A vulnerabilidade do corpo no mundo


Cinthia Mendonça[1]

INTRODUÇÃO

Primeiro, é preciso dizer que este artigo é escrito desde a perspectiva rural. Segundo, que ele traz observações sobre quando acontecimentos internos e externos têm tamanho impacto que deformam ou inauguram outra forma. Veremos que isso parece ser inevitável, toda forma fixada borra-se no seu contorno ou desloca-se de seu eixo precedente; com isso, evidencia-se uma permeabilidade – que podemos nomear, também, de vulnerabilidade. Acredito que esta permeabilidade é operação essencial à criação e, por isso, à manutenção da vida da Terra tanto quanto da vida humana. Ao longo das linhas que seguem, faço uma escrita exposta e vulnerável, numa tentativa de fazer dela um objeto por onde algo passa.

 

CORPO COMO MUNDO

Tomamos o termo vulnerável quando expresso no contexto das mudanças climáticas, levando em conta populações ditas vulneráveis em áreas de suposto risco. Vejamos como isso se apresenta em um outro contexto comparável. Avaliemos o que o termo significa na perspectiva de quem vive em comunidades rurais. É importante dizer que há distintas maneiras de viver e trabalhar no campo. Refiro-me à minha própria experiência, a uma escala 1:1 de cultivo comunitário, onde as tecnologias de manejo da terra possuem a dimensão da subsistência, isto é, interessa-me pensar a relação do corpo de um indivíduo e seu impacto no mundo. Sabemos que, em relação ao cultivo, o que impera na atualidade é sobretudo o porte da fábrica e a dinâmica do negócio, como é o caso das monoculturas com o uso de maquinário de grande porte (veja-se o cultivo da soja) e a indústria da pecuária; porém, estas não vem ao caso, pois o que me interessa observar é, por um lado, a consciência que o indivíduo ou comunidade pode ter de sua potência de atuação sobre o mundo e, por outro, o impacto do mundo sobre esses indivíduos ou comunidade.

No meio rural, sabemos, estamos sempre submetidos aos eventos naturais que são em si relativos, trazendo-nos tanto fartura quanto escassez, fato este que nos faz perceber que é preciso aprender a estar vulnerável, porque sem vulnerabilidade não se planta. No campo, é evidente que o indivíduo faz parte de um todo variável (um microclima, uma bacia hidrográfica, o vale de um rio), assim como é nítida a relação com os diversos ciclos, como, por exemplo, o de renovação de nutrientes – lavoura rotativa – e o ciclo das águas – plantio por estação. Porque a terra do plantio pode sofrer grandes impactos, quando não consideramos nossa própria vulnerabilidade, nosso próprio impacto, o manejo do solo há de ser preciso e calculado. Além disso, a manutenção do ecossistema ao redor, isto é, do espaço como um todo, garante tranquilidade no acompanhamento da lavoura, controlando a incidência de insetos, pássaros, roedores e outros animais. Assim, diferente do terreno plano e liso das cidades, solo este construído a partir de um projeto civilizatório[2], o solo rural é um solo de fissuras, laborioso de transitar, onde as rachaduras da terra se fazem necessárias para acolher as sementes, onde os acidentes geográficos conduzem e agenciam elementos fundamentais como vento e água, onde corpo (seja animal ou humano) e terra se impactam e também compactuam. Então, operando desde outra lógica, diferente dos terrenos lisos e fluidos, pode-se dizer que a vivência em espaços rurais colabora para o surgimento de vidas afinadas, ou se preferir, aderidas à vulnerabilidade da Terra, aos seus ciclos naturais, às suas pequenas catástrofes. Geadas, aguaceiro, seca, vendaval, enxames, são muitos os acontecimentos que jogam com a permanência no campo. E aquilo que em um primeiro momento parece ser um empecilho ou uma catástrofe, revela-se logo como uma motivação extremamente importante para transigir o impacto que sofrem ambos, indivíduo atuante e espaço rural. Pode-se perceber, então, um jogo de poder que opera sobre a natureza, constituindo-a sem interdições, e que envolve sobretudo uma ética calcada na existência de ambos: indivíduo e Terra. Nesse caso, a capacidade humana de pensar soluções adequadas às problemáticas ocasionais ou permanentes do ambiente revela-se como um modo não agressivo de operar sobre o mundo. Para os anos de forte geada, para os longos períodos de seca, ou ainda, para os períodos de cheias dos rios, estarão adaptados, obviamente, os que puderam observar, pensar e agir. Mas sobretudo no meio rural tem-se a dimensão material do corpo e, por isso, a dimensão do fim. A potência de ação do corpo – energia transformada em força de trabalho – e o fim das coisas acontecem dentro de seus próprios ciclos de vida e morte, processos tão simples e evidentes, mas, muitas vezes, ocultados pelo alto grau de alienação atual, alimentado particularmente pela compulsão ao consumo. No meio urbano, quem consome, pouco sabe sobre a procedência do produto e se estivermos falando sobre um produto de origem animal ou vegetal (como são as roupas, sapatos, móveis, comida), saber de onde vem e como foi produzido se torna ainda mais complicado.

