Por Daniela Klebis
Os impactos das ações humanas sobre o planeta nos últimos 200 anos têm sido tão profundos que podem justificar a definição de nova época para a Terra, o Antropoceno. No último dia 17 de outubro, a Comissão Internacional sobre Estratigrafia (ICS, na sigla inglês) reuniu-se em Berlim para dar continuidade às discussões sobre a formalização dessa nova época terrena, cuja decisão final será votada somente em 2016. A despeito dos processos burocráticos, o termo já foi informalmente assimilado por filósofos, arqueólogos, historiadores, ambientalistas e cientistas do clima e, nesse meio, o debate segue, para além da reunião de evidências físicas, no sentido de compreender sua utilidade: estamos prontos para assumir a época dos humanos?
A história da Terra se divide em escalas de tempo geológicas, que são definidas pela ICS, com sede em Paris, na França. Essas escalas de tempo começam com grandes espaços de tempos chamados éons, que se dividem em eras (como a Mezozóica), e então em períodos (Jurássico, Neogeno), épocas e por fim, em idades. Quem acenou pela primeira vez a necessidade de definir uma nova época, baseada nos impactos indeléveis das ações humanas sobre a paisagem terrestre foi o químico atmosférico Paul J. Crutzen, prêmio Nobel de química em 1995. Cutzen sugeriu o termo Antropoceno durante o encontro do Programa Internacional de Geofera e Biosfera (IGBP, na sigla em inglês), no México, em 2000. O evento tinha por objetivo discutir os problemas do Holoceno, a época em que nos encontramos há cerca de 11700 anos,desde o fim da era glacial.
A hipótese sustentada pelos defensores da nova denominação baseia-se nas observações sobre as mudanças iniciadas pelo homem sobre o ambiente desde 1800, cujas evidências geológicas possuem impacto a longo prazo na história da Terra. E quais são as evidências que podem justificar a adoção do termo Antropoceno? “O que nós humanos mais fizemos nesses dois séculos foi criar coisas que não existiram pelos 4,5 bilhões de anos da história da Terra”, denuncia o geólogo Jan Zalasiewicz, presidente do grupo de trabalho sobre o Antropoceno da ICS, em colóquio em Sidney, na Autrália, em março deste ano.
Minerais sintéticos, fibras de carbono, plásticos, concreto, são alguns exemplos de novos elementos criados pelo homem. O concreto, um material produzido pela mistura de cimento, areia, pedra e água, vem se espalhando na superfície de nosso planeta a uma velocidade de 2 bilhões de quilômetros por ano, conforme aponta o geólogo. Abaixo da superfície, escavações em busca de minérios e petróleo já abriram mais de 50 milhões de quilômetros em buracos subterrâneos.
Além das mudanças físicas, a emissão exagerada de dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa, resultantes da ação humana, provocam mudanças químicas na atmosfera, como aquecimento global, descongelamento de calotas polares e acifidificação dos oceanos. A biosfera é também analisada, já que mudanças resultantes da perda de habitats, atividades predatórias e invasão de especies também provocam mudanças na composição química e física dos ambientes.
As evidências do impacto da ação humana,que vêm sendo consistentemente apontadas em estudos climáticos, foram reforçadas pelo 5º. Relatório do Painel Intercontinental de Mudanças Climáticas (IPCC), publicado no início do ano, com um consenso de 97% dos cientistas. Mais recentemente, no dia 30 de setembro, um relatório publicado pela WWF (World Wildlife Fund, em inglês), em parceria com a Sociedade Zoológica de Londres, apontou ainda que, nos últimos 40 anos, 52% da população de animais vertebrados na Terra desapareceu. Ao mesmo tempo, os seres humanos dobraram em quantidade. “Estamos empurrando a biosfera para a sua 6ª. extinção em massa”, alerta Hans-Otto Pörtner, do Instituto Alfred Wegener de Pesquisa Marinha e Polar, em Bremerhaven, Alemanha, e co-autor do capítulo sobre ecossistema do relatório do IPCC publicado nesse ano. Pörtner refere-se às cinco grandes extinções em massa registradas nos últimos 540 milhões de anos, caracterizadas por palentólogos como períodos em que mais de 75% das espécies foram extintas do planeta em um curto intervalo geológico.
