Michele Fernandes Gonçalves| Água viva
Título: Michele Fernandes Gonçalves | Água Viva
Sobre a linguagem poética, os projetos e a contingência
Parece-me que a contingência não encontra lugar na nossa “vida como projeto”, porque exatamente ela – a contingência – tem a ver com uma dimensão temporal da vida que é solapada pelo projeto, o qual se ancora, sobretudo, no saber sobre o que chamamos passado e na ilusão – não inocente e sempre investida pelo poder – sobre o controle do que pensamos como futuro. Nesse ínterim, a dimensão que desaparece é a do momento presente – não o presente como tempo intermédio entre o que já foi e o que virá, mas como todo e único tempo possível: o instante encarnado em que as coisas tem lugar e importância, em que de fato acontecem, e em que temos de, ou desejamos, responder a elas. O projeto se torna um problema na medida em que se deposita nele demasiadas expectativas de real, ou seja, na medida em que se pretende que adquira graus outros de existência que a dele mesmo como projeto, em seu campo próprio, seja imaginativo, seja material. Dito de outra maneira, o problema não é ter um projeto – pois que ele serve, se tomado na perspectiva das coisas que funcionam pelo grau mesmo em que existem, ou que “não existem”, de força propulsora para o agir necessário ao momento presente e ao mesmo tempo de força apaziguadora à ilusão de linearidade temporal. Projetar, nesse sentido, serve apenas e unicamente para prover uma medida risível ao próximo passo e para gerar a sensação de que, mais ou menos, é possível seguir frente ao caos do mundo; o problema é viver sob a égide desse projeto, tomá-lo como realidade vindoura, acreditar que possua uma função outra além daquela que realiza – e finda – no ato mesmo de sua criação. Como me disse certa vez Ana Godoy, uma grande intelectual que tenho a sorte de conhecer, “o problema é acreditar que os projetos serão algo mais que projetos”. O que perdemos quando essa dimensão do tempo da vida é capturada por essa crença é a possibilidade de agir sobre as coisas que acontecem, de responder a elas nos termos – e com as ferramentas – do presente. Nesse caso, estamos sempre agindo em função de algo que não são as coisas em si, mas o que se projetou sobre elas, ou o que não se cumpriu a respeito daquilo que se projetou. É como se estivéssemos sempre agindo sobre um tempo outro que não o tempo em que as coisas acontecem.
As linguagens que respondem, e por outro lado produzem, diretamente ao saber – e consequentemente ao poder – (a das ciências, da informação, da religião e da política, mas também a das artes, principalmente quando se subordina à institucionalização e, consequentemente, ao saber-poder) atuam fortemente nessa captura do tempo das coisas, atua fortemente na partilha do sensível, e muitas vezes sabota a possibilidade de agir e responder diferentemente a elas– ou seja, de maneira a escapar, ao menos nalguma medida, das lógicas dominantes.
Não sei se seria excessivo dizer, mas penso que seria interessante pensar (sobre), que a linguagem funciona, ou pode funcionar, como um tipo de armadilha da experiência (do tempo). Mas é também ela – a linguagem – que, por outro lado, – e no caso específico da linguagem poética –, é capaz de criar outras percepções do tempo e, portanto, outras maneiras de vive-lo e de responder às coisas que nele acontecem. São as palavras (não apenas elas, mas em grande medida elas) aquelas que, na nossa experiência coletiva do mundo – a do ser falante –, criam e modificam o próprio mundo. Portanto, são elas também que criam, modificam e elaboram o tempo, o espaço, a matéria, a verdade, a realidade. É por elas que somos capazes de dizer de outra maneira, e com isso dizer outras coisas, e por esse dizer criar coisas novas, abrir outras sensibilidades, e por elas tornar possíveis mundos outros, tempos outros, poéticas de vida outras – capazes de dar conta – ou, no melhor dos casos, de nunca dar conta – do viver.
A linguagem poética – talvez com mais afinco que outras, mas sem nenhuma garantia prévia de sucesso – produz novos ritmos e, a partir deles, constrói figuras desconhecidas, ou com um grau maior de opacidade, nas quais os sentidos podem variar sem encontrar uma representação imediata. Conquanto os sentidos estejam indefinidos, o tempo, o espaço e a própria experiência deles podem “vir a ser”. A potência do “fundo informe e inumano sobre o qual conduzimos nossas vidas” tem a ver, me parece, com essa volaticidade dos sentidos que, na linguagem, somente a palavra poética – que é diferente da poesia, mas essa é uma outra questão – pode produzir, e também com certa inadequação dos significados, que perdem sua eficácia imediata em “colar-se” nas coisas. A linguagem poética torna possível que as associações não sejam tão imediatas, ou que não sejam tão imediatamente investidas pelo poder-saber, faz com que variem mais livremente – e quando é incrivelmente potente, que variem ao infinito, que nunca sejam de todo estabilizadas e, portanto, que nunca sejam totalizadas e totalizantes.
