Por Michele Gonçalves
2016, Rio Xingu: Belo Monte, a (futura) terceira maior usina hidrelétrica do mundo, está prestes a ligar sua primeira turbina, mesmo após inúmeras denúncias de irregularidades ambientais, étnicas e sociais cometidas durante sua implantação; 2016, rio Doce: o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) suspende o inquérito que apurava as responsabilidades pelo maior acidente ambiental do país, o rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco na cidade de Mariana, MG, que despejou, sobre alguns distritos e povoados, cerca de 62 milhões de litros de lama com resíduos tóxicos, destruindo moradias e pessoas e contaminando o principal rio da maior bacia hidrográfica da região Sudeste (ver mais aqui; aqui; e aqui); 2016, rio Tapajós: indígenas Munduruku protestam contra a perda de suas terras e sua fonte de subsistência pelas 43 usinas hidrelétricas previstas para serem construídas num dos últimos grandes rios amazônicos sem barragens, considerado o mais preservado da região, ainda que, há anos, venha sendo alvo de poluição por mineração (ver mais aqui e aqui).
As correspondências entre esses três eventos são inúmeras, a começar pela grandiosidade: dos rios, das obras, dos impactos, do absurdo de sua concretude. Há também dois elos fortes a interligá-los: tratam do mais necessário e valioso recurso natural para a vida na Terra – e de sua factível destruição – e revelam a vulnerabilidade das populações que dele dependem, uma legião (quase) invisível de afetados à mercê das decisões políticas, ambientais e sociais de um país e do desastre iminente que elas impõe: modos de vida que correm o risco de inexistir. Mas há mais a ser dito a respeito da catástrofe anunciada por esses eventos; há uma relação menos óbvia entre eles, uma condição comum que permeia o destino desses rios e dele extrai talvez sua única força: a luta dos que não desapareceram e se recusam à inexistência; o combate diário daqueles que permaneceram depois que a água, seu elo comum, foi-lhes negada.
A importância de as populações tidas como vulneráveis assumirem seu papel de sujeitos coletivos de transformação é apontada no artigo Complexidade, Processos de Vulnerabilização e Justiça Ambiental: um ensaio de epistemologia política, que relaciona risco, vulnerabilidade social e cidadania: “as populações impactadas por certos projetos econômicos de desenvolvimento e concepções de mundo reduzem a sua vulnerabilidade à medida que se constituem e passam a protagonizar a expressão pública e política de vozes sistematicamente ausentes dos processos decisórios que definem os principais projetos de desenvolvimento nos territórios”. O autor, Marcelo Firpo de Souza Porto, sugere a “desnaturalização e politização” da vulnerabilidade a partir da justiça ambiental, assumida como “ampla noção que coloca em xeque as questões éticas, morais, políticas e distributivas dos conflitos”. Em suma, o que ele defende é que a vulnerabilidade possa ser, mais que fragilização, uma expressão de reivindicação. Esse é um dos combates possíveis, a luta através da mobilização política, da qual também fala Joan Martínez Alier em O Ecologismo dos Pobres, importante livro que analisa e discute a ecologia política e os crescentes movimentos ecológicos populares. Ele destaca o papel político dos chamados “vulneráveis” ao apontar que os movimentos locais de resistência das populações afetadas reforçam e são fundamentais para manter as redes globais de discussão e atuação nos conflitos socioambientais distributivos.
As complexas articulações entre os mecanismos ambientais, cognitivos e relacionais com os aspectos fenomenológicos, estruturais e culturais que formam a política dos afetados são também discutidas em outro artigo, intitulado A Política dos Afetados: os atores, os repertórios e os ideais nos recentes protestos ambientais na América Latina. Apresentando os recentes processos de mobilização nessa região, a autora Cristiana Losekaan afirma: “o que diferencia que um determinado contexto de extremo impacto ambiental seja vivido como sofrimento e outro análogo seja transformado em objeto de luta não são as macroexplicações, mas as microfundações através de quais mecanismos as mobilizações contestatórias […] se tornam possíveis”. Ao passo que destaca o papel das mobilizações através dos movimentos socioambientais, o artigo, também valoriza algo mais sutil: a potência política, mesmo que não declarada, dos afetados que permanecem, que continuam a exercer suas práticas e atividades locais, que não renunciam nem à vida, nem à sua história, mas, sim, ao futuro traçado pelas mãos de outrem.
São muitas as formas de permanecer: através da criação de articulações políticas como o Movimento dos Atingidos por Barragens e a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale; através de protestos locais como os do povo indígena Munduruku contra as hidrelétricas do Tapajós e de ações populares como Mariana Viva; e através da resistência pela vida, que não admite ser anulada e persiste habitando seu território e praticando seus costumes ou, ao menos, afirmando sua procedência, suas práticas e sua territorialidade. Resistências como a do pescador mencionado no artigo de Losekaan, que “continua insistentemente tentando pescar em uma região impactada e é tão fundamental para a construção da ação coletiva quanto o líder de uma ONG que circula pelo mundo interligado e/ou interligando diversos cenários de luta”; ou talvez como a do pescador sem rio e sem letras da matéria da jornalista Eliane Brum, que mesmo tendo seu direito de pescar violado, ainda pescador se denomina.
“Não há mais rios doces ou inocentes”, escreveu Milton Hatoum quando de seu protesto poético pelo desastre em Mariana. Se o rio já há muito não é doce, mas se no fim da sua inocência tiver início a resistência pela vida que exige ser vivida, então que seja doce pelo menos o saber desses muitos combates possíveis, todos emergindo da água que lá não mais está.
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