Percepção e política na divulgação científica: em busca de um público-alvo
Renato Salgado de Melo Oliveira[1]
A percepção como forma de apagamento
O original não é fiel à tradução.
Jorge Luis Borges
As traduções das obras literárias ou são fiéis e só podem
ser ruins, ou são boas e só podem ser infiéis.
Carlo Dossi
“Mas quem é o seu público-alvo?”. É a pergunta que, quase inevitavelmente, emerge diante do divulgador científico. Essa dúvida faz parte de uma determinada estratégia de escrita: localizar e identificar seu público, resgatar suas particularidades e articular a escrita em benefício da clareza de comunicação. Afinal, segundo esses divulgadores, definir o público é fator fundamental para determinar a forma da escrita a ser usada, garantindo assim uma comunicação menos ruidosa. Caso seja para jovens, optariam por uma linguagem mais “descolada” e juvenil, já, se fosse para empresários, empregar-se-ia uma fala mais dinâmica e ágil, conectada com o mercado; enfim, uma forma dada para cada concepção de público pré-determinada.
A adequação entre a forma do uso da escrita e o público se justifica pelo interesse da comunicação-divulgação em atingir o seu público, fazer a ciência ser entendida por aqueles a quem a mensagem se destina: o público-alvo. Estabelecer um canal o mais limpo possível de ruídos, garantindo assim uma comunicação transparente entre o cientista e o público. Desse modo, a comunicação-divulgação científica se definiria como uma interface (MASSARANI, 2002) entre a ciência e o público.
A jornalista Mônica Teixeira (TEIXEIRA, 2002) também percebe que a comunicação se coloca como um intermediário entre a ciência e o público, assumindo para si um papel de tradutor da linguagem do cientista para a do público. Ou seja, expondo para um público “leigo” a complexidade das ciências em uma linguagem mais palatável. A causa disso, que Teixeira diagnostica, é que o divulgador – no caso, o jornalista científico –, trabalha com apenas uma fonte: a ciência, perdendo assim o referencial do contraditório – das versões da verdade – que são, para a jornalista, fundamentais para a construção da própria versão jornalística da verdade:
Não há contraditório na cobertura de ciência. Dispensamos o jornalismo sobre ciência de cumprir o mandamento que interdita a matéria feita a partir de uma única fonte porque entendemos que não há versões da verdade quando se trata de ciência.
[…]
Não havendo versões, nem contraditório, o que se reserva então ao jornalista que cobre ciência? A tarefa de “traduzir” com competência e fidelidade, de tal forma a ser compreendido pelo publico leigo, um específico conteúdo científico. Tal conteúdo contém uma verdade que a fonte revelará ao jornalista. Não cabe a ele, nesse peculiar recanto do território do jornalismo, duvidar desse “conteúdo”; cabe-lhe, tão-somente, recolher o logos e “traduzi-lo” em versão simplificada. (TEIXEIRA, 2002, p. 134-135).
Como enfatiza a própria jornalista, a ausência do contraditório não provém da prática científica e sim do trabalho de comunicação que esboça uma imagem monolítica e homogênea da vida de laboratório: não há contraditório na cobertura da ciência. Sendo a ciência a “fonte única” da verdade, a pergunta que me ocorre é: como a comunicação científica pode assumir uma forma tão pacificadora e dócil se a sua única fonte, a ciência, não é homogênea e está repleta de disputas e embates frequentes? Uma resposta pode começar a ser esboçada a partir do próprio texto de Teixeira. Segundo ela, o que ocorre é que o jornalismo se expressa através de concepções elaboradas dentro do próprio público, também denominado de senso comum:
A suspeita a respeito de políticos e a confiança em cientistas e em médicos que aplicam a descoberta científica, ambas enraízam-se no solo do senso comum; num certo repertório de crenças que, os jornalistas acham, é compartilhado por “todos”. […] Uma das maneiras pela qual o senso comum se diz é então por meio dos jornalistas. (TEIXEIRA, 2002, p. 137-138).
É importante percebermos que, para Teixeira, tanto a questão do senso comum quanto a ausência do contraditório na comunicação científica estão relacionadas com a posição em que a própria divulgação se coloca: a de tradutor da ciência. Segundo esse pressuposto, a ciência teria uma linguagem extremamente elaborada e complexa, que perturbaria o entendimento do “leigo”, causando apenas confusão e desentendimento. Caberia, então, ao comunicador expressar os enunciados científicos em uma linguagem mais popular e de fácil acesso. A partir dessa lógica, o desafio da divulgação científica se torna o de encontrar um ponto de equilíbrio ideal entre o que público possa compreender e o risco de banalizar ou mesmo distorcer o conhecimento científico. Essa perspectiva da tradução compreende a produção do conhecimento de forma unilateral e de sentido único:
CONHECIMENTO
CIÊNCIA → JORNALISMO → PÚBLICO
Exatamente no meio, como uma interface, um canal de tradução, a comunicação receberia da ciência os seus fatos, descobertas e avanços. Seria ela então um ouvinte/leitor & falante/escritor privilegiado, pois detém o domínio das duas línguas: a científica que falta ao público, e a popular que falta ao cientista. Caberia à comunicação, por sua vez, traduzir com a maior fidelidade possível ao cientista, nos termos mais simples possíveis ao público.
