Africanidades entre pinturas e sons

TÍTULO: Africanidades entre pinturas e sons


Figuras de infância

A criança quando tomada dentro do espaço institucional normalmente está associada à figuras de pensamento que a situam dentro de processos pré-definidos de desenvolvimento, e que estariam articulados com uma forma generalizada de entender o infante. Se se busca uma análise de produções artísticas das crianças, é comum relacionar resultados à capacidades de produção segundo modelos de representações infantis, muitas vezes baseados em faixa etária, e que moldam essa atividade analítica ao que já é esperado para ser produzido.

Em outras palavras, as capacidades de criação e invenção que a arte poderia propor são, muitas vezes, subsumidas a modelos que reduzem o pensamento e a aprendizagem a padrões de recognição. Assim como a própria produção artística infantil seria simplificada à verificações e validações que buscam atestar aptidões próximas a uma lógica utilitária, algo próximo ao modelo: entender, aplicar e produzir.

Se deslocarmos a figura da infância de modelos universais, que visam entendimentos e verificações de aprendizagens, e a situarmos em um processo de devir aberto às variações de aprendizagem e produção, será que a imagem que temos das crianças e as imagens e pensamentos artísticos que elas poderiam produzir também não poderiam ser modificadas e apresentadas em formas não esperadas?

Há uma proximidade intensa entre o pensamento e a criança. A filósofa Ana Godinho (2012, p. 49) coloca que: “Desejar/ser desejado/ desejar-se – eis como começa uma criança. Começa com um bloco e abre um mundo. Se o devir é um bloco, um bloco de desejo então também é uma criança. Ser criança é passar por devires. Um devir criança é, de outra maneira, uma condição do exercício real do pensamento, um acontecimento”. Não poderia esse modo de se conceber a figura da criança, ou essa nova imagem-infantil, empurrar a linguagem ao seu limite e, assim, desvincular-se das referências dadas por modelos ou representações?

Pensando em possibilidades práticas que tomassem Pintura, Música, Filosofia e Educação dentro do espaço institucional, realizamos um trabalho ao longo do ano de 2015 envolvendo alunos entre 07 e 11 anos, e que buscava questionar possibilidades de uma imagem-infantil mais próxima às linhas de pensamento apresentadas nesse texto.

Imagens e pinturas infantis
Em um grupo de oito professoras responsáveis por diferentes classes, pedimos que cada uma escolhesse uma imagem de pintura africana contemporânea e trouxessem para a professora de informática. A fim de apagar a memória e suas possíveis representações, essa professora trabalhou com os alunos, utilizando softwares de edição de imagens, e solicitou que manipulassem, rasurassem e interferissem nelas do modo que quisessem. Criou-se assim, um grande acervo de imagens que, por vezes, rasuraram as imagens iniciais, compondo um excesso de clichês e, por outras, desenvolveram outras potencialidades para essas imagens, esboçando um pensamento muito próximo à arte.

Em um segundo processo desse trabalho, foi escolhida uma imagem modificada de cada classe para ser pintada em tela. E, embora cada classe tivesse que partir de uma mesma imagem para pintá-la, foi pedido a todos os alunos que buscassem encontrar variações na maneira de apresentá-las, e requisitado que houvesse um trabalho que tentasse manter relações entre o fundo, o contorno e a Figura que viesse a ser exprimida. Compusemos assim, 8 séries de pintura, em que cada classe apresentou imagens que diferiram bastante do modelo inicial.

Sons, pinturas e aprendizagem
Buscando ainda intensificar a relação nesse processo de ensino-aprendizagem, baseamo-nos na obra “Quadros de uma Exposição” de Mussorgsky* (1873), para chamar atenção dos alunos quanto a uma forte conexão existente entre música e as artes plásticas, e trabalhamos nas aulas de música com as mesmas imagens modificadas e que serviram de inspiração às pinturas.

A partir dessas imagens, procurou-se levantar entre os alunos questões que envolviam a relação entre imagem e as sonoridades, como: texturas e tessituras, volume e profundidade, tempo e andamento. Iniciou-se assim a preparação da trilha sonora que acompanharia as pinturas em tela, e que resultaria na exposição que pode ser acompanhada no vídeo “Africanidades entre pinturas e sons”. Os alunos imersos em várias tarefas produziram o material sonoro, isto é, pesquisaram timbres, coletaram amostras de áudio e imagens, analisaram essas amostras e regravaram.

Durante essas atividades para a composição da trilha sonora, os alunos entravam em contato com as imagens produzidas pelos alunos de outros anos; e em seguida, iniciavam uma pesquisa timbrística com vários instrumentos musicais disponíveis em sala de aula – instrumentos de percussão com ou sem altura definida e teclado. Depois era coletada uma amostra sonora, através de gravações feitas a partir do MP3 player.

