobreposição nos modos de apropriação dos espaços da cidade por parte de seus inúmeros habitantes produz metaterritorialidades, que são situações complexas regidas pela existência simultânea de usos distintos e muitas vezes contraditórios compartilhando um mesmo lugar. Manuel Gausa (2003) define esta conformação urbana complexa, de espaços e relações heterogêneas, descontínuas ou justapostas, de metápolis. Considerando que grande parte das metápolis atuais brasileiras são regidas por interesses imobiliários, mercadológicos e orientados cada vez mais para o capital, enfrentamos uma condição de precariedade na oferta de espaços diferenciados voltados para o uso comum não-comercial. A hegemonia dos interesses privados na construção das metápolis cria uma paisagem em que grande parte os territórios construídos são programados para dar lucro. São operações exploratórias de territorialização que nada tem a ver com a construção de identidades locais, vínculos afetivos com seus usuários mas, ao contrário, prezam pela sedução frívola, pelo espetáculo e pelo prazer imediato de seus usuários-consumidores.

É importante considerar que, como todo sistema complexo, as metápolis não estão condicionadas por um controle único centralizado. Para além de um domínio reconhecidamente capitalista de produção do espaço há um conjunto de iniciativas emergentes que vêm buscando meios renovados de produção de territórios mais democráticos e centrados no uso e na gestão coletiva. São estas iniciativas que vêm contribuindo para a ampliação das possibilidades de ação sobre a cidade no que se refere às operações de territorialização citadas por Patrik Schumacher. Agem de modo coerente com a dimensão complexa da metápolis assumindo uma postura extremamente dinâmica, combinatória, contingente e oportunista. Apresentam uma identidade múltipla e heterogênea conformada por coletivos de arte, ONGs, associações de bairro, estudantes de formação variada, grupos organizados de arquitetos, designers, jornalistas, ativistas e usuários comuns. Estas células independentes configuram seus próprios projetos, identificam suas próprias demandas, captam seus próprios recursos e articulam suas próprias redes e plataformas de comunicação e troca de informações. Apesar de proporcionalmente menores e menos impactantes frente às grandes forças políticas e econômicas, elas vêm demonstrando enorme potencial de transformação dos espaços urbanos em escala local e, mais importante, configurando territórios ricos em identidade e relação com o contexto e com a comunidade local. Mais importante, ensaiam modelos experimentais de urbanismo vinculados a um pensamento de cidade muito mais democrática, ecologicamente articulada e anticapitalista. A importância destas práticas experimentais torna-se mais evidente quando aprofundamos o entendimento da complexidade das metápolis atuais.

Manuel Gausa (2003) nos explica que o termo metrópole foi cunhado num momento histórico cuja referência principal era um modelo de cidade de característica industrial produtivista construída em torno de um centro polarizado e cujo foco era a circulação de bens e pessoas. A terminologia metápolis está vinculada a um modelo contemporâneo de cidade cuja conformação mais sistêmica preza pelo crescimento em termos de inteligência combinatória de negócios e serviços de alto nível mais do que pela expansão territorial ou produção de bens. São cidades de articulações globais, internacionalizadas, conectadas em rede e aptas para evoluir em paralelo com outros centros urbanos com os quais se encontram articuladas. Há uma diversidade de estratos de organização sobrepostos nestas cidades que vão desde infraestruturas de grande escala como redes de transporte, comunicação, comércio e serviço, definindo um macroterritório complexo, sistêmico, sincronizado e liso, até escalas menores e mais estriadas, locais de práticas mais cotidianas, de uma experiência mais subjetiva e contextualizada por parte da população. De fato, as cidades se tornaram extremamente mais complexas e dinâmicas, e essa mudança traz impactos profundos para contextos locais uma vez que grande parte do seu território sofre interferência direta dos interesses de mercados cada vez mais globalizados. Saskia Sassen (1998) alerta sobre os impactos de processos econômicos transnacionais em grande escala tais como: alterações na estrutura social das próprias cidades, bem como nas organizações de trabalho, na distribuição de ganhos, e também na expansão e dispersão territorial das atividades em função do foco na logística e na mobilidade. O desafio maior na gestão das cidades contemporâneas é articular um equilíbrio ou ainda uma sincronicidade entre a macro e a micro escala, de modo que investimentos de caráter infraestrutural voltados para o mercado global não se sobreponham e descaracterizem os ambientes, a cultura e os valores da escala local. Em outras palavras, é importante criar condições para que a metaterritorialidade urbana seja produzida de modo congruente e integrado. Para entendermos melhor a convivência entre estratos diferenciados e contraditórios em um mesmo sistema cabe discutir algumas relações oferecidas pelos estudos de complexidade.

