Rios silenciados, animais perseguidos: ecos de um urbanismo higienista | Carolina Ribeiro Simon


Carolina Ribeiro Simon[1]

 

Desde o começo do mundo água e chão se amam
e se entram amorosamente
e se fecundam.
Nascem peixes para habitar os rios.
E nascem pássaros para habitar as árvores.
As águas ainda ajudam na formação dos caracóis e das
suas lesmas.
As águas são a epifania da criação.
[…]
Penso com humildade que fui convidado para o
banquete dessas águas.
Porque sou de bugre.
Porque sou de brejo.

[…]
Louvo portanto esta fonte de todos os seres e de todas
as plantas.
Vez que todos somos devedores destas águas.
Louvo ainda as vozes dos habitantes deste lugar que
trazem para nós, na umidez de suas palavras, a boa
inocência de nossas origens.
(Barros, 2015, p. 25-26)

A voz silenciada: Os corpos d’água e fauna à margem

A citação de um trecho do poema de Manoel de Barros introduz a reflexão central deste ensaio, no qual o poeta, ao direcionar seu olhar para o rio, confere às águas uma dimensão vital e transcendental, reconhecendo-as como essenciais para a preservação da vida. Barros reconhece a dívida histórica da humanidade para com as águas, fonte primordial da existência, e enfatiza a urgência de se reverenciar e proteger a natureza em sua totalidade. Ao sugerir que a verdadeira sabedoria repousa na conexão profunda e ancestral com o ambiente natural, o poeta convoca uma reflexão crítica acerca da relação do ser humano com o mundo ao seu redor. Partindo dessa premissa, o ensaio se desdobrará, retomando e aprofundando essa reflexão ao longo de sua análise. Ailton Krenak (2022) observa que, embora a humanidade tenha mantido uma conexão histórica e intrínseca com as águas, paradoxalmente, pouco se aprendeu com os rios. Ele ressalta que, apesar de os rios se manifestarem constantemente, falhamos enquanto sociedade em compreender plenamente suas mensagens (Krenak, 2022, p. 08-09). No contexto urbano, essa voz, já frequentemente reprimida, perde ainda mais sua força. De maneira ainda mais profunda, a “voz” dos animais, que muitas vezes se manifesta de forma sutil, é silenciada em um grau ainda maior, especialmente sob a lógica dominante que rege a vida nas cidades. É fundamental destacar que, ao longo deste ensaio, as noções de “natureza” e “humanidade” não são empregadas como categorias neutras ou universais, mas sim como construções histórico-culturais forjadas a partir de perspectivas hegemônicas ocidentais. Essas visões tendem a sustentar uma dicotomia rígida entre o humano e o não humano, frequentemente associando o humano à racionalidade, ao progresso e à cultura, enquanto relegam à natureza — e, por extensão, aos animais — uma condição de alteridade passiva, irracional ou subordinada.

(Leia o ensaio completo em PDF)

 

Recebido em: 15/05/2025

Aceito em: 15/05/2025

 

[1] Mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Email: carolinasimon@alumni.usp.br

Rios silenciados, animais perseguidos: ecos de um urbanismo higienista

 

RESUMO: Mosquitos, sapos, formigas e capivaras são exemplos de animais não-humanos que, embora não estejam diretamente associados aos rios urbanos, mantêm relações com esses corpos d’água, frequentemente carregando estigmas ligados à falta de higiene e ao risco de transmissão de doenças aos seres humanos. Em diversos momentos, essas águas adquirem conotações negativas, comumente associadas à sujeira, à presença de animais mortos e a áreas negligenciadas ou abandonadas. No contexto do desenvolvimento urbano, com ênfase na cidade de São Paulo, os rios assumem significados diversos, enquanto as marcas do urbanismo higienista continuam a ressoar de maneira expressiva na contemporaneidade. Este estudo, baseado em pesquisa documental e histórica sobre a relação entre seres humanos e animais, com ênfase nas estratégias de combate às zoonoses no meio urbano e nas interações com os corpos d’água, adota um experimento fabulativo fundamentado em matérias jornalísticas selecionadas, com o objetivo de promover uma reflexão crítica sobre a temática e explorar novas perspectivas sobre essas relações. Dessa forma, busca-se tensionar tanto as relações estabelecidas com os rios quanto aquelas cultivadas com as espécies companheiras — conforme o conceito de Donna Haraway — que habitam suas várzeas. Esse movimento visa, sobretudo, ressignificar imaginários consolidados e amplamente aceitos.

PALAVRAS-CHAVE: Rios urbanos. Animais não-humanos. Imaginários urbanos. Fabulação crítica.


Silenced rivers, persecuted animals: echoes of a hygienic urbanism

 

ABSTRACT: Mosquitoes, frogs, ants and capybaras are examples of non-human animals that, although not directly associated with urban rivers, maintain relationships with these bodies of water, often bearing stigmas linked to the lack of hygiene and the risk of disease transmission to humans. At various times, these waters acquire negative connotations, commonly associated with dirt, the presence of dead animals and neglected or abandoned areas. In the context of urban development, with emphasis on the city of São Paulo, rivers assume different meanings, while the marks of hygienist urbanism continue to resonate in an expressive way in contemporary times. This study, based on documentary and historical research on the relationship between humans and animals, with emphasis on strategies to combat zoonoses in the urban environment and interactions with water bodies, adopts a fabulative experiment based on selected journalistic materials, with the aim of promoting a critical reflection on the subject and explore new perspectives on these relationships. In this way, it is sought to tension both the relationships established with rivers and those cultivated with companion species – according to the concept of Donna Haraway – that inhabit their floodplains. This movement aims, above all, to re-signify consolidated and widely accepted imaginaries.

KEYWORDS: Urban rivers. Nonhuman animals. Urban imaginaries. Critical fabulation.


SIMON, Carolina Ribeiro. Rios silenciados, animais perseguidos: ecos de um urbanismo higienista [online], Campinas, ano 12, n. 28., jun. 2025. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/rios-silenciados/