“A escrita é um ato fisiológico”: entrevista com Flavia Neves | Daniela Feriani

Flavia tem 35 anos, é capixaba e mora em Vila Velha, ES, com três gatos e uma dúzia de plantas. Graduada em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), é educadora, artista e escritora. Se ninguém parecia entendê-la ou ampará-la, encontrou na escrita uma possibilidade de existir a seu modo. Flavia faz da própria arte um modo de vida – ou da própria vida uma obra de arte. De uma sensibilidade crítica e poética, a artista nos convida a mergulhar na vida, sentir as coisas de maneira plena e, por vezes, ousada.

Daniela Feriani[1]

Flavia tem 35 anos, é capixaba e mora em Vila Velha, ES, com três gatos e uma dúzia de plantas.  Graduada em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), é educadora, artista e escritora. Atua na luta política pelo direito à saúde e se dedica à produção literária e artística de maneira independente, além de trabalhar com seu “eterno primeiro amor”: a educação. É membra da Associação Mãesconhas do Brasil, que defende o direito ao uso terapêutico da cannabis e ao cultivo próprio, do Coletivo Felicidade Elefantástica, que reúne escritores interessados em produzir e estudar literatura, além de oferecer cursos de formação, e do Duo Flamar, uma parceria com outro artista para fomentar o pensamento crítico e criativo, com realização de exposições e outros projetos.

Em 2023, Flavia lançou Flor e, em 2024, Rizoma – seus primeiros livros, ambos verbovisuais. Além de poesias, frases, fragmentos, as obras contam com pinturas e fotografias da artista, que também produziu toda a parte editorial, como capa, diagramação, projeto gráfico, revisão. O terceiro livro – Estigma – já foi lançado como parte de sua primeira exposição individual – Travessias – e está em vias de ser oficialmente publicado.

Se ninguém parecia entendê-la ou ampará-la, encontrou na escrita uma possibilidade de existir a seu modo. “Escrever foi tornando a existência tangível.” Para Flavia, o escritor é um artista da palavra. “Penso que é preciso devolver a literatura ao seio da arte.” Mas é mais do que isso. Flavia faz da própria arte um modo de vida – ou da própria vida uma obra de arte. Além de tornar a vida vivível – a escrita como um ato fisiológico –, escrever também funciona como um meio de transformar a vida em arte, de trazer arte ao cotidiano, a arte de viver, a arte de ser quem se é.

De uma sensibilidade crítica e poética, Flavia nos convida a mergulhar na vida, sentir as coisas de maneira plena e, por vezes, ousada. “Cheiro quadros, danço na rua, toco cores, esculpo palavras, instalo teorias. Sou uma artista contemporânea, uma mente propositiva.” Ponderada com rótulos e convenções, Flavia não se deixa aprisionar e marca seu lugar no mundo. Sabe muito bem o quanto precisou e precisa lutar para que esse lugar seja aceito, reconhecido, validado. Usuária dos serviços de saúde mental desde os dez anos de idade, é consciente dos males e dos benefícios, dos limites e dos alcances dos discursos e das práticas médicas. Do mesmo modo, reconhece a importância que o diagnóstico de autismo teve em sua vida, mas vai muito além dele. Sonha com um mundo em que um manual com mais de trezentas “doenças” ou “transtornos” possa se transformar em “meia dúzia de condições organizadas em espectro, para nos ajudar a compreender a diversidade da natureza e das necessidades humanas”.

ClimaCom – Daniela Feriani – Quando você soube do diagnóstico de autismo? Como foi?

Flavia Neves – Eu identifiquei o autismo aos 28 anos de idade. Encontrei essa resposta no processo de análise. Mas não tive muito amparo ou oportunidade de diálogo qualificado de imediato, o que tornou a descoberta conturbada. Formalmente, recebi o diagnóstico aos 30, quando pude ser acompanhada por profissionais que entendiam de autismo e sabiam o que se passava comigo. Isso foi uma virada de chave. Finalmente, respostas mais precisas foram dadas a perguntas que, até então, ficavam no vácuo ou eram respondidas vagamente, com sugestões de que me faltavam esforço e comprometimento para caminhar melhor pela vida. Pude entender o quanto as altas habilidades tornavam difícil perceber o autismo e vice-versa.

Sou usuária de serviços de saúde mental desde os dez anos de idade, por ter sido identificada na escola como diferente das demais crianças e ter um sofrimento acentuado, porém nunca houve explicações ou mesmo orientações que pudessem contribuir para meu desenvolvimento. É claro que o diagnóstico não elimina as angústias próprias do viver, nem responde a tudo. Não é essa sua função. Mas, com compreensão sobre meu funcionamento, pude adaptar minha vida e, sobretudo, fazer escolhas mais conscientes dali em diante. Venho me desenvolvendo em áreas importantes, como relacionamentos e cognição, com respeito aos meus interesses e modo de ser – o que me permitiu, pela primeira vez, pertencer também a mim mesma.

(leia a entrevista completa)

[1] Antropóloga formada pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Atualmente, é bolsista de Jornalismo Científico (Mídia Ciência) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, com o projeto “A demência como outro mundo possível: ações de divulgação científica” [2024/05623-0]. Email: danielaferiani@yahoo.com.br