Penso que, no meu caso, a linguagem poética se me faz presente através da escrita (para muitos isso acontece na palavra oral). Mas, para mim, é na escrita, e apenas na escrita. Escrever é o que me coloca, da maneira mais crua e intensa possível, face a esse tempo presente, esse tempo encarnado em que a própria escrita, o próprio ato de escrever, é a única ação possível frente ao que acontece, a única resposta à altura do tempo das coisas. Escrever, para mim, é criar, nesse tempo e a partir dele, saídas possíveis para os sedutores labirintos do saber e do poder, saídas essas que estão sempre a ser capturadas e sempre a ser reinventadas, de novo e de novo e de novo, a cada palavra. Cada novo abismo demanda uma nova e imediata e outra escrita. Como disse Foucault “escrever para, então, saber o que escrever”. A linguagem poética, na escrita, é minha reserva última de vida, a centelha inesgotável que me aproxima, irremediavelmente e com todo o furor que a vida demanda, da própria vida. Escrever é minha única resposta possível, minha única ação possível face à violência – e à beleza – do estar vivo.
Mi Gonçalves em resposta à pergunta feita pelo editor do dossiê “A linguagem da contingência”, professor Eduardo Pellejero.
FICHA TÉCNICA
Água Viva
Sobre a Linguagem poética, os projetos e a contingência
Artista: Michele Fernandes Gonçalves
Michele Fernandes Gonçalves é bióloga por formação, amante das palavras por completa inadequação. Mestre em Ciências Ambientais pela Ufscar Sorocaba e doutoranda em Educação pela Ufsc, atualmente estuda a escrita e o caminhar como experiência do corpo do mundo. Nas horas vagas, e não vagas, escreve.
Água viva
Uma velha solitária e seu café da manhã silencioso, numa manhã de domingo. Corpo sentado à beira das vastas planícies ressequidas das memórias pendentes sobre as pregas do céu de sua boca de lábios cerrados, costas severas curvadas sobre a mesa repleta de abismos de antigas paixões de faca, mãos trêmulas segurando a xícara do líquido oblíquo de seus olhos dilatados, água de passado escaldante que vaza em lavas de abandono e encharca sua garganta de rugas de ferro com a matéria densa das palavras que descem sufocando os engasgos que costuram seu batom, manchando a pele das toalhas insossas de suas entranhas, as raízes intransponíveis das ausências de suas cadeiras, o chão de cinzas intocadas das expectativas de seus ossos e todos os hectares dilacerantes das distâncias dos tecidos de seu minúsculo apartamento, água cozida e implacável que se derrama como chama cálida pelas bordas das paredes de uma existência de pedra, já sem excitação, água de vermelho pisado, oxidado pelo lento caminhar das horas marcadas nos tons púrpura que desbotam o início e o fim de dias sem nenhuma espessura, água morna e anos turvos, escorrendo crua feito saliva de espinhos em gengiva machucada, feito lembrança pintada em tinta vencida, pálida e insípida, empapando lentamente os interiores dos cômodos, as frestas das portas trancafiadas de todos os órgãos, os vãos de seus pisos, as larguras cansadas de suas mucosas e as janelas, todas as janelas de todas as lanternas de qualquer princípio vital, água cáustica, derretendo-se em labaredas pelas escadas, vertendo-se ao revés pelos poços fundos dos elevadores que soterram, a cada andar acima, o vômito sôfrego da esperança de alguma presença de carne, água ácida de veias e vísceras que urgem pulsar além das beiras das sacadas e das pregas das guias mais pontiagudas, água que ferve muda, incendeia seca e explode tépida qualquer paisagem possível, qualquer cidade possível, qualquer sonho possível, qualquer futuro possível, qualquer corpo possível, qualquer mulher possível, água mórbida, viscosa e vulcânica que jorra finalmente vívida, livre e fumegante em seu último esguicho, água de sangue presente, espirrada como seiva fértil por todas as calçadas, por todas as ruas, por todas as histórias e por todas as esperas que condenam a vida a seu mais cruel invivível; vida que responde finalmente viva – ao mais impensável tempo – da vida.
No deserto,
vive aquele que encontrar a água,
ou que reinventar a sede.
GONÇALVES, Mi. Água Viva. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [online], Campinas, ano. 6, n. 15. Ago. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/mi-goncalves-agua-viva/
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SEÇÃO ARTE | A LINGUAGEM DA CONTINGÊNCIA | Ano 6, n. 15, 2019
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