Os estudos de complexidade nos oferecem caminhos importantes relacionados ao modo de se pensar e agir em contextos marcados pela heterogeneidade de valores e escalas como é o caso das metápolis contemporâneas. Num primeiro momento, é necessário superar a visão que considera as cidades sistemas plenamente controláveis, previsíveis e passíveis de análise a partir de um recorte meramente morfológico. Refletir sobre as cidades via análises morfológicas apenas é incorrer em um erro básico dos estudos de complexidade que preza pela inseparabilidade entre sujeito e objeto. O filósofo francês Edgar Morin nos mostra que uma das principais limitações da ciência clássica é a eliminação do sujeito a partir da ideia de que o objeto de estudo pode ser observado e analisado num plano separado (2005, p.39). No entanto, no caso específico das cidades, é justamente o sujeito que dá vitalidade e conduz a evolução do objeto cidade, e é a partir dele que ocorre sua apropriação e então a conformação de territórios. Mas para a ciência clássica, o sujeito variante, inconstante e imprevisível era tido como um fator perturbador das análises que, a fim de eliminar os erros e as distorções em suas avaliações, ignoravam estas variáveis tendo em vista compor equações cujos resultados fossem incontestáveis. Nos tempos atuais, nos lembra Morin, os problemas de complexidade se tornaram uma exigência social e política, e devemos nos preocupar em evitar um tipo de pensamento mutilante como forma de evitar também ações mutilantes.

Para operar uma configuração mais humana e democrática em meio à complexidade de escalas das metápolis atuais é importante que saibamos identificar situações de singularidade no âmbito deste amálgama dinâmico e múltiplo que conformam os espaços urbanos. E é justamente sobre aquilo que consideramos ser tais singularidades potencialmente relevantes que destacamos aqui as atividades propostas por grupos emergentes de ação urbana dedicados a apropriar e transformar, ou reprogramar, espaços urbanos degradados e subutilizados em territórios dedicados a uma ocupação de caráter cultural, social, coletivo e único. Além de sua organização reticular não hierárquica chama atenção pelo posicionamento político orientado a propor alternativas para várias questões caras à atualidade tais como a crise dos sistemas de circulação, o livre acesso à cultura para todas as camadas da população, a construção de mais espaços livres verdes e públicos, a preservação da memória, da paisagem e da identidade urbana, a reconversão de espaços privados para uso público, a não espetacularização das cidades e da experiência urbana, a utilização de fontes limpas e renováveis de energia e a concepção de regimes econômicos baseados na troca, no financiamento colaborativo, na contrapartida e no lucro social. São eles os responsáveis por propor um movimento renovado no modo como utilizamos e nos relacionamos com a cidade e com os outros, e a partir daí gerar territórios urbanos ricos e ambientalmente salutares.

