Páginas de um diário de corpo do pensamento: atmosfera de espanto no devir da escrita


Maruzia Dultra [1]

 

 

página um

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Por que um diário, se existem outras formas?

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Para dar forma à matéria que desejo – o pensamento – o traçado de um caminho que é dele, não meu. Toda poluição toda turbulência toda confusão toda – bolsa-rôta: a violência necessária para quebrar as paredes e liberá-lo.

Liberação ou libertação?

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Não havia um prisioneiro; o que havia era um não. Não qualquer-coisa, que precisava de existência. Embora já existisse, era sempre e somente sob certos aspectos e intensidades – precisava de mais. Pedia uma passagem, uma brecha, uma fresta – qualquer coisa para uma não qualquer-coisa. A casquinha do ovo que se deixa rachar. Esperava, então, sua hora – o momento quasexato de ser chocado, a liberação do pensamento vivo.

Queria tornar-se, não mais pela sombra do que havia sido negado. A falta não saía do lugar (não sairia), mas já não era necessário, nem possível, deixá-la ocupando toda a página. Se havia mais, uma qualquer coisa de qualquer-coisa nele, clamava por exercê-la. Era o espaço do encontro, uma superfície, a certidão de um nascimento. A liberdade não lhe aparecia como demanda ou cobiça – antes disso: era uma história que não tinha nome, nem personagens. Uma história sem história. Como o casamento: uma ideia sem corpo. Agora, ela haveria de ser erguida e povoada – a vida, finalmente.

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Diante da experiência de ser, estar e existir, gozou de seus possíveis, seus próprios possíveis e seus outros. Os limites que um pensamento pode, bebendo dos lugares que se fazem sede – não sede. Um pensamento livre para ser sedento apenas quando precisa e, então, beber das fontes que deseje.

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O laboratório, o atelier, o escritório, todas as sedes edificadas em magma, viabilizando circuitos irresistíveis para a concepção de um vulcão. Lava sob lava, cedendo às linhas flamejantes de elétrons que se deslocam com a força de uma vontade. Alguma coisa, mesmo que amorfa, insuportável, incompatível. Uma erupção que não se podia mais silenciosa. Aquele grito da vida toda, que não tem tamanho.

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Um pensamento que fugiu – passou pelos lugares e escapou, sempre querendo chegar. Seu campo nunca foi, senão, esse da movência, do dizer que não dá conta, do que às vezes parece não se alcançar. A sua ponta.

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Esse pensamento que fugia pulou na minha cama, depois quis a maca, roubou minha memória, entranhou minha retina – queria estar em todo lugar, apesar de fugir sempre. Escorria na parede, iluminava a atmosfera, tirava meu sono e, quando eu dormia, deitava em mim. Não me deixava e parecia não se cansar – uma ideia outra ideia ainda mais outra e outra e outra. Às vezes eu hesitava, tentava parar, mas ele me queria: ficava, persistia em se multiplicar até que eu até que ele me deslumbrasse novamente – e continuava… As horas eram objetos moldáveis. A noite virava dia que virava. O tempo à disposição desse um pensamento. Uma vida à disposição de outra – a vida toda, que não tem tamanho.

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Qual seria a substância adequada à matéria-pensamento? Como dar forma a seu corpo sem que fosse esmagada? Quais as células plausíveis? Quais as camadas necessárias para seu revestimento? Quais os fluidos cabíveis, e os descartáveis? Como tecer sutilezas em velocidades inestimáveis? Questionamentos suscitados por uma dissecação em reverso: em lugar de tirar, pôr. Chegamos, assim, numa suposta embriologia do pensamento – seu continente de sementes, todo o guardado do ovo que um dia será fissurado.

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Alguns substantivos são prenhes de adjetivo.

– Como foi lá?

– Um caos.

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– Um fenômeno.

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– Um encontro.

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Ata (Acta): acontecimento e escrita convivendo no espaço-tempo. O registro e o fato. A palavra e o ato. Algo atravessa vestígios no papel. Estância, instâncias, circunstâncias – todas em prol da mesma causa: uma forma de estado vivo que se quer.

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– Um subterfúgio.

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Se a memória é passível de registro, deságua como versões vivíveis a cada página. Um cotidiano escutado, (extra)ordinário, um diário.

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[Quanto há de memória nele – o que há de diário nela?]

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o íntimo (t)em degraus.

