Mapas performativos: experienciando climas, paisagens e culturas


 

Walmeri Ribeiro [1]

 

Coloco-me nesta escrita a tecer um diálogo entre textos, autores, conceitos e experiência, conhecimento incorporado, pensamentos, sentimentos, sensações e imaginação ativados por um corpo em Performance.

A indicação espaço-temporal, “Montreal, inverno de 2017”, ressalta o clima|weather[2] e a paisagem no qual esta escrita está inserida: o intenso inverno canadense.

Há muitas técnicas e tecnologias criadas para amenizar as ações do Clima na vida cotidiana e reinventar modos de viver|habitar adaptando-se às mudanças do clima|weather e, claro, às mudanças climáticas. Tetsuro Watsuji, em seus escritos sobre a Antropologia da Paisagem, propõe que “clima e paisagem são o momento de objetivação da subjetividade humana” (1997, p. 52). Para o pensador japonês, viver em um determinado Clima e Paisagem nos leva a criar utensílios, técnicas, tecnologias para driblar a ação deste em nosso corpo, mas é a partir do experienciar que nós, seres humanos, podemos descobrir a nós mesmos e criar modos de viver em sociedade.

Venho, ao longo dos últimos três meses, vivendo em uma cidade com temperaturas que variam entre -4 e -20 °C, com sensação térmica de até -27°C. A paisagem é gris, uma cidade em preto e branco, o sol apareceu não mais que 4 vezes em 3 meses. Durante este período pude conhecer e experienciar os diferentes tipos de neve[3]: flocos de neve, grão de neves, grãos de gelo, graupel, granizo, chuva-neve e chuva congelante (freezing rain), com a qual a cidade se torna uma grande pista de patinação no gelo.

O aplicativo de clima é um item de sobrevivência, consultar todos os dias ao acordar, antes de sair de casa. Isso implica na escolha das roupas, do sapato e de até mesmo sair ou não. Basta chegar em Montreal e o aplicativo dispara a enviar mensagens de alerta: é preciso ter cuidado e estar atento aos fenômenos meteorológicos.

Colocar a lixeira na rua às segundas-feiras e quintas-feiras às 8PM requer preparação: bota, casaco, gorro, luvas… Coloca tudo, desce a escada, coloca o lixo, sobe as escadas e tira: luvas, gorro, bota e casaco.

A vida é indoor, e mesmo tendo nascido aqui e vivido toda a vida neste inverno, ninguém se acostuma, é tão difícil quanto para mim que estou só de passagem.

Cheguei em Montreal em dezembro de 2016 para realizar parte do projeto Territórios Sensíveis: uma investigação performativa[4]. Como o próprio título apresenta, esta é uma pesquisa-criação que parte de uma investigação performativa para discutir os impactos das mudanças climáticas na sociedade contemporânea, sobretudo, em seus modos de habitar|viver. Trago comigo pensamentos, conceitos, autores, artistas, experiências em outros climas e paisagens, mas, para além disso, a convicção de que para contribuir como artista-pesquisadora para as discussões emergentes dos impactos das mudanças climáticas na vida cotidiana, é preciso uma metodologia que permita processos de imersão em diferentes paisagens, climas e culturas, ou seja, em diferentes Territórios.

O caminho escolhido para tal desafio foi a Performance. Performance como pesquisa| Performance as research, ou seja, a Performance como metodologia, como caminho de investigação e experiência que se desdobra em criações artísticas, textos, pensamentos, ações.

Inspirada pelo pensamento de Bruno Latour (2014) – para quem o continuar, hoje, significa descontinuar, mudar o que é hábito –, proponho com esta pesquisa-criação uma dobra em um modo de habitar|viver|criar, uma intervenção em meus próprios modos de vida e criação, sem perder, claro, a dimensão política e a potência das ações|intervenções que dela podem se desdobrar.

Performo nas paisagens que me recebem em busca de caminhos e possibilidades para contribuir com as discussões acerca da chamada Era do Antropoceno ou, como prefiro me referir, balizada pelo pensamento de Isabelle Stengers, Era de Gaia.

Quais as contribuições da arte, como campo de pesquisa, para as investigações sobre as mudanças climáticas e seus impactos na sociedade contemporânea? Como a arte, sobretudo a Performance, pode nos ajudar na aproximação de questões locais que podem emergir a partir de experiências, de processos imersivos, performativos, nos territórios onde habitamos? Como, a partir do conhecimento incorporado (embodied knowledge) podemos contribuir gerando ações e rupturas nos modos de vida, modos de pensamento e modos de estar no mundo? Como ações artísticas podem intervir, sensibilizar e colaborar para a reflexão e conhecimento sobre as mudanças climáticas e seus impactos na sociedade contemporânea?