Mas a gente do campo sabe o valor da consciência sobre os fenômenos naturais e sobre sua própria vulnerabilidade. Mesmo sem se dar conta, diferenciam estímulo de prejuízo. Poderíamos chamar isto de vulnerabilidade consciente. A previsão e também a imprevisão dos acontecimentos climáticos ou sociais no campo cadenciam a existência daqueles que vivem na Terra, sobre a terra, da terra. As feridas os tornam cada vez mais fortes, fazem-nos fortes e vulneráveis ao mesmo tempo, estando eles à altura de sua dor, de sua fraqueza isto é, à altura do horizonte terrano. Essa perspectiva de horizonte terrano nos conecta a um paradoxo: pela fraqueza nos tornamos forte. Tomando este aspecto, recorremos a filósofa Barbara Stiegler, em seus estudos sobre Nietzsche e a biologia: “O que faz a fraqueza do forte é que ele se esforça para preservar e mesmo aumentar sua vulnerabilidade, controlando seu grau de exposição às feridas do fora, se protegendo das agressões mais grosseiras, ele pode se abrir às feridas mais sutis” (STIEGLER, 2001, p. 40, tradução minha). Estar à altura do chão, do germe, das larvas, trazer consigo a consciência de que somos aquilo por onde algo passa, uma plasticidade que ganha e perde forma – pois “Só se cavam espaços, só se precipitam ou desaceleram tempos à custa de torções e deslocamentos que mobilizam e comprometem todo o corpo” (LAPOUJADE, 2002 p. 88). Estes seres-germe, isto é, essa gente do campo, os povos indígenas ou qualquer povo ou comunidade que vive na tensão entre a modernidade a extra-modernidade são os que suportam os intemperismos de sua própria natureza, ou melhor, da natureza da qual fazem parte.

Os efeitos da vulnerabilidade estão justamente em nosso encontro com a exterioridade, em nosso contato com o mundo que nos afeta, operando dentro e fora de indivíduos e comunidades. Para mencionar o que acontece com o indivíduo, recorro à plasticidade. A filósofa Catherine Malabou nos diz, em seus estudos sobre a forma da diferença, que a tendência à transformação é uma realidade do corpo, por isso precede o corpo, a estrutura, a forma. Segundo ela, a plasticidade promove a produção de uma outra existência, diferente da anterior, por meio de trânsitos de transformação que levam o ser ou o corpo a uma instância de existência diversa. Seria, quiçá, uma morte parcial ou pequenas mortes, porque, segundo Malabou, o corpo pode morrer sem estar morto, pois haveria uma mutação destrutiva que não seria aquela da transformação do corpo num cadáver, mas a transformação do corpo em outro corpo no mesmo corpo, em razão de um acidente, uma lesão, um dano ou catástrofe (MALABOU, 2014. p. 32).