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[Enquanto tentava resistir, era arrastada]

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(um sussurro na escada)

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Que escala seria capaz de expressar o que a memória alcança para dizer do acontecido? Mas o texto é acontecimento. Então não importa. As forças já estão lá, que é aqui. Às vezes, é preciso somente dar o contorno palavreado – outras, basta derramar o entorno, deixá-lo revelar o vazado

…queria tocar o

contornar-se e entornar-se

dava no mesmo lugar, afinal

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Uma espécie de intimidade: texto e pensamento sendo, estando e existindo. Qual a distância im/possível? O íntimo que diz respeito ao mundo. Tão perto, tão perto, que está longe. Se há uma luta: que as torções de um não eliminem o outro, para que ambos sobrevivam – mas, ao final, texto e pensamento já não estarão lá, senão como o mesmo, que já é outro. (o filho que não tinha um pai e uma mãe; tinha os dois juntos, de uma vez no mesmo, que era também os três).

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Tessituras de um hermafroditismo variante – a voz dérmica de roupa esculpida.

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caderninhos de pele.

um plano, uma cola, um muro

um risco, um traço, um rasgo

uma máquina, um fio, um poro

um espirro, uma tampa, um tombo

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(um sussurro na escada)

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um porquê.

página dois

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Porque é pequeno dizer do que é imenso.

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Hoje quis entrar no túnel do trem e trilhar mais rápido que ele, correr sem parar, até que toda aquela euforia estivesse saciada.

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[Estava maior, estava o quanto podia]

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A euforia era anônima – e isso fazia toda diferença. Não tinha motivo, nem explicação; não era dotada de documento que lhe acusasse uma origem. Causava, assim, prazer ainda maior: uma liberdade clandestina que se dizia sem nome – estado bruto de um acontecimento. E era deslizante pairar sobre ela

… um pairar-se

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O pensamento sussurra:
uma fala que é escuta.

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No instante em que me grita, já está acontecendo – e não quis mais parar. Andou, andou – andei, não queria o estancar. Como cessar o combate que nem desconfiou começar? (Não sabia que duvidar era lança afiada. Que questionar arquitetava estratégias sutis de desmantelamento. Apenas iniciei por onde acreditava).

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Sábios são os grãos de limalha: a rota é desviada e há neles um vislumbre.

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A voz que fala, escuta: se emudece, ensurdece-se.

[“Nada a declarar” – pareceu um bom título]

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Um pensamento cego?

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Cor, cheiro, textura – um cão farejador susceptível a tudo.

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As imagens eram escutadas:
– Nada a declarar, diziam.

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As metáforas eram imagens do caminho. A elas, visibilizava para depois ouvir o que queriam dizer – mas: “Nada a declarar”. Por enquanto nada. Ainda assim, o pensamento falava escutava escrevia. Ouvia o nada-a-declarar das imagens porque era a si que escutava – sua própria fala. Uma ausculta.

 

página três

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Surgiu, tornando-se. Um corpo grávido que pariu e nasceu uma mãe. Não foi procurada; foi encontrada. |“eu não busco, eu acho” (PICASSO, 2011)|. Não foi tomada, tomou-se – tanto que não pode parar até que o prazer e a dor daquela vida toda fossem arrancados. Aqueles resíduos rastejantes de algo imensurável eram o filho. Ou talvez não devesse chamar assim, pois não tinha um pai e uma mãe; tinha os dois juntos, de uma vez no mesmo, que era também os três. A queda das paredes era quebra. Um corpo mais selvagem que o tempo, que se fazia tudo. Uma água-tempo, uma pele-tempo, um ovo-tempo. As metáforas necessárias para dizer o que não sabia, mas dizia.

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As contrações vinham com a mesma intensidade das contradições, a mesma intensidade da intensidade. A voracidade da vida toda, que não tem tamanho. Reverberava o tintilar nadante, a vibração sincronizada e estratégica de minusculamente parir a vida. Corpo contra corpo. E, do paradoxo, o vivo extraído sem ser esmagado – pulsante. A mãe que vai nascer-se, o bebê que vai tornar-se. Entre o nascer e o morrer, apenas um verbo, suficiente.

(Na casinha do dizer, um calar.)

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Agora havia somente um silêncio de silenciamentos ruminosos; o silenciar da selvageria que não se domou, nem foi domada – apenas tornou-se mais, e isso foi muito: como as bonecas russas: busca: e encontro com o vazio. |“Não lute contra o vazio. Não lute contra nada” (CLARK apud ROLNIK, 2011, p. 21)|“eu não busco, eu acho” (PICASSO, 2011)|.

Não lute contra nada…

Que alívio.

… um espraiar-me

Aquele confronto já monótono e entediante agora estava amordaçado, em nome do meu silêncio. Não era mais preciso falar baixo, não era mais preciso falar nada, nem era preciso mais falar. A gargalhada voltou estridente, incômoda, fulminante; havia fugido do campo estéril. E toda fala que necessitei, a fala da vida toda, que não tem tamanho, toda fala era grito.

quase abortado

mas vivo, afinal

tornando-se

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Quais os movimentos sutis de vida necessários para que um pensamento não morra? Interesse que me ocorre para delinear ameaças de extinção. Como um pensamento se mantém ventando no decorrer do tempo? Qual trajetória ele alinha? Qual a variação gráfica de vida traçada para a sobrevivência de um pensamento? E, por outro lado, quais as incursões de um pensamento na forma vivente?

