Do bode expiatório ao bode conselheirista: notas para pensar vida e guerra em Canudos | Mariana Cruz de Almeida Lima


Mariana Cruz de Almeida Lima[1]

 

Preâmbulo

Chegar em Canudos à noite foi o prenúncio de um bom jeito de encarar a história. Ventava muito e o guarda do parque estava na espreita da chuva – já havia trovejado na vizinhança. No escuro, mesmo atenta, era pouco o que se podia distinguir: o som das folhas dos umbuzeiros, vultos se fazendo visíveis pelo contraste com outros vultos, lampejos de luz. Como era possível estar animada pisando o cenário desta guerra? O que esperava encontrar ali? O que o passado poderia ter a oferecer de novo?

Amanheceu. Sentada no alpendre da guarita, comi uma banana que o sentinela do turno havia trazido para os passarinhos. Ele vivia em um sítio do ‘projeto de desenvolvimento do sertão’ que canalizou o rio Vaza-Barris e financiou a produção de lavouras irrigadas de bananas. Sua família havia sido removida da primeira Canudos Nova, erguida sobre os escombros da guerra por seus sobreviventes, ainda no início do século vinte. A obra do açude Cocorobó foi finalizada pelo governo militar em 1969 e alagou o fundo do vale em que esta Canudos se fez Velha, por entre as ruínas expostas do antigo arraial conselheirista. No sertão, os anos de chumbo chegaram com as tropas republicanas e seus canhões-soldados pela ferrovia da História antes mesmo do século vinte começar. Ao Estado Novo coube gestar uma era de barragens e a ditadura fez o parto: dali em diante, a guerra seria contra a seca.

Recusamos o convite para iniciar a visita pela homenagem aos historiadores. Paulo, nosso guia, nos assegurou que não seria uma perda tão terrível. Começamos, então, pela casa de seu avô, a única que se manteve de pé desde que aqueles morros se tornaram o Parque Estadual de Canudos. O tintilar dos sinos dos bodes parceiros de seu avô fazem ecoar reminiscências de vida entre os signos de massacre a que fomos apresentadas no decorrer do dia. “É descendente conselheirista também!”, exclamou Paulo.

(Leia o artigo completo em PDF).

 

Recebido em: 30/03/2022

Aceito em: 30/04/2022

 

[1] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (PPGAS/Unicamp) e professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEDF). E-mail: mariana.tum@gmail.com

 

 

Do bode expiatório ao bode conselheirista: notas para pensar vida e guerra em Canudos

 

RESUMO: O cerco a Canudos e o sucessivo massacre de aproximadamente 20 mil pessoas que dissolveu a segunda maior concentração urbana da Bahia no final do século XIX segue figurando como uma imagem potente para pensar o momento atual dos conflitos por terra no Brasil. O fluxo entre passado e presente que constitui essas imagens, em especial o modo como são repetidas e proliferadas, retroalimentando a articulação entre as formas de ocorrência de um evento e as formas de narrá-lo, são o ponto de partida deste texto. Diante de um encontro com bodes descendentes conselheiristas, procuro perseguir diferentes figurações deste animal e, em paralelo, busco atentar para como determinadas abstrações, tais como progresso, civilização, natureza, humano e trabalho vão limitando, ao estilo do cercamento concreto a Canudos, as formas de narrar o evento. Com isso, busco responder algumas perguntas: Que histórias sobre Canudos podem contar a presença dos bodes conselheiristas? Sobre o que fala o silêncio histórico dos bodes? De que maneira contar uma estória com bode dentro pode fazer ressoar formas alternas de reabilitar Canudos?

 

PALAVRAS-CHAVE: Canudos. História. Paisagem.

 


From the scapegoat to the conselheirista goat: notes on life and war in Canudos

 

ABSTRACT: The siege of Canudos and the successive massacre of approximately 20 thousand people that dissolved the second largest urban concentration in Bahia at the end of the 19th century continues to appear as a powerful image for thinking about current conflicts over land in Brazil. The flow between past and present that constitutes these images, in particular the way in which they are repeated and proliferated, feeding back the articulation between the forms of occurrence of an event and the ways of narrating it, are the starting point of this text. I try to pursue different figurations of the goat, after meeting one presented as a descendent of the Conselheirista movement. In parallel, I pay attention to how certain abstractions, such as progress, civilization, nature, human and work, enclosure the forms to narrate the event. With this, I seek to answer some questions: What stories about Canudos can the presence of conselheiristas goats tell? What does the historical goats’ silence talk about? How can a story with a goat inside resonate alternate ways of rehabilitating Canudos?

KEYWORDS: Canudos. History. Landscape.


LIMA, Mariana Cruz de Almeida. Do bode expiatório ao bode conselheirista: notas para pensar vida e guerra em canudos. ClimaCom – Esse lugar, que não é meu? [Online], Campinas, ano 9,  n. 22,  mai. 2022. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/vida-e-guerra-em-canudos/