Gostaria de trabalhar um pouco com duas questões que o modelo de tradução nos acarreta. A primeira que tentarei expor é diretamente ligada ao público, a segunda, mencionada por Teixeira, está ligada às estratégias de escolha das formas de linguagem do enunciado da divulgação científica, e que mais adiante tentarei demonstrar que também possui correspondência com o público.
A primeira questão que trago é a do modelo de déficit. Esse modelo procura descrever qual é a função/utilidade/missão que o ato de divulgar possui. É importante notarmos que a forma que a divulgação usa para descrever a si própria é indistinguível da definição de público elaborada por ela mesma. Desse modo, no modelo de déficit, a divulgação viria para suprir uma falta de informação e conhecimento do público considerado leigo, determinando o público como um alguém a quem faltaria uma informação necessária:
Por muito tempo, houve um conceito bastante difundido de que caberia à divulgação científica preencher as lacunas de informação que o leigo tem em relação à ciência, isto é, que a divulgação científica deveria atender as pessoas leigas, consideradas analfabetas em termos científicos. Tal ideia gerou o termo scientific literacy, que é alfabetização científica, isto é, tornar o leigo informado das questões da ciência. […] essa visão surge como forma de suprir o déficit de informação da população leiga em relação à ciência, e gerou o modelo de déficit da divulgação científica […] (TIAGO, 2010, p. 10, grifo do autor).
Supõe-se que, diferentemente do modelo de déficit, o modelo da tradução não se afirmaria na falta de conhecimento e na ignorância do público, mas em uma postura aristocrática da ciência em se fechar em certos espaços (universidades e centros de pesquisas), distanciados ainda mais por um fosso linguístico (TEIXEIRA, 2002). Desse modo, o jornalismo cumpriria o papel de ponte entre os iniciados e os “leigos”. No entanto, o que funciona dentro do modelo de tradução é também a falta, talvez não mais a do conhecimento a ser suprido, mas agora da língua secreta, ou pior, a incontornável falta dos meios e instrumentos necessários para se aprender a linguagem secreta. Em ambos os modelos a figura do “leigo” continua a identificar a mesma situação: o público definido a partir da noção de falta, do vazio a ser preenchido pelo divulgador, que tem a responsabilidade, o dever cívico e ético de suprir com o conhecimento científico. No modelo de déficit falta conhecimento, no da tradução faltam palavras.
O modelo de tradução produz uma noção de público que teria o interesse em aprender sobre a ciência, uma demanda que precisaria ser saciada, ao mesmo tempo em que identifica uma fragilidade do próprio público em suprir por si essa demanda. Daí postulou uma noção de público que difere daquele do modelo de déficit, no qual o público é visto como uma massa desinteressada e passiva. Apesar de reconhecer um suposto interesse coletivo, o modelo de tradução acaba por apontar uma vulnerabilidade estrutural em sua noção de público, que seria a deficiência da linguagem:
É impossível, quase sempre, apresentar em linguagem profana um raciocínio que só pode ser assimilado com o auxílio de um simbolismo próprio. […] A linguagem comum, a que é utilizada para a vida de todos os dias, tem suas raízes profundas no senso comum. A matemática, como a filosofia, recorre a conceitos, dependentes, em certos casos, de uma espécie de senso diferente e que assim não se adaptam às condições precárias da língua habitual. Dá-se aqui, […] o que se observa em um grau muito menor com as traduções literais. A passagem de certas expressões, que correspondem à mentalidade profunda peculiar a um povo, e que representam exatamente o seu modo de sentir, não pode ser feita convenientemente para outras línguas, que se mostram assim deficientes. A tradução em linguagem vulgar de concepções matemáticas encontra diante de si uma dificuldade desse gênero, mas em proporções muito maiores. Ela terá que ser forçosamente incompleta e defeituosa. Para bem compreender a literatura de um povo, é necessário conhecer a sua língua. Um dos argumentos fundamentais dos partidários do estudo do grego e do latim é mesmo esse, que a essência do pensamento dos gregos e dos romanos, formando a origem de nossa cultura, só pode ser assimilada por quem seja capaz de lê-los nos textos originais. Para bem acompanhar os raciocínios dos matemáticos, é, a fortiori, indispensável compreender a linguagem que eles empregam. (ALMEIDA, 2002, p. 65, grifo do autor).