“Há 200 anos, a coisas começaram a mudar o suficiente para visivelmente impactar o planeta: a população cresceu, assim como as emissões de CO2”, destaca Zalasiwicz. Segundo ele, o uso de energia cresceu 90 vezes entre 1800 e 2010, e já queimamos cerca de 200 milhões de anos de fósseis, entre carvão, óleo e gás. “Os humanos correspondem a 1/3 de todos os vertebrados da terra. Mas a dominação sem precedentes sobre todos os outros seres vivos, faz dessa a er a humana”, conclui.
Eileen Crist pesquisadora do Departamento de Ciências e Tecnologia na Sociedade, no Virginia Tech, no EUA, desafia a escolha do termo, defendendo que o discurso do Antropoceno deixa de questionar a soberania humana para propor, ao contrário, abordagens tecnológicas que poderiam tornar o domínio humano sustentável. “Ao afirmar a centralidade do homem – tanto como uma força causal quanto como objeto de preocupação – o Antropoceno encolhe o espaço discursivo para desafiar a dominação da biosfera, oferecendo, ao invés disso, um campo técnico-científico para a sua racionalização e um apelo pragmático para nos resignarmos à sua atualidade”, argumenta a pesquidadora em um artigo publicado em 2013.
O Antropoceno, dessa forma, entrelaça uma série de temas na formatação de seu discurso, como, por exemplo, o aumento acelerado da população que chegará a superar os 10 bilhões de habitantes; o crescimento econômico e a cultura de consumo enquanto modelo social dominante; a tecnologia como destino inescapável e, ao mesmo tempo, salvação da vida humana na Terra; e, ainda, o pressuposto de que o impacto humano é natural e contingente da nossa condição de seres providos de inteligência superior. Crist aponta que esse discurso mascara a opção de racionalizar o regime totalitátio do humano no planeta. “Como discurso coeso, ele bloqueia formas alternativas de vida humana na Terra”, indica.
Relacionalidade
Donna Haraway, professora emérita da Universidade da Califórina em Santa Cruz, EUA, comentou, em participação no Colóquio Os Mil Nomes de Gaia, em setembro, que essa discussão é um dos “modos de buscar palavras que soam muito grandes, porém, não são grandes o suficiente para compreender a continuidade e a precariedade de viver e morrer nessa Terra”. Haraway é também umas das críticas do termo Antropoceno. Segundo ela, o Antropoceno implica um homem individual, que se desenvolve, e desenvolve uma nova paisagem de mundo, estranho a todas as outras formas de vida: uma percepção equivocada de um ser que seria capaz existir sem se relacionar com o resto do planeta. “Devemos compreender que para ser um, devemos ser muitos. Nos tornamos com outros seres”, comenta.
Para Haraway, épreciso, problematizar essa percepção, e endereçar a responsabilidade pelas mudanças, que está justamente no sistema capitalista que criamos. Este sim tem impulsionado a exploração, pelos homens, da Terra: “A história inteira poderia ser Capitaloceno, e não Antropoceno”, diz. Tal percepção, de acordo com a filósofa, pemite-nos resistir ao senso inescapabilidade presente nesse discurso, como Crist mencionou acima. “Estamos cercados pelo perigo de assumir que tudo está acabado, que nada pode acontecer”, diz.
Haraway aponta, entretanto, que é necessário evocar um senso de continuidade (ongoingness,em inglês),a partir de outras possibilidades narrativas e de pensamento.Uma delas, seria o Cthulhuceno, criado pela filósofa. A expressão vem de um conto de H.P.Lovecraft, O chamado de Cthulhu, que fala sobre humanos que têm suas mentes deterioradas quando, em rituais ao deus Cthulhu – uma mistura de homem, dragão e polvo que vive adormecido sob as águas do Pacífico Sul – conseguem vislumbrar uma realidade diferente da que conheciam. No início da história, o autor norte-americano descreve o seguinte: “A coisa mais misericordiosa do mundo, acho eu, é a incapacidade da mente humana de correlacionar tudo que ela contém”. A partir desse contexto, Donna Haraway explica que é necessário “desestabilizar mundos de pensamentos, com mundos de pensamentos”. O Cthulhuceno não é sobre adotar uma transcendência, uma ideia de vida ou morte: “trata-se de abraçar a continuidade sinuosa do mundo terreno, no seu passado, presente e futuro. Entretanto, tal continuidade implica em assumir que existe um problema muito grande e que ele precisa ser enfrentado. Devemos lamentar o que aconteceu, pois não deveria ter ocorrido. Mas não temos que continuar no mesmo caminho”, sugere.