Queimadas e transfronteiras na 66ª SBPC: “Não temos controle político sobre a natureza”

Os impactos transfronteiriços da fumaça resultantes de queimadas para cultivo de biomassa (cana de açúcar) e pastagens na Amazônia sul-ocidental são um problema que Brasil, Bolívia e Peru enfrentam juntos.

Reprodução Revista ComCiência

Daniela Klebis

Os impactos transfronteiriços da fumaça resultantes de queimadas para cultivo de biomassa (cana de açúcar) e pastagens na Amazônia sul-ocidental são um problema que Brasil, Bolívia e Peru enfrentam juntos. Política, ciência, natureza e sociedade se sobrepõem em diferentes dimensões a serem constantemente revisitadas e reconfiguradas, na busca de soluções tangíveis aos três territórios afetados. Possíveis articulações trinacionais foram discutidas no segundo dia do encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (66ª. SBPC), realizada em Rio Branco, Acre, entre 22 e 27 de julho de 2014. No debate, Saulo Ribeiro, físico brasileiro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o sociólogo boliviano José Martinez, da Universidad Autónoma Gabriel René Moreno (UAGRM) traçaram as dimensões sociais e naturais que envolvem as nuvens poluídas que transpassam fronteiras geográficas, sem passaporte ou identidade. “Com esses estudos, esperamos sensibilizar governo e sociedade para a necessidade de refletir sobre a questão das transfronteiras”, apontou Martinez.

As queimadas resultantes de períodos de seca são fenômenos mundiais sazonais. Porém, em países como Brasil, Peru e Bolívia, além dos períodos de seca, as queimadas fazem parte de uma cultura fortemente arraigada às práticas agropecuárias, especialmente no cultivo de cana de açúcar e no enriquecimento de pastos para gado. “Uma pergunta que nos fazemos constantemente é: tem fumaça no horizonte, mas onde está o fogo?”, provoca José Martinez, da UAGRM.

A obra Côncavo e Convexo do artista holandês M.C. Escher, foi usada para ilustrar a complexidade da discussão. O desenho provoca mentes e olhares com suas pequenas casas que constantemente mudam de lugar: ora vemos de dentro, ora vemos de fora, ora o que vemos é teto, mas então o que temos é telhado. Escher, assim, permite ver e rever nossas perspectivas e compreender que a forma que se apresenta é sempre inconstante e ambígua. E quando se fala da questão das queimadas nessa área de convergência entre Brasil, Bolívia e Peru, esse jogo de enxergar outras perspectivas é um desafio que extrapola nossas possibilidades ópticas, pois envolve muito mais que simplesmente reunir três governos para apontar culpados e apagar o fogo.

Saulo Ribeiro, do Inpe, aponta que ainda é um desafio quantificar a porção da poluição causada pelas queimadas. Porém, é possível, sim, monitorar os processos físicos de transporte por nuvens e compreender as origens, direções e os impactos ambientais. Por meio desses estudos observou-se, por exemplo, que o Brasil é o principal emissor de poluição resultante de queimadas na região da Amazônia sul-ocidental. “Modelos desenvolvidos no INPE, como o BRAMS, são capazes de monitorar diversos processos físicos de transporte de poluentes em nuvens por ventos. E os estudos desenvolvidos entre 2005 e 2010 indicam que o Brasil é quem realmente mais produz e exporta poluição aos países vizinhos”, aponta o pesquisador.

Ribeiro explica que, nos processos de queimada, além de gás carbônico e água, são também emitidas grandes quantidades de monóxido de carbono, dióxido de nitrogênio e outros hidrocarbonetos e aerossóis, que afetam o balanço das radiações, a camada de ozônio e agravam o efeito estufa.

O dióxido de nitrogênio (NO2), em especial, dá origem ao ácido nítrico na atmosfera, elemento que contribui para a formação de chuvas ácidas, além de ter profundas relações com problemas respiratórios em seres humanos. Sua alta concentração está associada ao fenômeno das megacidades, porém as queimadas em áreas agrícolas e florestais produzem quantidades muito mais elevadas do composto. “Em tempos de queimadas, os níveis de NO2 nas regiões agrícolas chegam a ser sete vezes maiores que nas megacidades”, destaca o pesquisador do Inpe. Todavia, ressalta Ribeiro, o transporte desses poluentes é governado pela circulação atmosférica, “não temos nenhum controle político sobre a natureza”.

Daí a necessidade de se enxergar diferentes perspectivas para um problema comum. José Martinez, em consonância com Ribeiro, também problematizou os limites que a ideia de fronteiras impõe. “A natureza não compreende fronteiras. Os homens não têm fronteiras. As fronteiras são criações politicas”, argumenta. O sociólogo ressaltou o exemplo de legislação transfronteiriça comum adotado pela França, Espanha e Andorra, na preservação da área dos Pirineus, que poderia servir de modelo para o Parlamento Amazônico.

“A agroindústria continua a expandir suas fronteiras agrícolas com fogo sobre as florestas. Na Bolívia, 8,5 milhões de hectares de florestas desaparecem com incêndios desde o ano 2000, porém a área de cultivo atual é de apenas 3 milhões de hectares. As florestas destruídas estão em processo de desertificação, sem nenhum potencial agrícola”, comenta Martinez. Segundo o sociólogo, a América Latina ainda alimenta a mesma prática agrícola do século XVIII. Observar os aspectos econômicos dessas articulações transnacionais, e procurar soluções que motivem o interesse das comunidades locais pelas florestas, é um ponto ressaltado por Martinez.

Contudo, a dimensão humana desses acordos deve sempre se manter central nas propostas ambientais, conforme aponta o pesquisador. “Deve-se buscar uma forma de articulação e equivalência administrativa que também promova as diferenças inerentes a cada região. Devemos manter a sociodiversidade para garantir a biodiversidade”, conclui.

*Daniela Klebis está cobrindo a 66ª. SBPC como parte das atividades da Sub-rede Divulgação Científica e Mudanças Climáticas da Rede CLIMA e INCT para Mudanças Climáticas.