A estética cônica de uma tarrafa | Paulo Cesar Franco
Paulo Cesar Franco[1]
As fronteiras entre mundo humano e mundo natural, construídas secularmente pelo pensamento moderno e pela divisão disciplinar do conhecimento, ganham linhas de fuga. Linhas que criam um emaranhado vital de relações e abrem horizontes para imaginar outras subjetividades e outras formas de educar em uma relação intensiva com a vida (Wunder, 2020, p.78).
Introdução
Queria vir ao mundo através de uma ideia prazerosa. Uma ideia que fizesse meu feitor feliz e propagador da minha estética cônica agradável aos sentidos (Cotrim, 2013, p. 381), mesmo sabendo que o ofício para a minha materialização não seria nada fácil. Torci muito que meu feitor jovem pescador não desistisse de mim, mesmo reconhecendo que não tinha ainda habilidade suficiente para me tecer como fazia o hábil mestre pescador, o ancião que não existia mais em carne e osso…
Esforçava-me pela manhã, durante o dia e ao anoitecer teimando em sua mente e coração para que não desistisse de mim. Às vezes, me sentia insegura quando ele decidia emprestar uma tarrafa do vizinho para pescar. Mais triste e desgastada fiquei quando uma ideia concorrente passou a habitar perto de mim e tentou convencê-lo que haviam muitas tarrafas prontas para serem vendidas. Proclamava a ideia oponente: “para que fazer uma tarrafa?” Lembro-me que numa certa manhã me senti vencida pela ideia opositora quando conseguiu levar o jovem a uma loja de tarrafas. Todas ali eram belas, pois suas estéticas cônicas encantavam os olhos do jovem pescador. Ele imaginava ser proprietário de uma delas sem ter que fazer o esforço para tecê-la.
Eu queria existir através das mãos daquele jovem pescador para que fosse dada a continuidade da linhagem, da tradição, dos saberes de experiências (Larrosa, 2002, p. 27) do mestre pescador que havia desencarnado. Ele já havia cumprido sua missão na terra e não tinha quem desse continuidade ao seu ofício de tecer tarrafas, instrumento de pesca caiçara, que necessita de um conhecedor da arte de tecer, um “filósofo da pesca”, pensando com Deleuze na filosofia criação (Deleuze, 2013, p.156). Teimava na mente do jovem pescador para que ele se encantasse por minha estética cônica. Que sua capacidade filosófica de criação imaginasse porquê de uma tarrafa começava com poucas malhas e terminava com dezenas delas. Como aquilo acontecia? Qual o sentido daquele modelo cônico de rede? Quem havia inventado aquele tipo de apetrecho de pesca?
(Leia o artigo completo em PDF).
Recebido em: 20/03/2021
Aceito em: 15/04/2021
[1] Caiçara, professor de filosofia, mestre e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp na linha Linguagem e Arte em educação e no grupo de pesquisa Laboratório de Estudos Audiovisuais – OLHO. E-mail: pcfranco15@gmail.com
A estética cônica de uma tarrafa
RESUMO: O artigo trata de um diálogo entre uma tarrafa, instrumento de pesca artesanal caiçara usada no município de Iguape/SP, e um jovem pescador que vive a indecisão de comprar uma tarrafa pronta ou seguir a tradição do mestre artesão que tecia esse tipo de rede de pesca. Depois de muita insistência da tarrafa, o jovem pescador decide seguir os passos do mestre pecador e dar continuidade a cultura do tecimento da tarrafa. Começa tecendo pela malha inicial até chegar na malha de acréscimo e segue pelo entralho terminando com a colocação do chumbeiro. Durante o tecimento e a formação da estética cônica da tarrafa, a mesma dialoga com o jovem pescador sobre os valores e saberes de experiências da cultura caiçara e a importância da continuidade da sabedoria tradicional de tecer tarrafas. A conclusão da tarrafa se dá numa pescaria onde as malhas descem até o fundo do rio de onde traz os peixes para a alimentação da família do pescador. No final do dia, a tarrafa é acomodada no galho de uma árvore de onde filosofa com o luar da madrugada. Sua missão até ali fora cumprida: convencer o pescador de dar continuidade ao tecimento de uma tarrafa de estética cônica.
PALAVRAS-CHAVE: Tarrafa. Estética cônica. Cultura caiçara.
The conical aesthetics of a tarrafa
ABSTRACT: The article deals with a dialogue between a fishing net, an artisanal caiçara fishing instrument used in the municipality of Iguape / SP, and a young fisherman who lives in indecision to buy a ready net or follow the tradition of the master craftsman who wove this type of fishing net. fishing. After much insistence from the net, the young fisherman decides to follow in the footsteps of the master sinner and continue the culture of the netting of the net. It starts by weaving through the initial mesh until it reaches the addition mesh and continues through the groove ending with the placement of the anchor. During the weaving and the formation of the conical aesthetic of the net, the same dialogues with the young fisherman about the values and knowledge of experiences of the caiçara culture and the importance of the continuity of the traditional wisdom of weaving net. The completion of the net takes place in a fishery where the meshes descend to the bottom of the river from where they bring the fish to feed the fisherman’s family. At the end of the day, the net is accommodated on the branch of a tree from where it philosophizes in the early morning moonlight. His mission until then had been accomplished: to convince the fisherman to continue weaving a conical aesthetic net.
KEYWORD: Tarrafa. Conical aesthetics. Caiçara culture.
FRANCO, Paulo Cesar. A estética cônica de uma tarrafa. ClimaCom – Coexistências e cocriações [Online], Campinas, ano 8, n. 20, abril.2021. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/a-estetica-conica/