Clara Quintans| Rimas de inverno
Título: Rimas de inverno
“Sobre a linguagem poética e musical e a contingência
Penso que as linguagens da música e da poesia são linguagens que justamente não levantam um muro, não clausuram, mas abrem caminho a essa força inesgotável que, com tenacidade, insiste. Também sinto que têm algo de refúgio individual (espiritual?) e de trincheira coletiva. São linguagens com ar, sentido, formam superfície para fazer pé, mesmo que seja só uma ilha de nada, uma pedra sobressaindo na água.
Relaciono a música e canção a recursos de supervivência, mesmo quando muitos achem que são inúteis. Mais do que convencer, comovem.
Presente na história acompanhando festividades, cerimônias, atos fortemente rituais, emocionais e coletivos, a linguagem musical se encontra inscrita nos estratos mais primitivos da nossa mente, como algo que sempre esteve aí. Quando os grupos mantém-se juntos movendo-se e gritando de forma rítmica cria-se um sentimento de solidariedade emocional que permite uma cooperação maior perante situações de perigo.
A nível cerebral estão envolvidas as áreas auditivas e as de controle e execução de movimentos. A música tem um caráter rítmico, corporal, que produz respostas somáticas. Nos pega, nos envolve, se cola a nós. Toma-nos o corpo. Envolve-nos nos seus ecos, nos faz dançar. Nos entristece, nos põe eufóricos, na hora de ouvi-la ou interpretá-la. É orgânica. Tem caraterísticas da própria vida e isso reflete-se na sua capacidade de representação desse devir. Move-se, nos move. Produz climas, ambienta. Produz um contexto comum no qual sentimos o mesmo.
A música está associada ao prazer. Como a comida, o sexo e as drogas, produz dopamina. Li nalguma parte que se produzem dois disparos de dopamina, um durante a tensão de um acorde, outro na sua resolução. Prazer. Tensão e descarga.
Tanto na música como na poesia há algo da ordem do pré-linguístico. Penso a música como uma comunicação pré-linguística, como precursora da linguagem. Ontogeneticamente há uma evolução que costuma ser comum a todos: primeiro emitimos sons guturais, passamos ao balbucio, depois dizemos sílabas soltas, solfejamos!, formamos palavras e finalmente frases. Por exemplo, o meu filho de dois anos não fala, não diz palavras nem constrói frases curtas. Mas canta, dança e assobia já faz algum tempo. Penso nas canções de ninar, a cadência e a musicalidade das interações primárias entre madre/padre e criança, na origem da vida, inclusive no som sub-aquático do ventre materno, essas vozes e sons que chegam de fora, um mundo que se escuta antes de ser visto.
Existem habilidades inatas para criar música e apreciá-la, nesse imitar e responder aos ritmos da voz e aos gestos de outro, estabelecendo melodias narrativas. Palavra, som, silêncio. Movimento.
Sinto que as formas poéticas e musicais da linguagem possuem algo da ordem da necessidade, como a alimentação e o sono. Eu as vivo como algo impostergável, que me inquieta enquanto se agita. Digo impostergável, mas muitas vezes as tarefas do quotidiano acabam por refrear isso tudo, são um obstáculo. O trabalho, cozinhar, os filhos, a rotina que pauta os dias. Então procuro o momento e o espaço para dar lugar à corrente.
Já soube me fechar no banheiro para escrever ou tocar. Por certo, recomendo a acústica do banheiro e da cozinha. Em muitas gravações caseiras infiltram-se sons. Um grilo a contratempo, o borbulhar de uma panela a ferver, o grito de uma criança, a chuva, um pássaro que canta. Isso da releve às gravações, outras dimensões não programadas que se integram inesperadas. Textura. Num conto que escrevi, começo com a descrição da musicalidade de um jardim. Uma orquestra formada por pássaros, um rega que gira, o riso dos netos brincando, martelos batendo e dentes serrando. A realidade, a natureza, têm a sua própria música e poesia. Para mim são um respiro.
Em momentos dolorosos, injustos, inumanos, sufocantes, a música e a poesia nos protegem, nos alentam, sustentam-nos, tratam-nos bem. Pessoalmente, lembro os momentos mais difíceis que me tocou viver, de perda, dor e desesperança, a música e a escrita foram grandes companhias que ajudaram-me a sobrepor-me e sobreviver. São o que me resta de jogo”.
Clara Quintans em resposta à pergunta feita pelo editor do dossiê “A linguagem da contingência”, professor Eduardo Pellejero.
FICHA TÉCNICA
Artistas: Clara Quintans
Ano: 2019
País: Brasil
Muñeca rusa
Letra e música: Clara Quintans
Violão e voz: Clara Quintans
Arranjos: Gastón Fernandez
Guitarra elétrica e coros: Gastón Fernandez.
Rimas de invierno
Letra e música: Clara Quintans
Violão e voz: Clara Quintans
Arranjos: Gastón Fernandez
Guitarra elétrica e coros: Gastón Fernandez.
Gravadas no “Estudio Nogal”, em Julho de 2019, em Adrogué, por Jerónimo Escajal.
Clara Quintans nasceu em Adrogué (Argentina) em 1979. Graduada em psicologia (2003), trabalha como psicóloga clínica infanto-juvenil. Escolheu a guitarra como instrumento. Compõe e canta canções. Escreve um pouco, poesia e contos.
QUINTANS, Clara; Rimas de inverno. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [online], Campinas, ano. 6, n. 15. Ago. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/clara-quintans-rimas-de-inverno/
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SEÇÃO ARTE | A LINGUAGEM DA CONTINGÊNCIA | Ano 6, n. 15, 2019
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