Para Miguel Osório de Almeida, a “linguagem profana” do cotidiano não é capaz de dar conta de um raciocínio tão apurado como o usado pelos cientistas. Pois as palavras profanas são habitadas pelo senso comum da fala popular. Diferente da ciência capaz de produzir um “simbolismo próprio”. Assim como a lógica do jornalismo exposto por Teixeira, o problema é habitar um senso comum, um lugar onde o pensamento crítico e o raciocínio elaborado são substituídos pelo pensamento vulgar, uma homogeneização da ideia produzida pela própria massa, do qual o jornalismo se torna o porta-voz. Almeida esclarece que, assim como acontece com a literatura em menor grau, algo se perde no gesto de tradução científica para o público. No caso da literatura é meramente um problema de diferença horizontal, já que as línguas em questão apenas se distinguem em termos de “essência”. Já para o caso da ciência o resultado é mais prejudicial, pois se dá uma variação vertical, hierárquica, entre ideias superiores e inferiores. Esse público produzido pelo modelo da tradução nos lembra do personagem Fabiano, de Vidas Secas (ou talvez seja apenas uma diferença de “essência”):
Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira:
— Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme. (RAMOS, 1997, p. 27)
Uma fala que gagueja não por atingir um limite da expressão que abole o seu caráter representativo (DELEUZE, 1997), mas, pelo contrário, uma gagueira que reafirma o limite da própria existência e restitui o império da representação. Gagueira não como potência, mas sim como espasmos da subordinação ao poder. Não fala porque o poder e o saber impõe um silêncio bestial, que torna, dentro de sua própria ordem discursiva, o público (Fabiano) profano, negando-lhe o raciocínio refinado do cientista. Diante da ciência e sua autoridade (farda), a ideia de público engasga para preservar os lugares do poder. O cientista não tem a fala pouca de Fabiano e já não pode ser compreendido por ele. Fala caduca que impede o homem inferiorizado de dizer o mundo, de se assumir sujeito. Fabiano, como o público dos modelos de tradução e de déficit, são indivíduos mais do que são sujeitos. Por isso, esvaziados da potência da fala. Não a fala do representativo da identidade: o dar a voz, a interatividade, a participação opinativa; mas sim a fala do sujeito, aquela que possui predicativo, potência do acontecimento – a palavra como verbo.
A tradução, no caso da divulgação científica, se faz para a língua inferior do outro. Para aquele que não possui seu próprio território, o que está na lógica da formulação do enunciado é a questão da posse do território. O nomadismo (DELEUZE; GUATTARI, 1995) não chega a ser uma hipótese. Uma lógica, portanto, que só compreende o posseiro e o excluído. Por que, então divulgar? Por que então insistir sempre na fala do colonizador? Por que apelar para essa figura, o divulgador, que nos propõe um caminho único?
Mesmo compartilhando de costumeiras críticas entre si, os divulgadores científicos e muitos cientistas concordam da importância da comunicação, em ensinar a ciência. Projeto nobre, carregado de vera causa. Um dos grandes nomes da divulgação foi o cientista Carl Sagan, que ao defender a atividade do divulgador (SAGAN, 2006), acaba por formular quatro justificativas que legitimam o ato da divulgação da ciência. Essas justificativas, apesar de apresentadas por Sagan, atravessam grande parte dos divulgadores que se pautam pelo modelo de tradução e de déficit.
A primeira justificativa é dada pela verdade em si, ou seja, a ciência seria então o melhor meio de se conhecer a verdade do mundo e todos possuem o direito de conhecê-la, assim como as descobertas e o próprio método cientifico (visto como o meio mais seguro de se atingir a verdade). Nada mais que o próprio “senso comum” apontado por Teixeira. A segunda justificativa é política: a democracia. Neste caso a ciência é defendida como sendo por excelência uma instituição democrática em nossa sociedade, um espaço onde a palavra de uma pessoa é julgada segundo os fatos e a capacidade de representá-los, e não pela posição social do enunciador. Além disso, qualquer verdade pode ser derrubada diante de outra que se mostre mais representativa do fato. Desse modo, ensinar a ciência e seus métodos é também ensinar a prática da democracia para a população, além de possibilitar a participação nos debates políticos que envolvam questões científicas.
A terceira justificativa compreende a ciência como uma presença total e irreversível em nossa sociedade e cotidiano, presente em quase todos os objetos que usamos, quebramos, descartamos, consumimos, interagimos, desejamos, entre tantas relações possíveis e impossíveis em nossas vidas. Portanto, é necessário ensinar a ciência e os seus métodos para que as pessoas possam viver e usufruir melhor desse admirável mundo novo. Por fim, a quarta justificativa, que afirma a divulgação científica como um investimento futuro, para preparar e incentivar as crianças a seguirem a carreira científica. Encantá-las pela busca da verdade e pela prática do descobrimento. E, principalmente, mostrar que a escolha desse caminho profissional é uma possibilidade como qualquer outra. Essas quatro justificativas não são isoladas entre si, nem absolutas, operam em conjunto, de maneira indistinta, o que só aumenta a sua força argumentativa.
A vera causa justifica o risco que corre o jornalista/tradutor. E nos coloca a segunda questão: a fidelidade. O risco do jornalista/tradutor é trair o que Almeida nos propõe como uma suposta essência presente na língua superior dos cientistas, impossível de ser preservada na língua profana. Como dito anteriormente, é essa lógica, a da tradução, que acaba por produzir um modelo de enunciado para a divulgação científica que fixa as posições: a ciência como fonte, o jornalista como mediador e o público como alvo.