Neste aspecto, seríamos todos vulneráveis pelos simples fato de estarmos vivos. Sem vulnerabilidade, não haveria plasticidade nem transformação; e sem a consciência da vulnerabilidade reluta-se e resiste-se ao inevitável que é o movimento do ser. Considero, assim como Malabou, o acidente como uma propriedade da espécie, e a capacidade de se transformar sob o efeito da destruição como um horizonte possível, uma estrutura existencial (MALABOU, 2014, p. 30). Todo corpo pode ser impactado por sua exterioridade e o resultado deste impacto é sobretudo a tomada de força e o aumento da capacidade de resistir e adaptar-se, contudo, estando alienado de sua condição vulnerável, o ser não pode perceber e desfrutar da potência de sua transformação. Parece que estamos diante da luta pela vida, muito próxima da “luta pela vida” dos animais do mundo selvagem ou dos povos extramodernos (CASTRO, 2015), pois se resiste à fadiga, a dor, a todo tipo de afecção que atinge o corpo. Parece que, para o que está vivo, resistir é também existir, mas resistir não é suficiente, é preciso também saber aderir, já veremos o porquê.

Considerando que resiliência e existência andam juntas, o filósofo David Lapoujade nos fala sobre um corpo que não aguenta mais. Mas não é porque o corpo chegou ao seu limite de tolerância ou de cansaço que ele “não aguenta mais” e sim porque esta resistência – um possível registro regulatório de intensidades – perece ser a condição do corpo. Porque “[…] se é desde sempre e para sempre que não aguentamos mais, se é desde sempre e para sempre que resistimos, então esta resistência é um profundo fortalecimento, a constante de um limite ou de um último nível.” (LAPOUJADE, 2002, p. 84). Sugiro: pensemos no corpo como um músculo. A resistência seria o tensionamento que ocasiona o fechamento deste músculo, no entanto, trata-se de um tensionar-se que o fecha conectando-o a uma dinâmica mais ampla, um posterior relaxamento e abertura. Assim, teremos o corpo com um ritmo próprio muscular operando num fechar-se e abrir-se constante, possibilitando, a partir dessa dinâmica, a abertura dos sentidos para o que pertence ao regime do sutil. Esta seria uma ginástica favorável ao agenciamento de intensidades do corpo quanto ao que ele resiste ou deixa passar por meio de sua vulnerabilidade.

Resistir às forças que subjugam o corpo, que o oprimem e, ao mesmo tempo, deixar passar as sutilezas é ato de sobrevivência. Portanto, é natural que nosso corpo crie mecanismos de proteção contra possíveis lesões. Sabemos, como já mencionou Lapoujade, que esta proteção pode ocorrer pela simples fuga ou pelo enrijecimento e também pela imobilidade, todos estes processos de fechamento ou de enclausuramento, porém, a exposição ao sofrimento faz crescer a potência de agir dos corpos. Se a potência de um corpo pode ser medida pela sua capacidade de expor-se aos sofrimentos e lesões, então é igualmente natural que o corpo deixe passar intensidades – ainda que dolorosas. Por isso aderir aos afetos do mundo se faz também necessário.

No entanto, diante dos diagnósticos da crise climática atual percebe-se, por um lado, o entendimento (ou será a estratégia?) da vulnerabilidade como um mal que necessita ser remediado e, por outro, a introjeção da ideia de mártires nos corpos afetados, nos sofridos. A vulnerabilidade, neste contexto, parece precisar de cura, e esta tentativa de cura só vem a reforçá-la de maneira negativa, ignorando a condição vulnerável (estímulo) e impondo a situação vulnerável (prejuízo) da qual seria necessário sair, mas não se consegue. Desta forma, um termo que, a principio, está relacionado à regulação da potência de intensidades de todo corpo – da qual não é necessário curar-se, posto que é parte da condição de existência dos indivíduos e coletivos no mundo – torna-se termo que corresponde a certa incapacidade, ou descapacacidade do indivíduo ou de uma população de se adaptar ao seu meio impactado. Ou ainda, refere-se à ignorância ou à falta de conscientização a respeito do perigo, fazendo com que indivíduos e populações sofram mediação na resolução de seus problemas. Assim, a vulnerabilidade que é válvula de força do sujeito, torna-se característica de populações debilitadas, mártires, que em teoria jamais poderão agir ou exteriorizar seus sofrimentos.