 

  1. Propostas de agenciamento no contexto urbano

É nítido perceber no contexto brasileiro, notadamente nas grandes cidades, o desequilíbrio entre os interesses vinculados a uma escala globalizante, impulsionados por um modelo neoliberal de “crescimento” e “desenvolvimento” de caráter privado, e os interesses específicos do contexto local, das comunidades e moradores comuns, que fazem parte da grande massa de usuários que depende dos espaços e dos serviços públicos. Uma das manifestações mais evidentes desse descompasso é a proliferação de espaços públicos degradados, desterritorializados, abandonados, aos quais poderíamos nos referir através da expressão terrain vagues. Pois é justamente nestes terrenos vagos, ociosos, desprovidos de uso que são propostos projetos de intervenção como “a batata precisa de você”, colocado em prática pelo Coletivo Bijari na cidade de São Paulo. Neste projeto foram elaboradas inúmeras iniciativas de ativação urbana na região conhecida como Largo da Batata, um espaço fortemente ameaçado pela especulação imobiliária que avança ao longo de toda a Avenida Brigadeiro Faria Lima. Uma associação deste com outros coletivos propuseram ações como o plantio ilegal de árvores, a realização de bazares para moradores de rua, ocupações culturais com shows, debates, acampamentos, intervenções artísticas, performances que juntas conformaram um grande projeto de resistência à urbanização avassaladora e alisadora dos territórios posta em prática pelos interesses privados com o apoio dos órgãos governamentais. Se por um lado o planejamento urbano formal encara o ambiente urbano como forma, investimento, eixos de circulação e verticalização, por outro, as ações informais buscam um posicionamento diametralmente diferenciado que leva em conta a identidade e a memória local, incluindo o perfil e o comportamento dos moradores, o tempo próprio do lugar, das pessoas, das práticas cotidianas que lá se alojam. Trata-se de um outro olhar sobre a cidade, um olhar que busca associar e não suplantar aquilo que está presente com o tipo de vocabulário que potencialmente pode ser implementado no futuro.

O crescimento urbano descontrolado acaba por transformar espaços públicos como o Largo da Batata em terrain vagues, de modo análogo ao que acontece com marginais de viadutos, grandes vias de circulação, vias laterais aos mega condomínios murados, zonas desterritorializadas, residuais, impessoais, deterioradas. No entanto, são estes ambientes ociosos que vêm se convertendo no campo de ação dos movimentos emergentes informais. Vemos nestas iniciativas uma tentativa de irrigar a cidade com novos territórios potenciais que, nas palavras de Peter Pál Pelbart (1997) tem a capacidade de instaurar campos de experimentação abertos, que estimulem hibridações, intensificações e diversificações, apostando na reinvenção do espaço psicológico e existencial de seus usuários e habitantes. No caso do Largo da Batata, os organizadores produziram estruturas tensionáveis visando proporcionar sombreamento e convivência em contraposição à aridez e falta de mobiliário urbano no entorno. Segundo eles, esta ação é uma provocação à ausência de um pensamento urbano que privilegie a escala humana e o conforto no uso dos equipamentos e mobiliários nos espaços públicos (BIJARI). Nota-se aqui um gesto orientado para a criação espontânea de territorialidades.