Esse material era analisado e editado por cada grupo em um processo que consistia em contemplar a imagem e criar uma trilha sonora que sugerisse ideias vindas a partir dessa observação. Cada grupo se expressava livremente sem se preocupar com uma ideia que pudesse ser considerada correta. Após um processo denominado de audição coletiva, os alunos pensavam uma trilha sonora que pudesse agregar os elementos apresentados em cada trilha.

Esse processo de elaboração de uma trilha sonora, baseado no procedimento adotado por Mussorgsky, possibilitou aos alunos conhecerem um pouco mais sobre as possibilidades de relações com o som, seja pela própria música ou por ruídos e outros eventos sonoros. Foi possível que os alunos criassem relações musicais através da escuta e da visualização de imagens e problematizassem texturas, ruído, silêncio, som, melodia, ritmo, amplitude, timbre, luz, relevo, tempo e espaço.

Durante todo esse trabalho com a música, buscávamos pensar uma educação estética como um meio de produção de conhecimentos e que não passava pelo crivo do certo ou errado, isto é, por definições prontas, como também que permitisse aos aluno inserirem-se em uma atividade que mais do que esperar respostas, buscava levantar problemas e inventar possíveis resultados.

Finalizadas as atividades com a pintura e a música, conectamos as telas com as trilha sonora, resultando na exposição “Africanidades entre pinturas e sons”. Considerações sobre o vídeo Africanidades entre pinturas e sons O vídeo “Africanidades entre pinturas e sons” foi realizado no Colégio Educap, em Campinas-SP, onde propusemos outras formas de pensar as relações infantis com a música e a pintura entre alunos de faixa etária entre 07 e 10 anos. As obras resultantes, pinturas e músicas, são potentes para problematizarmos tanto o trabalho com artes feito por crianças, quanto a própria imagem-infantil que esboçamos apontar.

Pareceu-nos que a exposição, como resultado de um elaborado trabalho artístico, possibilitou uma forte aprendizagem no que concerne a arte, intensificando possibilidades entre imagem e infância. Essa aprendizagem poderia tanto se referir às pinturas e sons criados pelos alunos, em uma possível invenção de si, como aos conhecimentos que cada criança e visitante de exposição poderia ter com uma produção artística, uma aprendizagem por afectos que seria impossível avaliar entre certo ou errado.

*Mussorgsky, considerado o gênio do movimento nacionalista russo, foi autodidata e pelo fato de não conhecer bem as regras e normas acadêmicas da música ocidental, compôs com extrema liberdade e originalidade. Segundo Otto Maria Carpeaux (1977, p. 356), a capacidade de Mussorgsky de “pintar os sons” o fez criar a suíte “Quadros de uma Exposição” (1873) em que, inspirado por uma exposição de desenhos do arquiteto Viktor Hartmman. Mussorgsky, escolheu dez telas expostas em uma galeria em São Petesburgo, compondo uma música para cada um dos quadros que foram interligados por um tema central e quatro variações, sendo este tema denominado de “promendade” e representando o trajeto dos visitantes pela mostra.

Bibliografia
CARPEAUX, O. M. Uma nova história da música. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1977.
GODINHO, A. Devir rosto e abrir o pensamento. In DIAS, S. O.; MARQUES, D.; AMORIM A. C. R. (Orgs.) Conexões: Deleuze e Arte e Ciência e Acontecimento e… Petrópolis, RJ: De Petrus; Brasília, DF: CNPq/MCT; Campinas, ALB, 2012.

 


 

FICHA TÉCNICA

Texto: Marcus Pereira Novaes

Concepção do Vídeo “Africanidades entre pinturas e sons”: Marcus Pereira Novaes

Concepção da trilha sonora: Jairo Perin Silveira

Colégio Educap – Campinas-SP.


Marcus Pereira Novaes é doutorando em Educação (FE-Unicamp) na área de Linguagem, Arte e Educação. Possui graduação em Educação Física (2000) e Pedagogia (2004) pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2014). Atualmente é Coordenador Pedagógico – Fundamental I – do Colégio Educap e membro da Diretoria da Associação de Leitura do Brasil (ALB) gestão 2016-2018, tendo também participado da gestão anterior 2014-2016 . Também é pesquisador do grupo OLHO- Faculdade de Educação – Universidade Estadual de Campinas, e coeditor da Revista Linha Mestra.

 

 

https://youtu.be/7oUh1d_Tr5c

 

 

 

NOVAES, Marcus Pereira. Africanidades entre pinturas e sons. ClimaCom – Cosmopolíticas da Imagem[online], Campinas , ano. 4, n. 10. Nov. 2017 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=8246


 

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