Porém, quando se observa com atenção as comunidades ditas em perigo percebe-se que antes da evidente vulnerabilidade, que se apresenta num primeiro plano, há uma repressão generalizada em relação ao alcance de sua autonomia, em seguida, vê-se o completo abandono por parte do Estado ou o descuido por parte de iniciativas privadas. Desta forma, a própria comunidade não saberá o que é melhor para si, porque é impedida de refletir e agir sobre seu espaço. Isto se prova diante da necessidade de intervenção do Estado onde muitos desses indivíduos e comunidades não recebem atendimento adequado, enquanto que eles próprios se sentem coagidos e nada fazem por si mesmos. Parece-me evidente que os efeitos da impossibilidade de pensar para si saídas ou de agir sobre suas próprias mazelas enfraquece e torna passiva a existência de qualquer corpo no mundo. A mediação, nestes casos, torna-se perversa, intervindo como instrumento alienante de controle de populações. Por vezes, a constatação do risco é espetacularizada e a vulnerabilidade  capitalizada.

 

MUNDO COMO CORPO: GAIA

Corpos e mundos são diversos. Mas, em suas respectivas autopoieses, ambos – corpo e mundo – sofrem tensões sobre a própria plasticidade. Entre os efeitos externos e os deslocamentos internos, parece ser fato que corpo e mundo “não aguentam mais”. Consumidos por algo alheio aos seus próprios cursos e diante das imposições da recente problemática global, ambos colapsam. Em face das atuais circunstâncias climáticas, o duplo colapso (corpo e mundo) parece dar nova forma as coisas, ou melhor, deformar as estruturas existentes, sugerindo mudanças profundas no comportamento das comunidades e, sobretudo, nos sistemas políticos e econômicos.

Nesse caso, é preciso considerar também a plasticidade de Gaia, com sua forma Terra, como unidade complexa criando condições para manter vivo seu ecossistema. Sabemos que a vulnerabilidade reside onde há forma, estrutura ou uma definição qualquer que possa ser deslocada de sua plasticidade inicial. Com isso, supondo que toda forma e toda estruturação envolve o risco de perda de si, e visto que esta forma sofre visivelmente deformações advindas de sua dinâmica de afetos, tomamos a vulnerabilidade do planeta tão pertinente quanto a dos indivíduos. Evidentemente, uma está correlacionada à outra. Porque a vulnerabilidade se refere sobretudo às estruturas, sejam elas físicas ou subjetivas, de corpos e matérias que no contato externo/interno (com o outro) formam-se e deformam-se, criam-se e destroem-se, como numa dança entre estrutura fixa e vulnerabilidade, que resulta, como toda dança, em deslocamento. Assim seria Gaia, um corpo permeável que sofre e comete afetações.

Falemos então sobre essa vulnerabilidade recíproca que se pode encontrar no contato indivíduo-Terra. Vejamos o caso de O Cavalo de Turin (A Torinói Ló), filme de Béla Tarr, que nos remete à ideia de um mundo que não aguenta mais. A tormenta que acompanha toda a narrativa – sem cessar – aparece como evidência dos fenômenos que constituem diversas vulnerabilidades. Vemos Gaia reagindo impiedosa, enquanto os personagens resignados não demonstram resistência diante da completa escassez anunciada. O forte vento vem trazer a instabilidade de tudo que se ergue sobre o chão da Terra. O personagem Ohlsdorfer e sua filha (cujo nome não sabemos) têm também seus corpos declinados por esta força em forma de vendaval, que nada mais é do que uma resposta aos impactos que Gaia parece ter sofrido. Os personagens reagem com uma constante repetição de ações cotidianas que apenas sofrem minúsculas interrupções ou pequenas mudanças de direção quando forças externas atravessam sua realidade: a visita de um vizinho, a passagem de uma carroça com ciganos, a falta de água do poço. Tudo se passa no espaço da fazenda, entre a casa, o poço de água, o estábulo e a paisagem da janela. Além disso, podemos perceber a dinâmica de interdependência cotidiana entre os humanos e o animal – muito comum no meio rural –, e sua interrupção pela resistência do cavalo em não comer, não beber, não andar, isto é, não obedecer à dinâmica repetitiva, ao labor de sempre. O cavalo, supostamente pelo qual Nietzsche chorou, responde à tormenta paralisando-se, enquanto filha e pai respondem com tentativas, frustração e reconfiguração de seus movimentos repetitivos. Talvez o cavalo tenha consciência de que o mundo “não aguenta mais”; quiçá ele perceba que já não existe perspectiva e que não há nada mais depois da ventania… Essa suposta percepção do cavalo materializada em resistência impacta os humanos, forçando-os a reconfigurar suas ações.