Enquanto o cientista e a ciência demarcam o ponto de origem do conhecimento “puro” e verdadeiro, outro polo se estabelece: o do público, extremo do senso comum e da falta. O comunicador estaria no meio, intermediando essa relação, mas, por vezes, acaba produzindo certos “refluxos” que direcionam o senso comum do público em direção à ciência, provocando ruídos e descaracterizando um suposto sentido obrigatório. Essa visão nega o próprio cientista como produtor de sensos comuns da ciência, ou mesmo do público como criador de diferenças potenciais no conhecimento científico.
Teixeira (2002) propõe que a adoção da ciência como fonte única (ela considera a perspectiva de uma abordagem homogeneizante da ciência), ou a simplificação da controvérsia através da apresentação de “lados” diferentes de uma verdade, formulada a partir do que ela propõe como “senso comum”, são estratégias de produção adotadas pelo modelo de tradução e de déficit, às quais não correspondem as práticas de um “bom jornalismo”. Ou seja, a solução para o problema da divulgação, segundo Teixeira, está na própria experiência da prática jornalista, ao efetuar uma cobertura mais ampla e heterógena, vinculando outras áreas, como economia e política, para o entendimento do conhecimento científico.
Ainda segundo Teixeira, o que ocorre no jornalismo de tradução é a busca por um ideal que se baseia no eclipse da voz do jornalista pela voz do cientista. Porém, esse eclipse, que é feito em nome de uma postura objetiva, acaba por ser uma ilusão de ótica. Na verdade, trata-se do contrário: a projeção da voz do jornalista na voz do cientista, ou seja, o jornalista vai escolher para a sua matéria o cientista que estiver em harmonia com as suas próprias ideias a respeito do assunto, intensificando, assim, o domínio do senso comum na comunicação científica. Essa afirmação de Teixeira implica em uma contradição: a noção da ciência como “fonte única”, na medida em que esse efeito de univocidade é produzido pelas escolhas do divulgador e não pela ciência em si. A saída, para Teixeira, seria o profissional de divulgação se inspirar no “bom jornalismo”, que dá voz para as contradições e aceita a voz do jornalista como produção de uma versão do fato:
Um jornalista faz bem seu trabalho, nessa escola [a do jornalismo científico], quando usa seu melhor discernimento para chegar a uma versão das verdades das fontes, em que estas últimas se expressam não na exclusividade de seu ponto de vista, mas no diálogo que o jornalista promove entre elas, manifesto na narração, e do qual o jornalista, ao consagrá-lo na forma de um texto, torna-se parte. (TEIXEIRA, 2002, p. 135 – 136).
A partir do texto citado, temos que a “boa” prática do jornalismo é aquela que produz em seu exercício uma plenária, na qual as diversas vozes institucionais reconhecidas e envolvidas debatem entre si, inclusive a do jornalista. Uma visão de inspiração democrática a respeito da divulgação científica, mas que mesmo assim deixa algo de fora: o público.
O modelo de tradução não é só uma forma ou prática da divulgação científica, é também uma concepção política, discursiva e estética de público. A noção de público não preexiste à divulgação, mas é gerada no interior de seus discursos. Um público, como dito anteriormente, a quem falta algo – no caso, palavras. Assim, esse modelo de como abordar e divulgar a ciência torna-se uma questão de como estabelecer a interface entre público e ciência. – O que da ciência é importante para o público saber? E como conseguir extrair isso? E assim efetuar uma “boa” divulgação. – O problema que se desdobra daí é que o público torna-se uma constante dada, e tanto a ciência como a prática da divulgação é que são as incógnitas a serem desvendadas. Apesar do texto de Teixeira levantar uma importante crítica ao modelo de tradução, ainda parte de pressupostos dados a respeito do público e da noção de produção de verdade e realidade que gostaria de colocar em evidência ao longo deste texto.
Teixeira compreende o problema da “fidelidade” como uma questão pertinente aos usos das fontes jornalísticas. Partindo da ideia de que a adoção de uma fonte única, ou o uso descuidado de fontes múltiplas, acaba por produzir uma versão insuficiente da verdade, e que para suprir essa insuficiência é necessário lidar com múltiplas fontes produzindo entre elas um debate. O que se desdobra disso é que a questão de “fidelidade” não é superada, mas reafirmada na necessidade de sua conservação. Desloca-se da fidelidade em relação ao conhecimento científico para a fidelidade em relação à realidade das controvérsias e da contextualização. Muda-se apenas o lugar da origem do real.
A noção de fidelidade se desdobra para além da questão da tradução e passa a se confundir com uma perspectiva utópica da ciência, com aquilo que Teixeira chamou de “senso comum”, desarticulando uma possível análise mais complexa em favor de leituras romantizadas que reafirmam uma descrição evolutiva, utópica e progressiva da ciência. Isso ocorre, na concepção de Teixeira, como um gesto de fidelidade, pois, o reconhecimento social da prática científica em nossa sociedade passa a ser indistinguível de sua romantização:
É pressuposto que, por meio da ciência, a humanidade conquistou para si o poder de engenheirar o mundo, de dominá-lo e colocá-lo a seu serviço, para extrair dele sua sobrevivência. Nem jornalistas, nem cientistas, nem o chamado público em geral desejam ver esse poder – que acalanta, ampara e consola – em xeque. (TEIXEIRA, 2002, p. 135).