São inúmeras as contribuições que estas ações oferecem para o pensamento e a prática do urbanismo. Em termos processuais elas buscam agregar valor a espaços existentes e em estado de abandono inserindo-os em novos ciclos de relações e novas narrativas. Não prezam por soluções ideais mas raciocinam sobre as inúmeras formas de aproveitamento dos elementos disponíveis a partir de reconversões, alterações funcionais e combinações com novos elementos. Tratam cada situação problema como única e extraem dela possibilidades e potencialidades que apenas um olhar mais atento é capaz de processar. Há em formação uma consciência acerca da necessidade de por em prática outras abordagens de urbanismo que não dependam das normativas do desenho urbano tradicional. Outra situação análoga de grande relevância para ilustrar tais abordagens é a proposta do “parque para brincar e pensar” realizada no Jardim Miriam em São Paulo por iniciativa do Grupo Contrafilé, a Comunidade Brás de Abreu, o Jardim Miriam Arte Clube entre outros artistas e colaboradores. Inspirados pela metodologia do faça-você-mesmo-e-com-os-outros, os envolvidos na proposta se apropriaram de uma área abandonada e em processo avançado de degradação e nela instauraram um movimento coletivo visando reconvertê-la em um “território de invenções”. Recorrendo a processos de mutirão, membros da comunidade, voluntários e colaboradores levaram adiante o que podemos classificar como uma espécie de urbanismo de código livre no qual todos têm direito a contribuir com ideias, esforços, recursos e suporte de todas as ordens. É interessante perceber que em meio às publicações online deste projeto se encontram citações marcantes como a do filósofo Félix Guattari dedicadas ao conceito de “territórios de existência” nas quais o autor explica que a noção de território deve ser entendida de forma mais ampla, relativa tanto a um espaço vivido quanto a um sistema percebido dentro do qual um sujeito se sente “em casa”. Para Guattari, território “é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma”, sendo ele “o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços, sociais, culturais, estéticos e cognitivos”. Mesmo configurando-se como um projeto quase que exclusivamente dedicado à prática de transformação física de um espaço real destinado ao uso cotidiano de moradores, entrevemos um pensamento teórico sólido relacionado à constituição de territorialidades que atravessa este domínio da práxis.

Paralelamente ao repertório teórico que subjaz às práticas auto-organizadas há posicionamentos políticos de caráter subversivo que orientam trabalhos como Lotes Vagos idealizados por Louise Ganz e Breno Silva. Neste caso, há uma intenção em transformar lotes privados em espaços públicos temporários de uso coletivo, uma ação que desafia uma das maiores dicotomias relacionadas aos problemas urbanos que é a excessiva privatização do solo em comparação com a criação de espaços públicos. O projeto Lotes Vagos assume um posicionamento crítico contrário à especulação imobiliária, à lógica exploratória existente em meio aos interesses do mercado e a uma produção de espaços marcadamente genéricos e estetizantes colocada em prática por construtoras, arquitetos renomados e incorporadores. Realizado nas cidades de Belo Horizonte e Fortaleza, este projeto tratou de ressignificar conceitual e funcionalmente um conjunto de lotes vagos fazendo surgir em meio a um ambiente estéril novos territórios de uso comum destinados ao lazer, ao ócio, à convivência, à socialização e à promoção de uma experiência diferenciada de cidade e de vida em comunidade. Esse modelo experimental de ocupação dos espaços urbanos demanda dos propositores um envolvimento maior com a cidade no sentido de percorrê-la, identificar os lotes vagos e instaurar um processo de negociação com os proprietários. Não se trata de ocupar fisicamente o vazio com objetos construídos ou edifícios, mas mantê-lo vazio porém reprogramado com bibliotecas em caixotes, salas de estar sobre tapetes, mobiliário de descanso a partir de movimentações de terra, cinemas e exibições projetadas nos muros. De acordo com a pesquisadora de arte Marisa Flórido (2009), este tipo de proposta de ocupação que interfere na dinâmica da situação na qual se insere é resultado do esforço de artistas que assumem o papel de mediadores sociais, que buscam ativar temporariamente o convívio a partir de, segundo ela, “estratégias de territorialização”.

 

