A ursa: quando uma imagem morde | Camila Benatti Policastro


 

Camila Benatti Policastro[1]

 

Na frase “os ursos nos dão um presente”, existe a ideia de que um diálogo com os animais é possível, ainda que ele se manifeste apenas raramente sob uma forma controlável; existe também a evidência de viver num mundo em que todos se observam, se escutam, se lembram, dão e retomam; existe ainda a atenção cotidiana a outras vidas que não a nossa; existe enfim a razão pela qual me tornei antropóloga. (Nastassja Martin, 2021, p. 77)

O encontro

De certa forma eu tive, também, um encontro com a ursa. Não visceral, como o de Nastassja Martin (2021), a antropóloga que teve sua face abocanhada por um urso marrom na Rússia. Minha pesquisa arqueogenealógica não regala o encontro carnal com este temível mamífero mais forte e bem adaptado à cadeia alimentar das florestas frias do planeta. Tampouco me proporcionam os aromas e o frescor das matas. Minhas narinas — alérgicas — encontram os odores típicos de um arquivo: mofo e poeira me desafiam nas páginas amareladas dos objetos que esperam o manuseio. Outras espécies me acompanham na pesquisa com as imagens do arquivo: fungos do mofo, os ácaros e as traças do papel guardado ou, mais recentemente, os bugs tecnológicos dos arquivos digitais. O manejo arquivístico dispõe desta segurança microscópica. Apesar disso, não deixei de me afetar com o encontro com a ursa-polar. 

Em 2021, encontrei-a em uma fotografia em preto e branco (Figura 1), estampada na revista National Geographic Magazine, ilustrando um artigo intitulado “O Ártico como uma rota aérea do futuro” (Stefansson, 1922), escrito por outro temível mamífero, o homem branco explorador. À primeira vista, a imagem me tocou pela simpatia do conjunto: uma mãe ursa-polar, acompanhada por dois filhotes. Os três animais centralizados na fotografia ocupando um bloco de gelo flutuante protagonizam a cena e, ao fundo, somente o mar e o céu são cúmplices.

(Leia o ensaio completo em PDF)

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Recebido em: 15/09/2024

Aceito em: 15/11/2024

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[1] Universidade do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Educação. Email: camilabpolicastro@gmail.com

A ursa: quando uma imagem morde

 

RESUMO: Abocanhada pelo encontro com a fotografia — e legenda — de uma ursa polar e seus dois filhotes em um arquivo, senti-me compelida a tramar uma narrativa e ficar com este problema. Narrar surge tanto como exercício de pensamento e manuseio arquivístico, como se coloca como desafio ao presente espesso em que vivemos ao costurar sentidos com os fios de uma história. A história/estória da caça e do caçador, invasor e invadido, explorador e explorado, ameaça e ameaçado, se embaralharam no decorrer de uma trama que tem como objetivo compor relações multiespécies, interclimáticas e pluriculturais. Assim, o texto está organizado pelo relato do encontro com a ursa, seguido da investigação do que significa pensar a imagem deste animal ao longo do tempo-espaço, desde a chegada do explorador moderno nas terras do Ártico e o deslocamento da espécie para o Brasil.  

PALAVRAS-CHAVE: Arquivo. Narrativa. Multiespécie.

 


The bear: when an image bites

 

ABSTRACT: Confronted by the encounter with the photograph—and caption—of a polar bear and her two cubs in an archive, I felt compelled to weave a narrative and stay with this trouble. Narration emerges both as an exercise of thought and archival handling, as well as a challenge to the dense present in which we live by weaving meanings with the threads of a story. The story of the hunt and the hunter, invader and invaded, explorer and explored, threat and threatened, became intertwined in a narrative aimed at composing multispecies, interclimatic, and multicultural relationships. Thus, the text is organized as a recounting of the encounter with the bear, followed by an investigation into what it means to think about the image of this animal across time and space, from the arrival of the modern explorer in Arctic lands to the species’ displacement to Brazil. 

KEYWORDS: Archive. Narrative. Multispecies.


POLICASTRO, Camila Benatti.. A ursa: quando uma imagem morde. ClimaCom – Desvios do “ambiental” [online], Campinas, ano 11, nº. 27. dez 2024. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/a-ursa