Entrevista: Carlos Nobre

Para climatologista do MCTI, os problemas de gestão da grave crise hídrica demandam um planejamento para uma “cultura de país úmido”, que leve em conta um clima cada vez mais variável

Por: Daniela Klebis

Para o climatologista Carlos Nobre, a menos que caia um dilúvio, a crise no abastecimento hídrico deverá durar alguns anos. Isso significa que teremos que aprender a viver com menos água. E da mesma forma que a crise da água no Brasil foi deflagrada por muitos outros fatores além da falta de chuva, a solução para ela não dependerá apenas de uma determinação vinda do governo. Conforme aponta Nobre, na entrevista a seguir, esta é uma solução que deve ser buscada conjuntamente com a sociedade, e já demorou demais a elaboração de um plano de contingências: “é importante que se construa esse plano, que se aperfeiçoe ao longo do processo, junto com a população, e que seja muito transparente”, diz.

O que vem se chamando de crise, é, na verdade, uma oportunidade de repensar nossas relações com a água, com o clima, com o governo, com as empresas, com a ciência, com a produção e com as características climáticas próprias do país. É um momento de recriar, repensar nossa cultura, como indica o pesquisador: “Chove bastante em geral aqui, mas tem muito pouco aproveitamento de água de chuva. É cultura. Nós temos uma cultura de país úmido”, aponta.

Carlos Afonso Nobre é Diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Fez parte da equipe científica de 2007 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), laureada com o Prêmio Nobel da Paz.

 

"Redivisão", de Marli Wunder. Confira ensaio completo na seção de arte.

“Redivisão”, de Marli Wunder. Confira ensaio completo na seção de arte.

ClimaCom- A crise hídrica é um assunto que tomou conta dos jornais e várias narrativas aparecem relacionadas com a questão da responsabilidade: vitimização, culpabilização. Como que podemos lidar com isso?

Carlos Nobre – Em primeiro lugar, deve-se dizer que, no caso de São Paulo, o governo, nos últimos 40 dias, finalmente reconheceu a gravidade da crise. E isso é positivo, por um lado. Mas a crise não se desenvolveu nos últimos trinta dias, é uma crise que vem de 2014. Por outro lado, é lógico que as várias medidas de redução de pressão nas tubulações de água, de fato, indicaram uma redução do consumo. Não só do consumo final do usuário, mas das perdas na distribuição. Hoje está sendo extraído cerca de 15m3 por segundo do Sistema Cantareira, quando, há um ano, essa média superava 30m3. Se pensarmos bem, é uma economia geral bastante radical, houve uma redução de mais de 50% no consumo. E consumo envolve tudo: reduzindo a pressão, se diminui muito as perdas. O que está sendo retirado do Cantareira é menos de 50% do que se tirava há um ano. De certo modo, então, já existe um racionamento em São Paulo. Não é rodízio de torneira seca, mas muito menos água está sendo ofertada através dos vários mecanismos: redução na pressão, um bônus na tarifa de quem economiza e, agora, multa para quem gasta muita água. Esse conjunto de ações é que fizeram a extração do Cantareira diminuir em mais de 50%. Só que a falta de chuva, entre dezembro de 2014 e janeiro de 2015, foi muito significativa e mostrou que existe um risco concreto dessa oferta potencial do Cantareira, durante o período seco, ser até menor do que 15m3/segundo. Não está descartado que o Sistema Cantareira terá que ofertar até menos do que isso se as chuvas de março/abril não forem adequadas. Mas como as previsões de tempo são muito incertas além de sete dias, não dá pra saber ainda sobre as chuvas de março e abril. Portanto, se as chuvas desse finzinho de estação chuvosa não forem adequadas, as contas são muito simples – isso representará ainda menos oferta de água para a população.

