Por Michele Gonçalves
As mudanças climáticas são um campo problemático repleto de termos e expressões veiculados insistentemente na mídia. Em muitos casos, esses termos perdem sua potência ao serem largamente repetidos e/ou restritos a determinadas conceituações. É o que o capítulo “A Retórica da Vulnerabilidade e as Mudanças Climáticas” – elaborado por Eduardo Marandola Júnior para integrar o volume População e desenvolvimento em debate: contribuições da Associação Brasileira de Estudos Populacionais –, discute ao colocar os problemas enfrentados pelo termo vulnerabilidade, amplamente utilizado nas discussões atuais do campo. Segundo o pesquisador, há um tipo de retórica que se impõe tanto pela mídia quanto por grande parte das pesquisas científicas, a qual associa o termo somente à incapacidade ou inabilidade de populações e ecossistemas em face das condições adversas impostas pelas alterações ambientais. Tal retórica, ao enfocar apenas a fragilidade e inadequação, torna-se “um meio discursivo eficiente para defender interesses em vez de analisar questões”.
Para ele, esse sentido negativo utilizado a priori não favorece nem acrescenta nada às discussões e produz, pelo contrário, o entendimento de que qualquer transformação é absorvida pelos envolvidos como perda. “Ao adotar este olhar apriorístico não conseguimos observar as capacidades adaptativas ou a resiliência, as características próprias dos sistemas, lugares, instituições ou grupos populacionais específicos em responder aos perigos”. Em outras palavras, o que Marandola problematiza é o uso do termo vulnerabilidade como sinônimo de ausência, como uma espécie de deficiência das comunidades vivas, que desconsidera as heterogeneidades e potencialidades inerentes a contextos específicos, acabando por estigmatizar tais personagens “tornando-os vilões de suas mazelas e, pior, das mazelas dos problemas ambientais”.
Combater essa retórica, para o pesquisador, exige uma espécie de ousadia: a inversão na ótica metodológica e midiática, uma abordagem do termo como categoria analítica e não como um conceito revelador de desigualdades. “Vulnerabilidade é um conceito forte se visto de forma a incorporar as fragilidades e as potências ao mesmo tempo, para que os riscos e seu enfrentamento sejam entendidos de forma integrada, como um processo que não se resume à exposição e sua resposta, mas que envolve a complexa trama socioespacial constitutiva das mudanças ambientais”. O foco, portanto, não deve recair apenas sobre os danos, mas deve englobar a resistência e a capacidade de resposta, absorção de impactos e adaptação que possibilitam que eles – os danos – sequer aconteçam. Em suma, como categoria de análise, vulnerabilidade aplica-se a todos os locais, e não somente àqueles cujo prejuízo foi evidente.
O que está em jogo parece ser, portanto, a ordem do discurso que viabiliza as discussões em torno da vulnerabilidade. Mais que exaurir a perda, o que o artigo de Marandola defende é uma alteração na eleição dos problemas a serem pesquisados e discutidos: que as questões incluam as conjunturas em sua multiplicidade de aspectos, tramas e variáveis em sua especificidade e singularidade. “Se continuarmos tratando a vulnerabilidade apenas como perda estaremos eternamente remediando situações com ações paliativas, sempre transformando processos contínuos em eventos circunscritos no tempo”, finaliza.
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