É justamente dentro desse esquema de romantização da ciência que o público volta a aparecer, mas como plateia para fortalecer a narrativa baseada no “senso comum”. A trindade da divulgação científica (público, jornalista e cientista) admiram com um misto de respeito e assombro os resultados da ciência. Assim, a fidelidade se torna a moeda com que se paga as grandes conquistas da ciência, já a traição corresponde a uma dívida cobrada nos momentos de maior fragilidade humana: “quando você está doente, você procura um médico ou um curandeiro?”, questiona a voz cínica do defensor utópico da ciência.
Retomando uma citação de Teixeira feita anteriormente, “uma das maneiras pela qual o senso comum se diz é então por meio dos jornalistas” (2002, p. 138), podemos perceber agora que a cadeia se restabelece em outro sentido, diferente daquele que vimos para a circulação do “Conhecimento” dentro do modelo de tradução. O que notamos no presente texto de Teixeira, mas que não é explicitado pela autora: o jornalista usa da fonte (cientista) para supostamente falar no seu lugar e preservar a objetividade. No entanto, a voz do jornalista é, também, a própria voz do público: a afirmação do senso comum, e é a partir dela que narra a ciência.
VOZ
PÚBLICO → JORNALISTA → CIENTISTA
O que se tem, ao analisar o texto de Teixeira, é que se estabelece uma direção pela qual deve fluir a informação (do cientista para o público) e, no sentido contrário (do público para o cientista), as formas de distorção dessa informação. Uma troca injusta: a ciência dá o seu grandioso saber, e o público o seu “senso comum”. É desses dois presentes que é feita a linguagem de interface da comunicação: entre a verdade e a distorção.
A pesquisadora Luisa Massarani denomina de “visão mistificada da ciência” aquilo que Teixeira chama de “senso comum”. E também aponta para o grande equívoco da banalização da ciência feita pela divulgação. Porém, diferentemente de Teixeira, não indica como solução a pluralização das fontes, e sim uma conjunção nova de interesses e objetivos que deveriam nortear o divulgador:
(…) De uma maneira geral, o jornalismo científico brasileiro ainda é, em grande parte, calcado em uma visão mistificada da atividade científica, com ênfase nos aspectos espetaculares ou na performance genial de determinados cientistas. A ênfase nas aplicações imediatas da ciência é também generalizada. Raramente são considerados aspectos importantes na construção de uma visão realista sobre a ciência, como as questões de risco e incertezas, ou o funcionamento real da ciência com suas controvérsias e sua profunda inserção no meio cultural e socioeconômico. (MASSARANI, 2002, p. 63).
O que se tem agora é um problema de representação da realidade, e não mais apenas do conhecimento – o que, por sua vez, também é uma questão de fidelidade. Não mais a fidelidade à ciência utópica que essas duas pesquisadoras estão criticando, narrativa que acaba por produzir apenas uma divulgação/propaganda – no sentido mercadológico – da ciência, o de vender as grandes descobertas e de celebrar as conquistas. O que se tem a partir dessa crítica é uma fidelidade ao real: Teixeira e Massarani desejam um modo de formular uma versão mais confiável e realista da verdade. Como se pudéssemos repetir as próprias palavras em que foi escrito o mundo. Palavras-mundo essas que caberia à ciência descobrir, ao jornalista divulgar e ao público conhecer. E assim, não mais divulgar apenas o conhecimento científico, mas a própria realidade em que se insere e é produzida essa ciência.
As considerações de Mônica Teixeira e de Luisa Massarani podem ser lidas dentro de uma crítica muito importante ao modelo de tradução e déficit, no entanto, essas análises parecem dar continuidade ao processo de apagamento e esquecimento do público dentro da comunicação e divulgação. Isso acontece pois o debate é feito dando maior atenção à relação entre a divulgação e a produção do conhecimento científico. O público é visto como dado, pronto, acabado, e não como elemento produzido no interior do próprio discurso da divulgação científica. Sendo assim, o público é pensado como objeto de um predicado científico, do qual o sujeito é o cientista. O apagamento é também uma forma de domesticação que reduz o público a um personagem passivo na complexa trama de produção e efetuação do conhecimento científico. A continuidade dessa abordagem é compreensível, na medida em que o apagamento ocorre em algum momento anterior à elaboração da crítica ao modelo de tradução e déficit, e se perpetua como natural.
O apagamento do público não é um erro, ou um descuido, mas uma estratégia política e de governamentalidade que se efetua no nível discursivo, não através de uma vontade subjetiva, mas pela relação entre o poder, o saber e as instituições. Esse apagamento ocorre ao colocar o público como o fim de um processo de divulgação, que se inicia com a produção do conhecimento no polo do cientista, sua devida tradução na interface e sua finalização no polo do público, que acaba se tornando, nessa lógica, um consumidor recebendo um produto acabado. O público e a divulgação não são vistos como elementos capazes de produzir ou transformar o conhecimento, experimentar ou relacionar-se com o mundo, criando, assim, novos modos de existência. A divulgação não é concebida no sentido de produzir uma diversidade, uma multiplicidade, mas sim um único povo, homogêneo e definido dentro de recortes estatísticos e descritivos.
