Por Janaína Quitério
Estudo conduzido por um grupo de pesquisadores da Noruega e do Reino Unido – e publicado em março na Nature – ajuda a mapear a vulnerabilidade de diferentes ecossistemas no mundo à variabilidade climática. Dos biomas estudados, dois deles são brasileiros – Amazônia e Caatinga – e integram a lista dos ecossistemas mais sensíveis à variação do clima.
Por meio de uma série de dados de satélites mensurando a cobertura vegetal e três variáveis climáticas que impulsionam a produtividade da vegetação entre fevereiro de 2000 e dezembro de 2013, os pesquisadores desenvolveram um novo modo de medir a vulnerabilidade com a criação do índice de sensibilidade da vegetação (the vegetation sensitivity index).
Nesta entrevista, a Dra. Mariana Vale, professora do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora da sub-rede Biodiversidade da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede CLIMA), analisa os avanços trazidos pelo estudo, bem como os principais desafios à biodiversidade desencadeados pelas mudanças climáticas no país.
ClimaCom – A Caatinga e a Amazônia figuram entre os ecossistemas mais sensíveis à variabilidade do clima, segundo estudo intitulado “Mapa da vulnerabilidade dos ecossistemas à variabilidade climática”. O que ele traz de novo às pesquisas sobre biodiversidade no Brasil?
Mariana Vale – Nos estudos sobre vulnerabilidade, seja a vulnerabilidade de espécies, de ecossistemas ou de populações humanas, um dos aspectos abordados é a exposição, ou seja, quanto um sistema – humano ou natural – estará exposto às mudanças climáticas. Uma das questões importantes neste estudo, em particular, é que ele se soma às informações que já tínhamos há algum tempo: a de que Amazônia e Caatinga são os biomas brasileiros mais expostos às mudanças climáticas. Outro aspecto dos estudos de vulnerabilidade é a sensibilidade às mudanças climáticas, informação que foi adicionada neste artigo recente da Nature. Isso quer dizer que a Amazônia e a Caatinga, além da grande exposição, são também bastante sensíveis às mudanças climáticas. Trata-se de dados independentes que corroboram as previsões preocupantes para esses dois biomas.
ClimaCom – É possível avaliar se os impactos na biodiversidade são os mesmos tanto para a Amazônia quanto para a Caatinga?
Mariana Vale – O bioma Amazônia é extremamente biodiverso em todos os grupos taxonômicos: vertebrados terrestres, invertebrados, plantas, com uma diversidade também aquática impressionante, além do endemismo muito alto. É também uma área bem estudada. De todos os biomas brasileiros, trata-se, sem dúvida, do bioma mais bem estudado em termos de mudanças climáticas, até mesmo porque a Amazônia tem sido importante para a mitigação dessas mudanças, por causa da grande redução de desmatamento e emissão de CO2, desde 2005.
A Caatinga, no entanto, é um bioma completamente diferente da Amazônia. É, sobretudo, um bioma negligenciado e muito pouco estudado e, inclusive em termos de conservação – há uma proporção muito pequena do território preservado em unidades de conservação, ainda menos em unidade de conservação de proteção integral. É claro que não se espera que a Caatinga tenha o mesmo nível de biodiversidade e endemismo vistos na Amazônia. Mas, por ser um bioma pouco estudado, é consenso, dentro da comunidade de biólogos brasileira, que se trata de um bioma com um endemismo oculto, ou seja, deve ter muito mais espécies na Caatinga, mas a gente não conhece, por ser pouco estudada. Então, é imprescindível, a partir dos novos dados trazidos por este estudo, reforçar a Caatinga no que diz respeito à sensibilidade às mudanças climáticas.
ClimaCom – Quando se fala em ameaça a um bioma, estão implícitos os perigos às espécies endêmicas?
