Daniela Feriani[1]

Milena tem 39 anos, mora no Rio de Janeiro com o marido Pedro e os gatos Oscar Wild e Erwin Schrodinger. Adora ler, tocar baixo, beber vinho e ver Doctor Who.
Milena é poeta, editora, pesquisadora, autista. É mestre em Literatura Brasileira pela UERJ e doutoranda em Literatura Comparada pela UFF, pesquisando poesia erótica escrita por mulheres como ferramenta de resistência antipatriarcal. É editora da revista Cassandra, especializada na literatura escrita por mulheres. Com seis livros publicados, foi semifinalista do Prêmio Jabuti com O cordeiro e os pecados dividindo o pão (Abio, 2023). O seu mais recente livro – o carro de apolo capotou no horizonte (Macabéa, 2025) – é finalista do Prêmio Loba na categoria de poesia.
Nesta entrevista, Milena conta como, a despeito das adversidades, das opiniões contrárias, das expectativas frustradas, insistiu em seu desejo de escrever, encontrando na escrita o seu propósito, a sua necessidade, a possibilidade não só de criar mas também de viver a seu modo, de abrir frestas nas paredes sufocantes dos escritórios gelados e sem cor, de traçar linhas de fuga desse sistema que nos exige correr e ser produtivo o tempo todo. A poesia, ao pausar os ponteiros do relógio, permitiu a ela respirar, ser, libertar-se.
Para Milena, a escrita, para qualquer pessoa, deve ser livre. A escrita é livre e também está entrelaçada ao corpo que escreve. “Nenhuma literatura pode fugir do sujeito que a redige”. Assim, reconhece o quanto o autismo influencia o seu modo de escrever, uma vez que ele também é inseparável do seu modo de ser, sentir, pensar, viver. “… ser autista está em todos os aspectos da minha vida, influencia de maneira substancial aquilo que sou no mundo, uma vez que é ele a base neuroquímica com que reajo aos estímulos do mundo.” Isso não significa, porém, que tudo se limita ao autismo ou que, mais ainda, o autismo seja um limitador, um denominador tanto para a escrita quanto para a vida.
Milena não toma o autismo de modo didático e explicativo, como se fosse uma lista de sintomas a serem classificados. “A experiência autista é também experiência humana e merece ser trabalhada literariamente como tal. Você não vai ver um autor neurotípico explicando que sua personagem neurotípica está chorando porque naquele momento de grande tristeza seu nível de serotonina estava baixo, então por que meu narrador tem que explicar que minha personagem está mordendo os braços por causa de uma sobrecarga de estímulos?”
Se a experiência de ser autista é um tema de escrita, ela não se sente obrigada a falar sobre isso se assim não quiser. E Milena fala de muitas outras coisas. Fala de escrita, mitologia, religião, feminino, erótico. Faz uma crítica ao modo como os corpos – especialmente de mulheres e pessoas com deficiência – são subjugados por padrões normativos, pretensamente hegemônicos e totalizantes, sufocados por vidas sem sentido, presas no modus operandi capitalista, por constrangimentos sociais e religiosos, cerceados por culpa e projeções inatingíveis. Escrever, para Milena, é também transgredir essas fronteiras, subverter as posições tidas como “corretas”, “normais”, convencionais. “Na minha obra, retiro o olhar do opressor do centro da narrativa e trago esses sujeitos marginalizados para o foco, dando a eles o controle que lhes foi tirado.” Uma defesa da liberdade, a liberdade de ser plenamente quem se é ou quem se deseja ser, com todos os rabiscos, lacunas, buracos, falhas, hesitações que nos compõem. A liberdade de ver que é na incompletude que existe a possibilidade de movimentar, criar, (re)existir.
ClimaCom – Daniela Feriani – Quando você soube do diagnóstico de autismo? Como foi?
Milena Martins Moura – Em 2015, eu trabalhava em uma editora grande de livros médicos. Era um péssimo trabalho, honestamente, mas sempre se pode tirar algo bom de uma situação ruim e aprendi muito sobre a área. Um dia, um texto sobre autismo em adultos, algo que à época não era muito comentado ainda, me caiu nas mãos para revisão. A coisa toda bateu, sabe? Acho que esse momento de realização é canônico na vida de um autista tardiamente diagnosticado. Tive uma imensa certeza ali mesmo. Mas o autodiagnóstico, que me bastou a priori, começou a me parecer insuficiente durante a pandemia. Meus sintomas pioraram e comecei a precisar de mais suporte e terapias. Voltei à busca pelo laudo, do qual havia desistido por diversos traumas relacionados ao capacitismo médico, algo que acredito também ser canônico na vida de pessoas como eu. Felizmente, dessa vez encontrei duas profissionais igualmente autistas, especializadas no autismo adulto, que me guiaram durante a avaliação e me tratam até hoje. Tenho muito a agradecer. E há alguns anos tenho finalmente conseguido (um pouco d)o suporte médico de que eu necessitava.
(leia a entrevista completa aqui)
[1] Antropóloga formada pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Atualmente, é bolsista de Jornalismo Científico (Mídia Ciência) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, com o projeto “A demência como outro mundo possível: ações de divulgação científica” [2024/05623-0]. Email: danielaferiani@yahoo.com.br Instagram: @soproseassombros