O filme nos apresenta a morte da vida no campo, o fim do mundo rural e faz refletir sobre a desconexão entre nós, humanos, e a existência da Terra. A crença moderna adormeceu os sentidos em relação aos poderes de Gaia e, da ruptura humano-Terra não escaparam também alguns camponeses em seu mundo rural. Considerando o isolamento e o sucateamento de muitas comunidades rurais e sobretudo o fato de que há abundância de recursos e escassez de serviços – incluindo os fundamentais como escolas e hospitais –, a modernidade atinge o campo e o impacta com promessas de acesso à serviços de toda ordem: uma perspectiva de vida prática ou de riqueza material e imaterial. Assim, em muitos casos, quando os camponeses não abandonam o campo, vivem a melancolia da modernidade que demora a chegar. E o campo, que antes era um lugar central de produção, torna-se uma ilha melancólica. E então, quando as gentes do campo não se compreendem mais como parte de seu próprio universo, é comum que o fim do mundo se estabeleça na vida destas pessoas. O mundo acaba porque existe a sensação de que o seu lugar não faz mais sentido e sequer tem utilidade. O mundo termina ali porque se tem a ilusão de que se construiu um mundo mais vivo e vibrante “lá fora”.

Em um momento do filme de Béla Tarr, não há mais água no poço. Então Ohlsdorfer mobiliza-se e decide ir para a cidade, mas parece que já não há nada mais ali… Porque todos partiram ou porque tudo está tão escasso quanto na casa no campo. Não sabemos exatamente o que se passou: os vemos ir e retornar pelo mesmo enquadramento que tem a paisagem da janela da casa, e pergunta-se: se há tormenta por toda parte, se o mundo está acabando, o que encontrariam eles na cidade? Uma razão, uma resposta, isto é, o pensamento? A certeza e o conforto de saber que o fim chega para todos? Mas o fim de um mundo parece ser também o fim do pensamento sobre ele.

Mesmo diante da tormenta, a vida naquele lugar no campo resguarda suas proporções. Entre a sala da casa, o estábulo e a paisagem da janela, até o fim tudo tem seu justo tamanho.

Retomando as questões da ecologia, parecesse-nos evidente que a imagem de um possível colapso ou a sensação de um futuro incerto é parte fundamental da construção das subjetividades contemporâneas. Veja-se que isto é diferente da alienação da dor e da morte, e talvez seja parte dessa dinâmica de blindagem do corpo. O fim já está estabelecido, porém não se pode senti-lo como dor ou como morte. Porque o pensamento sobre o fim do mundo nos chega espetacularizado, midiatizado, ou seja, distante de nós, como o evento a ser assistido passivamente, apesar de sermos todos potenciais impactados.

É fato, relatórios oficiais (político-científicos) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Ipcc)[3] alertam a sociedade civil e as lideranças mundiais sobre os limites do sistema planetário. A velocidade do processo de mudança climática faz com que o planeta atinja parâmetros de risco que afetam o bem-estar e a sobrevivência, e isso se dá justamente pela ação humana em grande escala. Soluções desenvolvimentistas ou aceleracionistas alcançaram tal ponto de saturação que amplificar a velocidade dos processos de mudança do clima. Esse processo de mudança (nomeado como crise) parece ser molecular, isto é, qualquer movimento ou micromovimento se soma a uma complexa cadeia de eventos, promovendo sintomas evidentes na Terra e, por consequência, oferecendo risco à sobrevivência humana e não humana.