A proposta desse texto é apontar para uma percepção do público que não se dê pela observação e a descrição de um ser pronto e acabado no mundo, que preexista à própria comunicação. O público existe, primeiro, como personagem no interior da discursividade da divulgação científica. Portanto, é necessário, inicialmente, notá-lo como sendo produzido dentro das estratégias comunicativas, na relação com o saber e com o poder. Segundo, uma existência de um público exterior ao discurso da divulgação, entendido aqui mais como povo do que como público, e que não precisa da divulgação para produzir sua emancipação, ou mesmo seus modos de existência. Esse público-povo não pode ser perceptível pela determinação de sua forma acabada e dada, através de estatísticas, ausências ou identidades. A sua percepção só é possível através de uma sensibilidade das bordas, capaz de ser afetada pelas potências próprias do público, sua força de transformação e das conexões estabelecidas entre heterogêneos. A multidão plural, exterior ao discurso da divulgação, apresenta uma resistência em ser definida e identificada pelos saberes como público, tornando a própria efetuação da comunicação unilateral e insuficiente diante de seu projeto político. Essa frustração retorna como acusações de irracionalidade, incapacidade e negacionismo.
Todavia, se o apagamento do público não é um erro, o que o justifica? A comunicação unilateral (incluindo a tradução e o déficit) endossa um funcionamento muito específico do poder, aquela que Foucault chamou de governamentalidade (FOUCAULT, 2006 & 2010). Essa estratégia do poder se caracteriza pelo domínio de um saber (geralmente a economia), que através de seus dispositivos de segurança (meios que servem para a modulação, controle, previsão e mudanças estatísticas e probabilísticas) exerce a governança sobre a população. Proponho pensarmos, no contexto da divulgação científica enquanto políticas públicas, o conceito de público como semelhante ao de população no caso da governabilidade. A percepção pública funciona como um dos dispositivos de segurança que busca encontrar pontos de vulnerabilidade, resiliência e adaptação da população para as políticas públicas atravessadas por projetos científicos, como é o caso das mudanças climáticas, do controle de epidemias, fertilidade e reprodução, entre tantas outras que afetam a existência do humano em seu nível mais biológico. Desse modo, o público emerge como objeto a ser governado e não como mais um sujeito da governabilidade democrática.
As quatro justificativas que legitimam a prática da divulgação científica levantadas por Carl Sagan já apontavam para a relação entre o investimento político democrático e a divulgação da ciência, porém em um contexto histórico diferente do nosso. A complexidade e heterogeneidade dos grandes temas científicos atuais, como o das mudanças climáticas, requerem novas formas de engajamento do público. Não basta mais a superação do “analfabetismo científico” para o fortalecimento das práticas democráticas e de cidadania, além da captura de interesses para a formação de futuros cientistas. Diante da catástrofe, o que está em jogo é o próprio futuro do mundo (como atualidade do capitalismo) e da espécie humana (como modo de existência capitalista, aquilo que Zygmunt Bauman (2008) chamou de “vida para consumo”) de maneira fatalista, criando a demanda por formas mais intensivas de participação.
Seria conveniente, para a conclusão desta análise, dizer que a divulgação científica atravessa uma crise em relação ao público, porém seria uma forma de reduzir essa problemática. A crise em relação ao público não é uma questão momentânea, mas o próprio sentido que orienta o pensamento dentro da divulgação científica. Quando a divulgação não esteve em crise? Talvez seja necessário buscar uma percepção não do público como ser por si, mas sim como conceito interior da própria divulgação. Ficcionar o público para que ele possa deixar de ser uma fantasia utópica, por mais contraditório que a princípio possa parecer essa afirmação. A busca por um público-alvo pode se tornar a busca por um público alvo, um público ainda em branco, como a tela de um pintor, ainda por vir, um povo, uma comunidade heterogênea (de vivos e não vivos), capaz de escapar da condição de público, de população. Essa mudança não precisa ocorrer no público em si, ele já é emancipado, nos alerta Rancière (2010). Ela precisa ocorrer, sim, dentro da divulgação científica enquanto saber, prática e experimentação.
O intermezzo e o público alvo
— Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigia-a, murmurando:
— Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho capaz de vencer dificuldades.
Chegara naquela situação medonha — e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.
— Um bicho, Fabiano (RAMOS, 1997, p. 18).
O processo de apagamento do público produzido na divulgação científica está relacionado com uma estratégia de governamentalidade que afirma a divulgação exclusivamente como política pública. Nesse processo, o público passa a ser entendido como população, ou seja, como objetivo central da governança. Dentro do contexto das sociedades de controle, não é interessante uma população completamente passiva e inerte; a iniciativa, o engajamento e o interesse da população passam a ser encaradas como forças modeláveis para a efetuação das políticas públicas. No entanto, o público mantém algo de Fabiano: devem efetivar um saber alheio, conhecer uma ciência alheia, mantém-se alheio à produção científica. O público é um bicho, julga-se cabra.