  1. Conclusões

As conceituações, exemplos e reflexões que nos propusemos a realizar aqui buscam lançar uma luz sobre a questão que nos provoca a pensar quais novos modos de habitar um mundo comum. Acima de tudo o território é uma interface através da qual nos colocamos diante da realidade. A qualificação de um espaço enquanto territorialidade implica necessariamente em definições, demarcações, construção de vínculos, inscrições que traduzam uma intencionalidade humana em organizar suas ações e representações no contexto que o cerca. Construir territórios implica produzir estruturações, ordenações, criar significados, posicionamentos, elaborar códigos capazes de criar mais fluidez e identidade para as relações sociais, despertando valores que nos levem a refletir sobre a forma mais coerente de nos posicionarmos diante do mundo e do outro. Em todos os trabalhos que apresentamos e discutimos neste artigo é possível entrever um posicionamento crítico e político dedicado a outras possibilidades de se habitar o mundo numa perspectiva mais coletiva, sensíveis aos valores de convivência interpessoal e a uma apropriação mais democrática dos espaços públicos e privados. A experimentação que cerca estas propostas tem um papel essencial em revelar novos modelos de relação, novas sensibilidades no uso das cidades e indiretamente indicar alternativas para evitar as armadilhas de uma cidade de caráter expansionista neoliberal e espetacular que seduz ao mesmo tempo que nos individualiza e nos endivida. A nosso ver, estes e outros vários trabalhos conduzidos de forma autônoma e emergente, vêm conformando uma outra consciência relacionada ao viver contemporâneo. É através deles que novos territórios do pensamento e da prática espacial se tornam visíveis e nos conduzem a um novo estágio de relação com o mundo contemporâneo.

 

Referências

FLÓRIDO, Marisa. Lotes Vagos: a impropriedade integrada. (in:) SILVA, Breno; GANZ, Louise Marie; CORTEZÃO, Simone; LINKE, Ines; CÉSAR, Marisa Flórido. Lotes vagos: ocupações experimentais = Vacant lots : experimental occupations. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas, 2009.

GAUSA, Manuel.; GUALLART, Vicente; MÜLLER, Willy; SORIANO, Federico; PORRAS, Fernando; MORALES, José; CROS, Susanna. The metapolis dictionary of advanced architecture: city, technology and society in the information age. Barcelona: Actar, 2003.

GREGOTTI, Vittorio. Territorio da arquitetura. São Paulo: 1978.

HAESBAERT, Rogério. Concepções de território para entender a desterritorialização. (in.) SANTOS, Milton UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A; PPGEO/UFF, 2006. Pg. 43-70.

HUCHET, Stéphane. Intenções espaciais: a plástica exponencial da arte, 1900-2000. Belo Horizonte: C/arte, 2012.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005.

PELBART, Peter. Pal. A Cidade Virtual. Anais. A cidade vivente: subjetividade, socialidade e meio ambiente na cidade contemporânea. Belo Horizonte: Movimento Instituinte de Belo Horizonte; Engendra; Instituto Felix Guattari, 1997. pp.31-40.

SCHUMACHER, Patrik. The Autopoiesis of Architecture: A New Agenda for Architecture. v. 2. Chiches- ter: John Wiley & Sons, 2012.

SASSEN, Saskia. As cidades na economia mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2004.

 

Websites

BIJARI. Disponível em < http://www.bijari.com.br > Acesso em 01 de Agosto de 2016

PARQUE PARA BRINCAR E PENSAR. Disponível em < http://parqueparabrincarepensar.blogspot.com.br/p/referencias.html > Acesso em 01 de Agosto de 2016

 

Recebido em: 1/06/2016

Aceito em: 10/06/2016

 


[1] Arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Territórios: modos de entendê-los e agenciá-los nas metápolis

 

RESUMO: Este ensaio busca explorar possibilidades de uso do conceito de territórios no contexto das grandes cidades contemporâneas ou metápolis. As concepções, exemplos de iniciativas experimentais e de novos agenciamentos em contextos urbanos tornam possível entrever outros modos de se habitar o mundo, numa perspectiva mais coletiva e de apropriação democrática dos espaços públicos e privados dos quais emergem novos territórios do pensamento e da prática espacial.

PALAVRAS-CHAVE: Territórios urbanos. Metápolis. Complexidade.


Territories: new thoughts and agencies in metapolis

 

ABSTRACT: This essay seeks to explore possibilities of territory in the context of large contemporary cities or metapolis. The conceptions, examples of experimental initiatives and new assemblages in urban settings make possible to perceive other ways of inhabiting the world, a more collective perspective and democratic ownership of public and private spaces of which emerge new territories of thought and spatial practice.

KEYWORDS: Urban territories. Metapolis. Complexity.