Entre mundos ou existências-outras: experiências demenciais e neurodivergentes | Daniela Feriani

A despeito das diferenças entre demência e autismo, tanto autistas quanto pessoas em processo demencial nos falam de um mundo-outro, com outras regras, outra percepção, outro modo e ser e viver.

Daniela Feriani[1]

Entre mundos ou existências-outras: experiências demenciais e neurodivergentes “A natureza é vodka”, suspirou Maria ao observar o canto de um pássaro. Enquanto aguardava a consulta médica, João viu peixes nadarem entre os pés. Em um passeio no sítio, disse que “o rio tá cabeçudo”. Ao avistar um trator, máquina que operou boa parte da vida, abriu um sorriso, apalpou-o, checou cada pedaço, e concluiu: “o trator anda que nem casa”. A embalagem brilhante do biscoito, na grama, era uma borboleta. A semente de uma árvore, no chão, era “a beira daquele lá”, apontando para a sarjeta.

Olga guardou o ferro de passar na geladeira, colocou o vestido ao avesso, não encontrou o banheiro em sua própria casa e adoçou o café com o pote inteiro de açúcar. Guilherme vestiu a camisa como se fosse calça. Mudou o canal da televisão com um chinelo de dedo, deitou-a para as pessoas não caírem e, numa cena de pessoas brigando, começou a xingar, pegou um pedaço de pau e só não bateu na tela porque foi impedido pela esposa.

Célia agarrou o cobertor, aflita, porque o macaco da novela ia invadir a sala. Rosa usou cal para fazer biscoito de polvilho e detergente para cozinhar. José comeu ração de cachorro, entrou vestido para tomar banho, tomou água do vaso sanitário e confundiu a lixeira com a máquina de lavar. Joe fechou a geladeira com força porque os alimentos queriam atacá-lo. Jussara conversou com o reflexo no espelho, convidando-o para passear.

Augusto experimentou o gosto da grade do portão. Heitor encostou o ouvido perto da dobradiça da porta e ouviu, profundamente, o rangido do movimento de abrir e fechar que ele provocava. Carlos entoava uma melodia que criava uma espécie de tecido sonoro de fundo, preenchendo todo o espaço. A melodia contínua só se quebrava com outro som agudo que se ouvia aqui e ali. Mia interagiu, a maior parte do tempo, com objetos como papéis, brinquedos e as câmeras instaladas para os registros de campo. Produzia sonoridades que carregavam entonações conhecidas para perguntas, indignações, atenção compartilhada, mas não traziam nenhum léxico reconhecível a uma primeira e, talvez desatenta, escuta. Luiza repetiu para sua irmã Clara que ela, ao sentar-se, derrubou uma pipoca que estava na poltrona. A narrativa de Luiza carregava uma sintaxe-gesto: ela enunciava tsau e fazia um gesto de lançar a mão no ar, depois enunciava pam, seguido do gesto de bater a mão no ar. Clara e Luiza riram da situação e seguiram a conversa em suas línguas facilmente intercompreensíveis.

 

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[1] Antropóloga formada pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Atualmente, é bolsista de Jornalismo Científico (Mídia Ciência) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, com o projeto “A demência como outro mundo possível: ações de divulgação científica” sob orientação de Susana Oliveira Dias do Labjor-Unicamp [2024/05623-0]. Email: danielaferiani@yahoo.com.br