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Não havia a intensidade do fim. Não havia fim. O tornar-se não cansava de viver (e, se cansasse, descansava). Entre um contorno e o entorno, tudo – toda a contorção necessária para desviar a linha e dissolver o tornear – aquele plasma que custava a incrustar, o amálgama dissolvido em qualquer coisa – um tudo às avessas e direto, absoluto sem ser.

Contornar-se e entornar-se

dava no mesmo lugar, afinal

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Esse parir decorre da paixão. Não uma, nem todas: a da vida toda. Dizê-la imensurável é redundância, pois não há tamanho na vida toda.

(“Uma existência do tamanho de você”, declarava plasmada,

a cada agigantamento achado na encruzilhada

|“eu não busco, eu acho” (PICASSO, 2011)|).

Esse parir discorre da paixão. Como concebo a vida e como ela se faz concebida em mim. O parto, desejo mais desejado – aliás: o desejo é já grávido de máximo.

 

página quatro

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– Qual a cor do grito?

– O laranja grita…

– Então como pode ser cura?

– A cura é um grito.

– Será?… A cura não é um sossego, um descanso, um alívio…?

– Não, é laranja-vulcão.

– Ah, como ela: que queria ser amarela, porém se chamava rosa…

– Deu naquele imiscuir.

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Uma pulsação tsunâmica. A matéria se rebelando, superfície contra superfície – camadas impossíveis de convivência. Erupção de substância-qualidade tomada de tudo e tornada de vez.

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Uma desmedida ovulante

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Era um jorrar curativo… Por isso o alívio em forma de espraiar-se: a substância em exercício máximo, segundo a lei do menor esforço. Era a imensidão que se deseja levantando, levando, lavando… A superfície que seca sem precisar escoar; a composição que não precisa de edição, já está lá.

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Sempre achei que todos os vídeos que haviam de existir

já estavam e já eram.
Como se faltasse apenas a gravação do mundo numa tela,

que não acabaria.
Um vídeo da vida toda, que não tem tamanho.

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Todas as possibilidades numa única tela,
que não era una.

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O onde da imagem.

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Entre o guardar e o mostrar,
seu aparecimento.

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[Por que o pensamento não é o corte preciso, a incisão perfeita, a ausência total de reparos? Por que o estilete da linguagem, aliás, não está tão afiado quanto ele?]

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Uma invasão consentida.

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Porque é pequeno dizer do que é imenso.

página cinco

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A palavra é o contorno da escrita; a escrita, contorno do pensamento. Pensamento é entorno e é corpo.

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Palavra-pele

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Se o texto edita o pensamento, como dizê-lo sem cortes? O que fazer para que as rupturas sejam frestas, e não quebras?

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Enquadrar recorta, então como alçar o plano-sequência infinito – uma vida gravada?

[nem tudo é passível de gravação?]

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Algo impossível de registro.

página seis

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Ao invés da crise aguda, o vídeo crônico.

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O recorte do cotidiano se esgueira na rotina sem cortes de um vídeo-crônica: o olho que passeia e registra sem pausas, reedita o tempo: resguardo da imagem.

[O quanto se demoraria em cada coisa,
se a vida fosse gravável?]

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Sempre achei que todos os vídeos que hão de existir

já estão e já são.
Como se faltasse apenas a gravação do mundo numa tela,

que não acabará.
Um vídeo da vida toda, que não tem tamanho.

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Todas as impossibilidades numa única tela,

que é múltipla.

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Enquanto detém,

revela.

 

página sete

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Madeira entregue à corrosão da escrita. Superfícies se experimentando em nome do que quer ficar. A certidão de um nascimento: liber (livro).

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As páginas eram camadas tecendo seiva
– o que tem que ser protegido.

“Por isso se escreve,
por isso se diz,
por isso se publica,
por isso se declara e declama:
para guardá-lo:
para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
por guardar-se o que se quer guardar.”

(CÍCERO, 1996)

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A árvore guardava o livro.

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Se havia necessidade de represa, de que serviria a desmemória a um diário? (Superfície que secou sem desaguar). Palavras desescritas, imagens desistidas, linhas em corrosão cotidiana… Aquele desmoronamento que a encosta tentava conter. [Se isso parece banal, o que haveria de descolar-se?].

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Em lugar do nascimento, o contrário, que não era a morte. Uma desexistência – aquela qualquer-coisa que não se fazia: amorfa, insuportável, incompatível.