 

ClimaCom-  A Carta de São Paulo diz o seguinte, numa passagem: “É preciso evitar, ainda, que os previsíveis temporais de verão desmobilizem a sociedade para a necessidade de economizar água, pelo menos enquanto o volume afluente não tiver magnitude suficiente para recuperar reservatórios”. Como o senhor vê o impacto dessas notícias sobre a elevação dos níveis do Cantareira com as chuvas nas últimas semanas?

Carlos Nobre – A crise hídrica na RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) e outras cidades e estados do Sudeste não é uma crise de curta duração. É uma crise de longa duração. Porque os níveis dos reservatórios atingiram índices críticos. Estamos terminando o segundo mês mais chuvoso do ano. Janeiro é primeiro, fevereiro é o segundo e dezembro, o terceiro, e nós estamos – para citar o exemplo do Cantareira – com menos de 11% do reservatório, finalizando o segundo mês mais chuvoso desse período. A situação é de crise hídrica que ficará por muitos anos, a não ser que aconteça um dilúvio, uma coisa fora do esperado. Pode acontecer? Pode. Mas não podemos contar com isso. Seria irresponsabilidade dos gestores dos recursos hídricos contar que em algum momento até o final do ano vai ter um dilúvio e os níveis vão subir e atingir uma segurança hídrica maior. Essa segurança não existe hoje. E mesmo que chova dentro da média nos meses de março, abril e maio, quando entrar a estação seca, os consumidores de São Paulo, principalmente os da grande região abastecida somente pelo Cantareira, terão que economizar muita água. Não se tem muito que fazer do lado da oferta de água pelo Cantareira. O aumento da segurança hídrica só pode acontecer neste ano pela redução da demanda. Quer dizer, os consumidores terão que economizar muito. Não tem muita saída e é isso que a Carta de São Paulo tentou destacar: é uma crise de muitos anos.

 

ClimaCom – Lendo as notícias e acompanhando a crise hídrica pela imprensa, a falta de chuvas aparece enquanto o maior causador da crise. Mas a sensação que temos é que essa falta possibilitou ver muitos problemas na gestão dos recursos hídricos…  O que o senhor pensa disso?

Carlos Nobre – É aquele velho ditado: em casa que não tem pão, todos brigam e ninguém tem razão. É lógico que se tivéssemos a Cantareira cheia, vertendo água, ninguém estaria discutindo a altíssima taxa de perda, de vazamentos, o absurdo que é São Paulo não ter 100% de tratamento de esgoto, pois se tivesse, teria muito mais água disponível para tratar e se tornar potável. Se não fosse a crise, estaríamos todos vivendo felizes, com uma taxa de saneamento vergonhosa. Mas quando a água some, é que todos esses problemas são explicitados. E é todo mundo tateando, todo mundo correndo, tentando, experimentando. E é lógico que agora ficou aparente uma falha de gestão muito grande. São Paulo não tinha – e não tem até hoje – um plano de contingência. Os prefeitos da região metropolitana pediram e o governo do Estado aparentemente está desenvolvendo junto a esse grupo de gestão da crise. Ou seja, existe um grupo de gestão da crise, mas nenhum plano ainda. Um plano aprovado, com direções, com regras definidas para ações a serem tomadas diante de situações de emergência. E por não ter, é todo mundo correndo atrás de soluções, eu diria até de forma atabalhoada, no sentido de não deixar o reservatório secar e continuar fornecendo água para a população. Acho que até dá pra ter aprendido uma lição. É muito provável que essa será uma crise de muitos anos. É muito importante ter um plano de contingência aprovado para todos esses sistemas interligados, incluindo-se a região de Campinas e adjacências, que também vêm lá do PCJ (região das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí). Falta realmente um plano inteligente e transparente que toda a população venha a conhecer. O ideal seria que tivessem audiências públicas, mas a realidade dos fatos está atropelando. Mas é importante que se construa esse plano, que se aperfeiçoe ao longo do processo, junto com a população, e que seja muito transparente. A população tem que saber qual é o plano, quais são as medidas. A crise de 2014 já deveria ter deflagrado um plano de contingência, e quanto mais tempo se demorar, mais atabalhoadas e conflitantes vão ser as decisões por diferentes órgãos de responsabilidade pela gestão.