Mariana Vale – Sim, é por isso que eu bato na tecla das espécies endêmicas. Como elas só ocorrem naquele bioma, qualquer ameaça a ele é praticamente uma relação de um para um com o que vai acontecer com suas espécies endêmicas. Já para uma espécie que ocorre na América do Sul toda, haverá populações em outras áreas se a Caatinga ou a Amazônia desaparecerem. A Caatinga tem um endemismo importante de répteis, que é um grupo menos estudado que o de aves, por exemplo, o que resulta em menor conhecimento da sua história natural e da sua distribuição. Há espécies endêmicas de répteis que sequer puderam ser investigadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) quanto ao seu status de conservação, a exemplo do calango-de-cauda-verde (Ameivula venetacaudus), encontrado apenas no Piauí, e do lagarto-preguiça-de-chifres (Stenocercus squarrosus), com distribuição apenas no Ceará e no Piauí, mas que não sabemos se estão ameaçados ou não. Os répteis são animais ecototérmicos e, por isso, muito sensíveis às mudanças climáticas. O aumento da temperatura pode forçar muitos répteis a permanecer por mais tempo em descanso durante as horas de maior calor do dia, reduzindo assim o tempo disponível para a busca de alimento. Então, dos resultados trazidos pelo estudo da Nature, são os da Caatinga que insisto em salientar. Além da importância do ponto de vista da biodiversidade, com fauna e flora específicas, trata-se do único bioma exclusivamente brasileiro, o que eleva a responsabilidade do Brasil na sua preservação.
ClimaCom – A vulnerabilidade climática da Caatinga também pode afetar o bem-estar das populações que habitam o semiárido?
Mariana Vale – As previsões nefastas para a Caatinga também são preocupantes do ponto de vista social. As previsões de mudança do clima, com um processo de desertificação da Caatinga capaz de transformar o semiárido em uma região árida mesmo, praticamente inviabilizam a agricultura na região, já bastante dificultada pelos episódios de seca recorrentes. A perda de cobertura vegetal da Caatinga está muito associada com a agropecuária – atividade que deixa de fazer sentido na região em cenário de mudanças climáticas. Existem alternativas muito mais interessantes, que, inclusive, têm sinergia com a questão das mudanças climáticas, como, por exemplo, a instalação de painéis solares no semiárido, em nível doméstico, o que traria renda às famílias – mas que precisaria ser estruturado legalmente –, advinda da possibilidade de gerar e vender energia à rede. A troca da agricultura pela produção de energia solar é uma alternativa capaz de reduzir muito a supressão da cobertura vegetal na região da Caatinga, que é hoje o vilão número um para as espécies que ocorrem ali. E isso também em âmbito global: a perda de habitat é o estressor mais importante da biodiversidade, e acreditamos que as mudanças climáticas também entrarão como o segundo mais importante estressor num futuro próximo.
ClimaCom – Em 2009, você apontou no artigo “Mudanças Climáticas: desafios e oportunidades para a conservação da biodiversidade brasileira” que eram praticamente inexistentes os estudos sobre os impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade no país. Essa realidade mudou?
Mariana Vale – Melhorou, mas ainda são estudos localizados. Em comparação com o número de estudos existentes em países temperados – e contando que a biodiversidade no Brasil é infinitamente maior –, nosso conhecimento é um arranhão na superfície. De qualquer forma, aumentou. Há, inclusive, pesquisadores dentro da nossa sub-rede de Biodiversidade que são expoentes nesse tipo de estudo, a exemplo do coordenador, o Dr. Rafael Loyola. O que não mudou, entretanto, são as abordagens dos estudos, que privilegiam os ecossistemas terrestres através de modelos de distribuição de espécies. A gente tem uma deficiência enorme nos estudos de funcionamento dos ecossistemas. Saindo do nível de espécies e indo para o nível de ecossistemas, seria possível entender como as mudanças climáticas iriam desestabilizar os ecossistemas brasileiros, por exemplo, os ecossistemas aquáticos. O Brasil tem uma costa gigantesca, precisamos de muitos estudos nesse sentido também para os corpos d’água em ambientes continentais, mas essa lacuna ainda não está sendo trabalhada.
ClimaCom – E por que é importante estudar os ecossistemas – a exemplo da abordagem do estudo publicado na Nature – nas pesquisas sobre mudanças climáticas?
Mariana Vale – Os ecossistemas têm processos importantes, como a ciclagem de nutrientes, produção de CO2, fotossíntese e produção de biomassa vegetal: tudo isso são processos que ocorrem no nível ecossistêmico. Como as mudanças climáticas vão afetar, por exemplo, a taxa de ciclagem de nutrientes, a taxa de emissão de CO2, ou a taxa de emissão de oxigênio nos ecossistemas brasileiros? É preciso entender tudo isso. Outro aspecto importante dos ecossistemas são as interações ecológicas e as cadeias tróficas – também há poucos estudos que procuram entender, sobretudo no Brasil, como as mudanças climáticas vão mudar as relações tróficas. A sub-rede de Biodiversidade tem alguns pesquisadores trabalhando com essas temáticas e, recentemente, temos nos esforçado para acolher e estimular pesquisadores que estejam em áreas onde há lacunas, como a abordagem ecossistêmica e ambientes aquáticos.