O desafio que se coloca diante da divulgação científica, caso se deseje atingir uma concepção potente de púbico, é inventar, dentro da animalidade (cabra), uma experiência de percepção que escape ao modelo antropocêntrico da ciência, que não se limite a uma taxonomia das identidades. Os estudos multiespécies (DOOREN, KIRSKEY, MÜNSTER, 2016) podem nos fornecer possibilidades de ação diante dessa aposta. Retomando a consideração de Luisa Massarani, que afirma a divulgação científica como uma interface (algo no meio), buscamos pensar táticas cosmológicas (LATOUR, 2014) de habitar, perceber e relacionar-se com esse meio. Produzir uma divulgação como intermezzo: um acontecimento que habita um “entre”, um plano de relações e encontros animado pela conjunção “e”, e não pela “ou” (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
Os estudos multiespéceis se concentram no “entre”, nas zonas de fronteiras e transformações capilarizadas por toda a rede, apostando em uma divulgação científica que se experimenta como encontro entre heterogêneos, invenção de novos modos de estar junto, como a criação de processos co-evolutivos, de co-tornar-se. Esse “entre” não está dado, não se trata apenas de definir os personagens preexistentes (público, cientistas e comunicadores) e entrelaçamentos (tradução, déficit) definidos de antemão. Ocupar essa zona do intermezzo é apostar que comunicar é emaranhar-se com diferentes, abrir-se às experimentações de criação de zonas inéditas, de vizinhanças-contatos, “inter-esses” que, a cada vez, mostram-se diferentes, que geram interseções móveis, criando uma condição política e ética propícia à vida, fazendo com que coordenadas, posições, papéis, identidades se intercambiem e transformem, instaurando novas políticas perceptivas a abrindo novos modos de existência das ciências, do público e da política.
O conceito de Isabelle Stengers, “captura recíproca” (DOOREN, KIRSKEY, MÜNSTER, 2016, p. 14), nos ajuda a problematizar a experiência de comunicação desejada. Quando a questão da divulgação científica é assumida como instrumento de solução e conclusão de um trabalho, parte final de efetivação de uma política pública, ela se torna um caminho de mão-única em que o conhecimento deve ser depositado na comunidade para seu próprio benefício. Acontece que o público apresenta sua própria potência criativa e de vida, que resistem a essa mera absorção linear. Opera nessa potência uma “captura recíproca” em que a identidade dos atores é implodida pela expressão de um devir, de um tornar-se mútuo, co-evolutivo, que transforma tanto a comunidade quanto a ciência, os cientistas, o meio-ambiente, o clima. Desse modo, o público não pode ser encarado como a parte final da comunicação, mas como ator ativo, criador e transformador, não só de si e das condições socioambientais que o cercam, mas da própria relação da ciência com o mundo.
Ao se aproximar de Donna Haraway, os estudos multiespécies problematizam o conceito de “espécie”, o que pode ser potente para pensarmos a identidade do público, esse bicho cabra. A proposta da divulgação científica unilateral se baseia em uma “taxonomização política” dos atores envolvidos no processo de comunicação, a trindade cientista, público e divulgador. O lugar de definição desses atores (os atores são sempre humanos) é rígida, especificando e homogeneizando esses personagens e determinando o lugar que ocupam na estratégia (e, desse modo, as suas relações possíveis). Os estudos multiespécies assumem um desejo de uma ecologia mais radical, que busque a heterogeneidade das relações cosmológicas e uma compreensão do mundo que escape à taxonomização antropocêntrica, como nos sugere Haraway, e, desse modo, propõem um entendimento da noção de espécie que não está baseado na identidade singular, mas no campo de relação produzida. “O termo ‘espécies’ nos ‘estudos multiespécies’ expressa ‘modos de vida’ particulares e qualquer reunião relevante de um conjunto de parentes e/ou tipos” (DOOREN, KIRSKEY, MÜNSTER, 2016, p. 43). Portanto, a “espécie” é entendida a partir dos seus modos de existência e de devir.
Os estudos multiespécies (DOOREN, KIRSKEY, MÜNSTER, 2016) investem na ideia de “artes de perceber” proposta por Anna Tsing, que pode nos proporcionar uma nova aproximação com a percepção pública, deslocando-nos da oposição binária cientista/público (que também é de governante/governado). A proposta dessa arte é fundamentar uma nova relação entre as oposições que não sustente os polos, nem os anule completamente em favor de uma planificação relativista. A ideia é sair da taxonomia antropocêntrica para entrar em uma etnografia (que é também uma etologia e uma “etologia das coisas”). Assim, a percepção do público deixar de ser a descrição de uma identidade dada, a delimitação de um corpo limitado, para se tornar a emergência de uma rede de relações e transformações constante. O público não existe enquanto objeto em si, dotado de uma identidade plena. Ele é percebido justamente nestes “compromissos e colaborações com cientistas, agricultores, caçadores, povos indígenas, ativistas e artistas, até o desenvolvimento de novas formas de investigação etnográfica e etológica” (DOOREN, KIRSKEY, MÜNSTER, 2016, p. 43).