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Uma memória de umidade equatorial. O livro abandonado contra a vontade de quem o deixou, alheios. Palavras sem lugar de entrega, como cartas de “destinatário não encontrado” – remetente também não… Letras se despedindo de ideias desabitadas.

[O que haveria de deslocar-se?]

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nem passado, nem presente, como um corpo mais selvagem que o tempo.

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Sobreviverá,
o que se apaga de quem escreveu?

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destexto

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Esse um pensamento.

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A força de uma vontade.

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Quais os movimentos sutis de vida necessários para que um pensamento não morra? Interesse que me ocorre para delinear ameaças de extinção. Como um pensamento se mantém ventando no decorrer do tempo? Qual trajetória ele alinha? Qual a variação gráfica de vida traçada para a sobrevivência de um pensamento? E, por outro lado, quais as incursões de um pensamento na forma vivente?

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Acervo deposto, calendário esvaziado, papéis desencadernados…

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Páginas perdidas

|“eu não busco, eu acho” (PICASSO, 2011)|

Bibliografia

BARROS, R. B.; PASSOS, E. Diário de bordo de uma viagem-intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCOSSIA, Liliana da. (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 172-200.

CÍCERO, A. Guardar. 1996. Poema. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/antoniocicero/>. Acesso em 11 mai. 2011.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr.; Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2011.

PICASSO, P. Eu não procuro, eu acho. In: Coleção Folha Grandes Mestres da Pintura. Folha Online. Disponível em: <http://mestres.folha.com.br/pintores/06/contexto_historico.html>. Acesso em 05 mai 2011.

ROLNIK, S. Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/terapeutica.pdf>. Acesso em 05 mai. 2011.

Recebido em: 21/06/2017

Aceito em: 21/07/2017

 


[1]Doutoranda do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). E-mail: maruziadultra@gmail.com

Páginas de um diário de corpo do pensamento: atmosfera de espanto no devir da escrita

 

 

RESUMO: Este ensaio flagra a constituição de um corpo do pensamento, através de seus movimentos de devir. É preciso tomar fôlego para sustentar tamanho espanto diante de tantas sensações, conceitos e estímulos, por isso uma escrita telegráfica permeia o texto de fragmentações. O fazer cotidiano de um diário relaciona-se não só com o âmbito confessional da intimidade, mas também com atividades como a náutica – através do diário de bordo –, e a científica, na figura do diário de campo. Na ciência, o texto diarístico despontou como uma necessidade de registrar os meandros das atividades de cientistas durante o processo de descolonização, no início do século XIX, já que eles demandavam um espaço em que pudessem dizer à vontade o que lhes ocorria (BARROS; PASSOS, 2009). Esse regime de escrita põe à prova os ditames tradicionais de publicação da experiência científica, ultrapassando a linguagem distanciada e imparcial da divulgação de dados investigativos. O ‘diário de corpo’ é uma nova categoria que aqui emerge, tal como existem os diários de viagem, clínico, de leitura, etc., e faz elidir certa ordem do discurso, mas não sua realidade (FOUCAULT, 2011), reverberando uma atmosfera que transborda o universo letivo, faz ressoar ideias e transmuta-as em páginas.

PALAVRAS-CHAVE: Corpo do pensamento. Devir. Escrita.


Pages of a diary of body of thought: atmosphere of astonishment in becoming-writing

 

 

ABSTRACT: This essay captures the constitution of a body of thought, through its movements of becoming. It is necessary to take a breath in order to sustain such astonishment in the face of so many sensations, concepts and stimuli. For this reason, a telegraphic writing permeates the text of fragmentations. The daily routine of writing a diary is related not only to the confessional ambit of intimacy but also to activities such as the seamanship – through the logbook –, and science activities, with the role played by the field diary. In science, the diary-oriented text emerged as a necessity to register the intricacies of the scientist’s activities during the process of decolonization in the beginning of the 19th century, as they demanded a space in which they could speak freely what came across to them (BARROS; PASSOS, 2009). Such regime of writing puts to test the traditional dictates of publishing scientific experience, overcoming the distanced and impartial language of the investigative data’s disclosure. The ‘diary of body’ is a new category that emerges here, as well as there are several diaries such as travel, clinical and reading diaries; and it elides a certain order of the discourse, but not its reality (FOUCAULT, 2011). Also, in reverberating an atmosphere that overflows the academic universe, it makes ideas resonate and transmutes them into pages.

KEYWORDS: Body of thought. Becoming. Writing.


DULTRA, Maruzia. Páginas de um diário de corpo do pensamento: atmosfera de espanto no devir da escrita. ClimaCom [online], Campinas, ano.4, n.9, Ago.  2017. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=7376