ClimaCom – O senhor poderia falar um pouco sobre as ações do MCTI e da Rede CLIMA nesse contexto da crise da água, inclusive sobre a participação no projeto Brasil 2040?

Carlos Nobre – A Rede CLIMA, que é uma rede do MCTI, tem várias sub-redes e uma delas é Mudanças Climáticas e Recursos Hídricos. Uma conclusão das pesquisas que eles desenvolvem é que todo o planejamento, presente e futuro, dos recursos hídricos, seja para abastecimento humano, seja para geração hidrelétrica, seja para irrigação, seja para indústria, tem que levar em consideração que o clima está cada vez mais variável. Os extremos hoje não são mais iguais aos extremos de antes. Os extremos, tanto de secas quanto de chuvas excessivas, estão ficando cada vez mais frequentes e intensos. Por exemplo, nós não tínhamos nos registros históricos de seca em São Paulo, nenhum caso similar. Os gestores da grande infraestrutura dos recursos hídricos, do uso da água, devem colocar nos seus planejamentos esse fato e mudar muito a maneira de olhar, buscar e reutilizar os recursos hídricos. Essa é maior contribuição na área que a Rede CLIMA está colocando, e colocando com muita ênfase. Esse dado é o de maior impacto, e se liga também ao projeto da SAE, o Brasil 2040. A Rede CLIMA tem apoiado diretamente esse projeto, para o qual o MCTI criou um grupo de trabalho de previsão sazonal que tem ajudado demais a gestão hídrica.

ClimaCom – Por falar em planos de contingências, pensa-se muito sobre soluções. O que o senhor acha da ideia de solução, principalmente em longo prazo, e de onde poderá vir a solução?

Isso não é só uma coisa que envolva somente o governo estadual ou federal, não depende somente de taxar uma lei qualquer. Isso é uma solução que deve ser buscada conjuntamente com a sociedade. Por exemplo, 70% da água da superfície do mundo, e no Brasil esse número é bem aproximado, é usada em agricultura irrigada. E agricultura irrigada pode ser super científica, tecnológica, usando pouquíssima água, que inclusive protege o solo, ou pode ser uma agricultura ultrapassada, que perde muita água, afeta a fertilidade do solo e o saliniza. A diferença que se pode fazer de economia de água com agricultura irrigada científica é gigantesca. Reuso de água em indústria pode ser, como existem casos, de 96 a 98%, e tem indústria que perde toda a água que tira do rio.

É também muito importante restaurar a vegetação original das áreas de captação. Ela economiza demais o custo do tratamento. A própria ecologia dos solos da floresta limpa essa água, tornando-a praticamente potável, e também regulariza o fluxo. Por exemplo, em 2011, choveu tanto que o nível do Cantareira verteu. Se imaginarmos que quase toda a área do Cantareira fosse coberta pela Mata Atlântica – hipoteticamente falando-, muito dessa chuva que caiu em 2011 estaria no solo e seria lentamente escoada para o reservatório. A partir de 2012, a chuva diminuiu; em 2013, novamente, choveu abaixo da média, e, aí, foi o desastre da falta de chuva de 2014 até 2015. Essa crise aconteceria, pois a floresta não poderia salvar, já que o consumo estava muito maior do que a oferta de água da chuva. Mas a crise seria menor, aquela água que verteu, não teria sido toda perdida. A restauração da vegetação é muito importante em qualquer gestão de abastecimento.

No nível doméstico, que é a parte mais preocupante pelo risco de ter uma crise humanitária, também existem inúmeras soluções de economia, como válvulas de descargas econômicas, redutores de pressão, reuso de água de chuva. Chove bastante em geral aqui, mas tem muito pouco aproveitamento de água de chuva. É cultura. Nós temos uma cultura de país úmido.