A partir dessas propostas táticas de pensamento dos estudos multiespécies, acabamos encontrando o conceito de “imersão apaixonada” (DOOREN, KIRSKEY, MÜNSTER, 2016), que pode ser entendido através do diálogo entre a “arte de perceber”, a “espécie” e “a captura recíproca”, e que podemos experimentar como uma forma potente de criar o intermezzo. Assumindo, assim, a percepção como um estado do pensamento e não como uma ação de um sujeito, perceber torna-se, então, um movimento duplo de constituir uma sensibilidade exterior a si da coisa, e, a partir dela, transformar a si próprio e o percebido. O desafio para a percepção do público na divulgação cientifica talvez fosse o de pensar em uma “imersão perspectiva”, no qual não há um público pronto para ser percebido, mas a experiência da percepção se torna ela própria um acontecimento criador e multiplicador, buscando transformar toda percepção em um devir.
Gilles Deleuze (2007), inspirado pelo pintor Bacon, nos alerta que diante do artista não há um quadro em branco, mas sim uma superfície rabiscada por todos os clichês, por todos os enunciados que o precedem. O trabalho do pintor é raspar o quadro em busca dessa tela em branco. Talvez possamos pensar o mesmo a respeito do público. O divulgador não tem diante de si um público-alvo para quem deva escrever, ele deve antes raspar, cavar com as palavras, por um público alvo, branco como a tela. Um público que não é determinado por todos os clichês que colocamos desde o início para podermos nos aproximar: idade, gênero, classe social, nível escolar, identidade etc.. Mas sim, um povo de intensidade da escrita, indefinível, em transição. Um povo que abraça o futuro não como promessa a ser esperada, mas como campo de possibilidades e de invenções. A percepção desse público alvo não se daria por uma taxonomia pré-determinada que busque encontrar no mundo categorias inventadas de antemão, mas uma etnografia especulativa, fabulatória. Essa etnografia não cumpriria o papel de interface entre mundos culturais distintos, mas sim um esforço fabulatório da ficção (DELEUZE, 1997), que lançaria a divulgação em um sentido futuro, habitado por novos modos de existência, novos povos, novas relações heterogêneas que não cabem em identidades prontas.
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Recebido em: 15/07/2017
Aceito em: 01/08/2017
[1]Graduado em História pela Unicamp, especialista em Jornalismo Científico e mestre em Divulgação Científica e Cultural pelo Labjor/Unicamp, doutor em Teoria e Crítica Literária pelo IEL/Unicamp. Atualmente é pós-doutorando com bolsa CAPES no Labjor/Unicamp e este artigo é resultado dos trabalhos desenvolvidos nos projetos de pesquisa: Mudanças climáticas em experimentos interativos: comunicação e cultura científica (CNPq No. 458257/2013-3); Tema Tranversal “Comunicação de risco, divulgação do conhecimento, Educação para sustentabilidade” do INCT Mudanças Climáticas Chamada (INCT–MCTI/CNPq/CAPES/Fapesp nº 16/2014); Sub-projeto “Sub-rede Divulgação científica” da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (convênio FINEP/ Rede CLIMA 01.13.0353-00). E-mail: renatosmo@gmail.com
Percepção e política na divulgação científica: em busca de um público-alvo
RESUMO: O presente texto propõe um debate a respeito da percepção de público dentro da divulgação científica. A análise que se segue parte da ideia de “público” como um conceito produzido no interior do discurso da divulgação científica, baseado na concepção da comunicação científica como instrumento de colaboração para a execução de políticas públicas. Em um primeiro momento, o artigo explora os modelos de tradução e de déficit como produtores de uma noção específica de público, definindo-o através da falta: ou de uma linguagem adequada, ou de conhecimento, acarretando o “analfabetismo científico”. Investindo em novas possibilidades, o texto segue com o esforço de ressignificação do conceito de “público-alvo”, como “público alvo” (em branco, assim como uma tela de pintura vazia). Esse trabalho de ressignificação se inspira nos estudos multiespécies (DOOREN, KIRSKEY, MÜNSTER, 2016), apostando na elaboração de uma noção de público heterogêneo, baseado não na identidade individual, mas sim nas diversas relações de coexistência e evolução mútua, nos modos de se estar juntos.
PALAVRAS-CHAVE: Público. Percepção pública. Divulgação Científica.
Perception and politics in science communication: in search of an audience
ABSTRACT: The present text proposes a discussion about the perception of public within the scientific communication. The following analysis starts from the idea of “public” as a concept produced within the discourse of scientific dissemination, based on the conception of scientific communication as an instrument of collaboration for the execution of public policies. In the first place, the article explores translation and deficit models as producers of a specific notion of the public, defining it through lack: either a proper language or knowledge, leading to “scientific illiteracy”. Investing in new possibilities, the text continues with the effort to redefine the concept of “público-alvo” as “público alvo” (blank, as well as an empty painting canvas). This work of resignification is inspired by the multispecies studies (DOOREN, KIRSKEY, MÜNSTER, 2016), betting on the elaboration of a notion of heterogeneous public, based not on the individual identity, but on the diverse relations of coexistence and mutual evolution, on modes of being together.
KEYWORDS: Public. Public perception. Science communication.
OLIVEIRA. Renato Salgado de Melo Oliveira. Percepção e política na divulgação científica: em busca de um público-alvo. ClimaCom [online], Campinas , ano. 4, n. 9, Ago. 2017 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=7288