Daniela Feriani[1]
Fernando Murilo Bonato[2]
Murilo é um adolescente de quase 18 anos que vive com os pais e uma irmã mais velha, em Curitiba, PR. Apesar de experimentar muitos dos desafios, aprendizados e afetos de qualquer garoto dessa idade, Murilo não é um adolescente qualquer. Não só porque é autista, mas por ser também um profundo pensador, como ele mesmo se define. Sem negligenciar o quanto o autismo infuencia a sua vida, Murilo não se resume a ele: reflete e escreve sobre questões profundas que dizem respeito a todos nós, como liberdade, amor, felicidade, inteligência, linguagem, espiritualidade, verdade – tudo aquilo que, enfim, possibilita uma vida plena.
Com apraxia severa, Murilo não se comunicou verbalmente por 14 anos. Durante a pandemia de COVID, descobriu os textos como uma forma potente de se expressar. Ele tem muito a dizer. E diz. Se a sua fala “falhada” o faz ficar quieto na maior parte do tempo, a escrita possibilita que a sua voz alcance um número cada vez maior de ouvintes e admiradores. A própria escrita, aqui, também é “falhada”. Não se trata de usar as mãos para inscrever as letras numa folha de papel ou numa tela de computador: Murilo dita as palavras para a mãe, a “pessoa amada”, aquela que mais consegue entender o que sai, com dificuldade, de sua boca. Karina, a mãe, se tornou “escriba” do filho, como ela mesma se denomina. Nessa relação de amor, dedicação e paciência entre mãe e filho, já foram publicados 4 livros – e outros estão a caminho – e dezenas de textos na rede social Instagam, na qual tem mais de 30 mil seguidores.
Se as palavras, muitas vezes, não saem, Murilo usufrui de seu silêncio para observar e pensar. Crítico do uso de celular e outros aparatos tecnológicos, ele nos convida a parar o tempo, a abrir brechas na nossa correria do dia-a-dia para respirar, criar, imaginar. Afinal, quem disse que temos que ser úteis e correr o tempo todo? Ao se assumir como um “ser falhado”, Murilo nos faz olhar para dentro de si, a reconhecer as próprias falhas não como meros erros, mas como oportunidades de se abrir para outros caminhos, ser livre, viver de outro modo, de acordo com a nossa verdade, uma vida que faça sentido, que seja plena e feliz, com todos os desafios, as turbulências, as falhas, enfim, que nos constituem.
Quando Murilo concordou em participar, enviei as perguntas para Karina. Numa tarde quente, em casa, o filho ditou à mãe as respostas. Esta entrevista inaugura uma série de outras com escritores autistas, numa busca por abrir as possibilidades de comunicação, escrita, linguagem para outros modos de ser, pensar e viver.
ClimaCom – Daniela Feriani – Quando você soube do diagnóstico de autismo? Como foi?
Murilo Bonato – Primeiro falo, eu nunca soube como é não ser autista. Eu nasci assim. Vocês chamam autismo para meu modo operante. Vocês, típicos, se preocupam com nomes, laudos e como definir pessoas. Não passei por descoberta de diagnóstico porque nunca foi algo que adquiri, como se fosse uma doença. Posso falar que, uma vez autista, sempre autista. Mas, sim, eu posso falar que me sentir diferente foi algo que percebi próximo da minha adolescência. De verdade, nessa fase, ser “autistão”[2] é ser quase um ET, próximo de terráqueos típicos.
(Leia a entrevista completa em pdf)
[1] Antropóloga formada pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Atualmente, é bolsista de Jornalismo Científico (Mídia Ciência) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, com o projeto “A demência como outro mundo possível: ações de divulgação científica” [2024/05623-0]. Email: danielaferiani@yahoo.com.br
[2] Murilo é um autista nível 3 de suporte. Ele brinca com a própria condição ao se definir como “autistão” – um modo de dizer “autista com A maiúsculo” -, uma crítica aos chamados autistas camuflados, aqueles que tentam esconder a própria deficiência ou fazer de tudo para se adaptar aos típicos (aqueles que não teriam deficiência). Instagram: @murilo_ciclistea