Em busca de respostas para essas questões e com a certeza de que, para refletir sobre questões globais do nosso tempo, precisamos antes conhecer e experienciar questões locais de onde vivemos, desenvolvi um programa de Performance a ser realizado nos territórios onde pesquiso. Neste ensaio, compartilho a experiência realizada entre os meses de janeiro e março de 2016 no Parc Jarry, em Montreal.

Mapas Performativos|Paisagens Transitórias

Parc Jarry, 9h da manhã, -14°C.

Com uma câmera acoplada no corpo percorri por 43 minutos o parque, local onde me instalei para realizar a primeira etapa da pesquisa. O frio é sentido pelos músculos, pela pele, pelos ossos. Os olhos doem, já não se tem mais controle da face. Os pés, protegidos com botas para até -45°C, congelam. Quando sinto o corpo sem sua capacidade normal de circulação do sangue, deixo o parque. Esta é uma regra desta Performance.

A relação com um novo clima e paisagem gera novas corporeidades, novos pensamentos, sentimentos, modos de vestir, alimentar, um novo modo de ser|estar. O pensamento de Tetsuro Watsuji ecoa em meu caminhar, a paisagem e o clima nos proporcionam uma orientação definitiva para analisarmos a estrutura da vida humana. Chego ao lago. Um lago artificial de cerca de 30 centímetros de profundidade criado para compor o parque. Num belo encontro proporcionado pelo acaso, me deparo com um trator alisando o gelo, como se ali fosse uma pista de patinação, mas não, é só um lago congelado, no qual mesmo no verão não se é permitido entrar. A construção desta paisagem me chama a atenção, fico ali por cerca de 10 minutos, o desejo é de interagir com a máquina que esculpe essa paisagem transitória. Caminhar sobre o lago.

Meu corpo começa a congelar. Inicio a saída do parque ainda motivada pelos movimentos da máquina sobre as águas congeladas do lago, mas sentindo um frio com o qual mal posso caminhar.

Saio do parque. Chego em casa e depois de um banho quente e um chá para aquecer, sento-me a escrever. Todas essas perguntas estão pulsando em meu corpo e saltam nessa escrita. As imagens produzidas com meu corpo-câmera ficam, por hora, no HD externo, catalogadas e armazenadas. Ganharão outro destino, mas ainda é preciso tempo, algumas questões precisam ainda de encontros a partir da própria investigação.

Faz mais de dois meses que performo neste parque, algumas semanas com mais tempo de permanência, outras, por conta do frio, da neve, com menos. Tenho um enorme arquivo de vídeos, textos, e, sobretudo, de sentimentos, sensações e questões que estão emergindo destas Performances.

Projetos desenvolvidos em territórios específicos e que propõem a Performance como metodologia de pesquisa-criação, como o que estou desenvolvendo, requer tempo, presença, permanência. As respostas, muitas vezes, parecem fáceis, mas não são. Venho, desde 2012, realizando processos imersivos em ambientais naturais e|ou urbanos, às vezes sozinha, às vezes acompanhada por outros artistas, estudantes e por pessoas das comunidades locais. No entanto, sempre me questiono quanto a como compartilhar poeticamente questões de ordem sensorial, cognitiva, política e social que emergem de processos como este. Como transmitir poeticamente a complexidade dos territórios experienciados?

Parto de um corpo em performance, imerso em um território específico, com um clima e uma paisagem nunca antes experienciada. Um corpo inquieto, em movimento. Um corpo-experiência. “It moves as It feels, and It feels itself moving” (MASSUMI, 2002).

Experiência, para o filósofo canadense Brian Massumi, é a dimensão incorpórea do corpo. Experiência é intensidade. Um conceito caro para a performance e fundamental para a performance como pesquisa, pois é a partir desta intensidade, dessa dimensão incorpórea do corpo que questões, procedimentos e ações ético-estéticas emergem.

Parc Jarry, 11h da manhã, -12ºC

Corpo. Movimento. Sentimento. Experiência. Palavras-conceito que me acompanham em mais um dia de pesquisa.

Há previsão de neve e ventos de até 45 km/h, mesmo assim decido ir ao parque. A pesquisa está cada dia mais intensa e não quero interromper esse fluxo de criação. No caminho em direção ao parque e munida de minhas quatro palavras-conceito, decido performar em um lugar específico, onde há a maior concentração de neve. Sempre quis compor esta paisagem e ser composta por ela, mas o completo desconhecimento do que estaria sob essa neve e de como meu corpo reagiria, sempre me fez desistir. Pela primeira vez a câmera não estará no meu corpo, mas me olhando.