Diante do que se vai construindo com estes informes catastróficos, ou seja, com os dados sobre aumento de temperatura, enchentes etc., o que podemos perceber é um futuro que se torna imprevisível, até mesmo inimaginável fora dos quadros da ficção científica ou das escatologias messiânicas (DANOWSKI, 2014, p. 23). Então, ao que parece, existiria aí um descompasso entre ação e imaginação humana, porque supostamente haveria uma potência de produção que a imaginação não acompanha. Isto é, verificamos, nessa problemática escatológica, a cisão entre ação e imaginação, em outras palavras, entre o ser e a ação. Porque, por exemplo, as decisões tomadas a respeito do destino da humanidade fogem à dimensão da escala do indivíduo ou da comunidade. Uma pessoa dificilmente consegue se relacionar com a dimensão de uma ação de escala ampla. Ações de grandes proporções englobam a todas as pessoas, mesmo que estas não tenham optado ou decidido por elas. Um exemplo possível é um tema típico dessa problemática: a emissão de gases originários de combustíveis fósseis. Todos sabem dos problemas causados pela emissão, todos emitem, mas nem todos possuem a dimensão exata do que é ter bilhões de pessoas emitindo o mesmo gás. No entanto, cada emissão individual, hoje, colabora para a contaminação do ar e para as mudanças climáticas. Parece-nos óbvio que a sociedade civil ainda assim exerça menos influência para o desequilíbrio do clima do que os governos e as indústrias, mas às microações se somam as macroações de maneira consistente, enquanto as decisões são tomadas por poucos.

Diante disso, uma vez que a situação parece ser compreendida por uma parcela da população, estes são novamente capturados por soluções de um esquema verde, politicamente ecológico que, supostamente, estaria amenizando suavemente nossa corrida para o fim através do consumo de produtos ecologicamente corretos ou de um aceleracionismo que se apresenta pautado em uma publicidade “consciente e preocupada” com as populações vulneráveis e não com a vulnerabilidade dos indivíduos e populações. Resta à população apenas a decisão por meio do consumo.

Com isso, faz-se necessária a quebra da imensa barreira que separa o humano das coisas, isto é, de todas as forças que alienam o contato humano-Terra. Um aTerrar-se, literalmente, torna-se uma contraconduta, no sentido de voltar-se para a Terra, profaná-la. A Terra, transformada em um objeto contaminado pela cadeia de produção e consumo, é algo que necessitamos “tomar para si”[4].

Quando penso sobre como seria um corpo sem mundo, penso nele. As mãos muito grossas e calejadas, sempre feridas, espetadas ou aranhadas. A cor da pele do tronco e dos largos braços diferente da cor do restante do corpo, que é a mesma cor que se intensifica no pescoço marcado pelo sol. Sua força muscular se evidencia na formação de seu tronco, que é mais largo que a extremidade inversa, o quadril. As pernas finas que saem do quadril são irregulares, uma delas aparenta ser muito mais fina que a outra, ou mais curta, talvez… Esta perna seca, atrofiada, dá a ele uma instável pisada e uma caminhada de ritmo marcado. A caminhada ganhou, ao longo dos anos, certa normalidade, é uma forma com a qual já nos acostumamos. O álcool muitas vezes colabora com essa dinâmica motora rítmica e ajuda na variação dela.

Este corpo parece mesmo deslocado de seu mundo. O mundo dele, disseram-me certa vez, acabou, acabou justo quando eu nasci. E ele sofreu, com esse deslocamento, um colapso. Podemos mesmo perceber em suas ações cotidianas o desencontro entre pessoa e espaço.

O que ele sabe fazer e o que ele deseja não se direciona para onde ele mesmo está. Não existe mais, porque acabou. Digo, acabou a configuração da qual ele fazia parte, não existe mais o contexto para o qual sua subjetividade foi moldada, o local para onde foram dedicadas suas ações e a função para qual foi fabricado seu corpo, porque terminou onde repousa seu desejo e seu jeito de ser no mundo. Sim, eu o reconheci quando era o princípio de seu fim, eu o reconheci quando o mundo dele acabou. Ainda pude viver alguns resquícios, restos ou rastros. Foram alguns anos na ilusão de que ainda havia algo, mas logo, vulneráveis, nos perguntávamos, ele e eu: e o que será agora? Eu segui pelos mundos que havia e ele um dia parou, deparou-se com o cansaço de andar sobre suas pernas instáveis.

O corpo deslocado do mundo não pode erguer-se completamente sobre o chão e, por isso, anda como se estivesse sob o efeito de uma tormenta, instável, irregular… As marcas deste corpo evidenciam a criação de uma forma estranha, desforme, inadequada, destoante… Tanto o corpo quanto o mundo seguiram abandonados ou esvaziados daquilo que os movia. O lugar deixou de existir e o corpo deixou de desejar. Pode-se ver o vazio do corpo preenchido pelo alcoolismo e o vazio do lugar preenchido pela braquiária.