O vento é forte, o que torna o frio ainda mais intimidador. Chego ao parque, monto a câmera e inicio minha performance. Caminho cerca de 15 minutos com a neve acima do joelho até alcançar duas árvores altas. Chegando lá, com o corpo exausto, como se tivesse corrido por horas, permaneço parada até não aguentar mais a ação do frio em meu corpo. Volto. O movimento de permanecer e a intensidade destes não mais de dez minutos de permanência, me trazem a importância do PERMANECER.

A intensidade, essa dimensão incorpórea do corpo, dificilmente é traduzível em palavras, imagens, gestos, ações. Mas é possível proporcionar ao outro a experiência do permanecer. Agarro-me ao verbo e decido torná-lo procedimento, não para as performances, mas para ativar as imagens capturadas ao longo de minhas performances. Esta não é a primeira vez que este verbo aparece nesses meses de investigação. Ele foi recorrente durante a experiência do frio.

Parc Jarry, 10h da manhã, – 4°C

A temperatura mais elevada que meu aplicativo já me mostrou desde que cheguei à Montreal. Há também a presença do sol. As pessoas estão na rua, caminhando. No parque encontrei com crianças brincando de snowboard, pessoas passeando com seus cachorros e até mesmo pessoas se exercitando, correndo em meio à neve derretida.

As formas que a neve ganha com o degelo, as texturas, a dureza e as diferentes sonoridades, me conduzem em minha performance. Passo a caminhar nos diferentes tipos de neve, quero experienciar as diferentes corporeidades que elas podem provocar no meu corpo. Esse trabalho é árduo, requer muita preparação física. Embora eu não esteja em condições físicas para uma performance como esta, decido realizar. Vou ao limite, até o meu corpo exausto já não poder mais caminhar. Não percebo, mas a câmera deixou de gravar grande parte desta ação, tenho apenas poucas imagens.

Com o corpo exausto, volto para casa sem condições de sequer descarregar as imagens, mas as sensações, os sentimentos e as corporeidades experienciadas continuam vibrando neste corpo em estado de exaustão. Sinto em meu corpo a paisagem do encontro dos braços do Rio Saint-Laurent, parte completamente congelada, estática e parte pulsando em uma correnteza de sensações, sentimentos, pensamentos e imaginação.

Talvez a imagem do Rio seja a síntese desta primeira etapa de pesquisa-criação.

Vieux Port, 2 h da tarde, -22 °C, sensação térmica de -27°C

Volto ao Vieux Port. Preciso revisitar o encontro dos braços do Rio Saint-Laurent. Permaneço por cerca de uma hora, ali, parada, olhando a potência da Natureza em seu estado de impermanência e fluxo.

Imagem 1 Walmeri Ensaio

As conexões entre paisagem, clima, corpo, tecnologias, fluxos, mediações, vão ganhando mais nitidez, apontando caminhos, despertando novas inquietações.

Uma paisagem transitória que me compôs e que eu a compus durante esses três meses de pesquisa imersa na experiência do frio e no que poderia aprender com ele. O frio me fez olhar para mim mesma, como um corpo em movimento, um corpo- percepção, um corpo-sociedade, um corpo-potência, um corpo-conhecimento, que modifica e é modificado o tempo todo pelas paisagens, ações, sentimentos que o compõem e que ele mesmo provoca. É um sistema de retroalimentação.

Debruço-me sobre as imagens, sobre o papel no chão, desenhando plantas baixas para um projeto expositivo. Como transmitir a experiência da permanência ao outro? E, porque transmitir essa experiência? Qual a importância e ressonância desta instalação nas questões que venho tratando em Territórios Sensíveis?

Estamos vivendo uma época de extremos, provocados pelas mudanças climáticas, mas também numa época de readaptação ao nosso próprio “lugar de vida”. As cidades e suas tecnologias, as técnicas, vestimentas, enfim, modos de vida indoor amenizam essa readaptação, mas não conseguem combater o que faz de Montreal, e de tantas outras cidades, a cada inverno mais gris e mais instável. Somos capazes de criar tecnologias e utensílios para driblar o frio, o calor, mas não temos como conter as respostas que o planeta está nos dando como consequência das nossas próprias ações no mundo.

Em meados de março, a chegada de um iceberg flutuando nas águas da província de Newfoundland, no Canadá, chamou a atenção. Muitos fotógrafos se deslocaram para a pequena província em busca da mais bela imagem. Entretanto, as lindas fotografias, divulgadas em redes sociais e revistas de turismo, trazem consigo as ações dos nossos tempos, os impactos das mudanças climáticas, como o degelo dos polos, o aumento das temperaturas, as instabilidades e extremidades entre fio, calor, quantidade de chuvas, alagamentos, seca, enfim, as respostas que Gaia está nos dando em consequência das nossas ações e modos de vida na terra.

Como dito por Guattari em suas “Três Ecologias”:

Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social, cultural reorientando os objetivos de produção de bens materiais e imateriais (GUATTARI, 1999, p. 9).

Assim, Mapas Performativos|Paisagens Transitórias[5], primeiro desdobramento dos experimentos realizados nesta pesquisa-criação, visa, a partir da experiência da permanência proposta ao espectador|performer, provocar uma reflexão sobre modos de vida e os impactos de nossas ações no mundo, compartilhando com “aqueles a quem isso possa afetar”, como diz Isabelle Stengers, o que me faz pensar, sentir, imaginar. Compartilhando estética e poeticamente um conhecimento incorporado, fruto de uma experiência que me autoproduz à medida que é também produzida[6].

Bibliografia

GUATTARI, F. As três ecologias. Campinas, SP: Editora Papirus, 1990.

LATOUR, B. Temos que reconstruir nossa sensibilidade. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, set. 2014. Disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/bruno-latour-antropologo-escritortemos-que-reconstruir-nossa-sensibilidade-14081447

MASSUMI, B. Parables for the virtual: movement, affect, sensation. Londres: Duke University Press, 2002.

MATURANA, H.; VARELA, F. The tree of knowledge: The biological roots of human understandin, revised edition. Boston: Shambhala publications, 1992.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes. São Paulo: CosacNaify, 2015.

WATSUJI, Tetsuro. Antropologia del paisaje: climas, culturas y religiones. Madrid: Editora Sigueme, 2006.

Recebido em: 15/07/2017

Aceito em: 05/08/2017

 


[1]Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e Pós-doutoranda em Artes no Departamento de Fine Arts – Concordia University, Canadá. Bolsa CAPES- Proc. n° BEX 5451/15-9. Professora do Departamento de Artes e Estudos Culturais da Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: ribeiro.walmeri@gmail.com

[2]Ressalto a diferença entre clima|weather e clima|climate. Em português, comumente utilizamos a palavra clima nos referindo a aspectos meteorológicos, como previsão do tempo, temperatura e fenômenos meteorológicos (chuva, sol, neve). Em inglês, para aspectos meteorológicos é utilizada a palavra weather, e para clima, climate. Essa diferença é de extrema relevância ao falarmos em mudanças climáticas. Pois, as mudanças climáticas, que estão afetando todo o planeta, são um campo de pesquisa e discussão bastante mais aprofundado e complexo do que os aspectos meteorológicos ou previsão meteorológica.

[2]Nomenclaturas apresentadas pela Sociedade Norte-Americana de Meteorologia (American Meteorological Society): https://www.ametsoc.org/ams/

[4]Territórios Sensíveis: uma investigação performativa está sendo realizado com bolsa de pós-doutorado CAPES|MEC no Departamento de Fine Arts da Conconcordia University. Para saber mais sobre o projeto acesse: www.territoriossensiveis.com

[5] As imagens de Mapas Performativos|Paisagens Transitórias podem ser conferidas em: www.territoriossensiveis.com

[6] Empresto aqui o conceito de Autopoiese, de Maturana e Varela (1992).

Mapas performativos: experienciando climas, paisagens e culturas

RESUMO: Inserido no campo das artes em diálogo com as mudanças climáticas, este ensaio apresenta o processo de pesquisa-criação de Mapas Performativos|Paisagens Transitórias que compõe o projeto Territórios Sensíveis: uma investigação performativa.

PALAVRAS-CHAVE: Pesquisas Performativas. Performance Arte. Corpo e cognição.

 


 

Performative maps: experiencing climates, landscapes and cultures

ABSTRACT: Inserted in the field of art in dialogue with climate changes research this paper presents the process of research-creation of Performative Mapas|Transitories Landscapes, It’s part of the project Sensitive Territories: a performative investigation.

KEYWORDS: Performative Researches. Performance Art. Embodiment knowledge.


RIBEIRO, Walmeri. Mapas performativos: experienciando climas, paisagens e culturas. ClimaCom [online], Campinas, ano.4, n.9, Ago. 2017. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=7390