Este é um exemplo bastante comum de um corpo colapsado – um corpo que não aguenta mais e que, neste caso, enfrenta dificuldades em transformar seu acidente ou sua dor em algo afirmativo. Porque, além do colapso, há o radical deslocamento que se impõe sugando toda a energia criativa – que poderia ser investida na ultrapassagem –, na tentativa de manter o corpo de pé em um solo totalmente desconhecido. Que corpo é esse? Um corpo atropelado pela modernidade, um corpo moldado pela falta de um lugar no mundo, um corpo que, inadequado, se forma, deforma… Um corpo que não pode mais agir, não pode mais responder ao ato da forma, porque o agente parece ter perdido o controle sobre si.

Parece estarmos diante do colapso de um corpo e de um mundo que se desencontraram no fluxo natural das coisas, por conta de imposições externas ao desejo de um sujeito e à existência de um espaço.

Ele parou, não aguenta mais. E me pergunto: por que segui? Talvez pela sensação de movimento. O deslocamento, quando se torna uma dinâmica, por um lado, projeta para o novo, atualizando pessoas, lugares, comportamento, interesses e pensamentos, mas, por outro, aprisiona a um recorrente desejo de movimento, uma espécie de ânsia de peregrinação que parece dar sentido à vida. Mas quando seria a hora de parar? Antes que minhas pernas também fiquem irregulares e, secas, já não possam transitar com elegância…

De fato, um grande desafio é viver em tantos mundos ao mesmo tempo. Porque na verdade, evidentemente, não se vive em nenhum. Como filha do fim do mundo do meu pai, eu mesma não pude ter o meu mundo, e fui viver em todos os mundos, os mundos de tantos outros. A vida na cidade foi um deles, a vida artística e intelectual também é um desses mundos que parecia não ser meu. Parecia, parece, mas cá estou, vivendo… Então, como crer no mundo que está diante de si? Como tomá-lo seu ou como pertencer a esse mundo? Uma resposta me veio pelos sonhos: aterrando-me. Foi uma resposta-germe, larva, vinda do horizonte da terra. Conectar-me novamente com a Terra, ou com o solo. Sim, aterrar-me nas questões que de fato me engajavam só foi possível quando soube olhar ao redor desde determinados pontos de referência, isto é, sobre um solo. Alerto que não se trata de territorializar um solo, refiro-me a algo mais sutil: sentir-se íntima dele, estar próximo, manter um contato sinestésico com o chão.

Para tanto, para aTerrar-se, abrir e fechar o corpo torna-se uma dinâmica comum à existência. Aderir ao chão que sustenta meus passos é abrir-me para o sutil, o que pode dar ao corpo uma enorme capacidade de resiliência.

Encerro este breve artigo com a sensação de que sobreviver é sobretudo criar. A potência criadora é constituinte do ser. Criamos corpo, coisas, recriamos diante de acidentes e transmutamos matéria, energia. Esta percepção que se determina por um inesgotável “para se”[5], evidencia a permeabilidade de tudo aquilo que tem forma e a possibilidade de uma existência com contornos borrados, não definidos, em que a vulnerabilidade é elemento central, motor de criação. É disso que trata esse texto, é isso que move a vídeo-performance que com ele conversa (vimeo.com/139866491).

 


REFERÊNCIAS

 

DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há Mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie: Instituto Socioambiental, 2014.

DELIGNY, F. et al. Le Moindre Geste. Documentário. 105 min | 35mm, Vídeo | P&B | França – ISKRA | 1971. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=i20VWKO9Sdk> Acesso em: 30 abr. 2015.

FOUCAULT, M. Historia da Sexualidade I: Vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

LAPOUJADE, D. O corpo que não aguenta mais. In: LINS, D.; GADELHA, S. (org.). Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002. p. 81-90.

LEPECKI, A. Exhausting Dance. Performance and Politicy of Moviment. New York and London: Routledge, Taylor and Francis Group, 2006.

MELITOPOULOS, A.; LAZZARATO, M. O animismo maquínico. Cadernos de Subjetividade,: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós–Graduados em Psicologia Clínica da PUC–SP, São Paulo, ano 8, n. 13, out. 2011.

PELBART, P. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento | Cartography of exhaustion: nihilism inside out. Ed. Bilingue.Tradução de John Laudenberger. São Paulo: n-1 edições, 2013.

SIMONDON, G. La individuación a la luz de las nociones de forma y de información. Buenos Aires: La Cebra; Cactus, 2009.

STIEGLER, Bárbara. Nietzsche et la biologie. Paris: PUF, 2001 (Col. Philosophics)

VIVEIROS DE CASTRO, E. Sobre os modos de existência dos coletivos extramodernos: Bruno Latour e as cosmopolíticas ameríndias. Projeto de pesquisa. Disponível em: <https://ufrj.academia.edu/EVdeCastro>. Acesso em: 30 abr. 2015.

 

Recebido em: 10/03/2016

Aceito em: 15/03/2016

 


[1] Cinthia Mendonça é pesquisadora e performer. Graduada em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestra em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/EBA/UFRJ), na área de teoria e experimentação das Artes, e doutoranda em Artes e Cultura pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (PPGARTE/UERJ). Website: http://cinthia.mobi. E-mail: cinthiamendonca@gmail.com

[2] Uma ideia de território nos foi instaurada desde um violento marco civilizatório; este terreno se mostra liso e fluido para uns e áspero, difícil de transitar para outros. Um terreno colonizado produz corpos colonizados, isto é, nas periferias e zona rurais brasileiras, por exemplo, produz-se a relação de servidão campo-cidade ou periferia-cidade. E, num contexto mais amplo, podemos constatar que o projeto urbano homogêneo, em contraste com os exemplos de espaços que trazemos, colabora para a construção de uma ilusão de solos supostamente lisos e fluidos, que demandam sujeitos imersos em uma espécie de compulsão pelo consumo. Sobre corpo colonizado ver: LEPECKI, 2006.

[3] O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas foi criado em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). O painel serve para avaliar de forma direta informações científicas, técnicas e socioeconômicas que sejam relevantes para entender os riscos da mudança climática causada por ações humanas e seus potenciais impactos e opções para a adaptação a mitigação Cf. IPCC, 2014. Disponível em: <http://ipcc-wg2.gov/>.

[4] Esta parte do texto foi baseada amplamente em anotações realizadas durante a disciplina Ecosofia e Subjetividade: Geofilosofia Pós Humanista, Aceleracionismo, Descida Terrana, ministrada pelos professores Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowsky (PUC-RJ) e oferecida pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ) no segundo semestre do ano de 2014.

[5] “Era uma vez homens e pedras. Eles permaneciam voluntariamente perto das fontes, mas não sabiam o motivo. A água é uma coisa que não esgota o “para beber”. E as pedras ali estavam também, e o “para se sentar”, o “para quebrar nozes nelas”, o “para construir muros”, e o “para marcar estradas” não as esgotam. Esse garoto invivível, insuportável, incurável, toma iniciativas. Ele lança o dado e lá vai ele fazer. Mas num mundo onde reina a linguagem, terá ele algum dia a liberdade? Resta saber se nós a temos. E vai saber o que ele ouve. Vozes que não o são e que falam do tempo em que o ser humano não era, nem um nem outro, discriminado pela linguagem. Ele escuta. Nenhum animal escuta assim, para nada. O barulho que vem do mais profundo da água, que não é uma coisa, visto que ele não é uma pessoa” (DELIGNY apud MELITOPOULOS; LAZZARATO, 2009, p. 18).

A vulnerabilidade do corpo no mundo

 

RESUMO: Fazendo uso de uma narrativa poética e fatual o artigo traz uma reflexão sobre a implicação da vulnerabilidade na potência de criação e transformação do corpo e da Terra, levando em consideração a vida em pequenas comunidades rurais e o colapso sofrido por muitas delas.

PALAVRAS-CHAVE: Vulnerabilidade. Corpo. Mundo.


Body Vulnerability in the World

 

ABSTRACT: The article presents a reflection on the implications of vulnerability in the power of creation and transformation of the body and the Earth, taking into account the life of small rural communities and the collapse suffered by many. The text uses poetic and factual narrative.

KEYWORDS: Vulnerability. Body. World.