O rio come, mas dá: notas etnográficas sobre a reciprocidade mais-que-humana no Vale do São Francisco | Luiz Felipe Rocha Benites


 

Luiz Felipe Rocha Benites [1]

 

Começo de prosa

A vida emaranhada nas paisagens fluviais do Vale do Alto-Médio São Francisco é, simultaneamente, um convite e um desafio ao pensamento sobre as relações para além do humano que tecem o futuro da habitabilidade do entorno daquele que já foi chamado o rio da integração nacional, em um contexto de mudanças climáticas. Faço aqui um exercício sucinto de pensar em “continuidade epistêmica” (Viveiros de Castro, 2002, p.115) com os quilombolas-ribeirinhos que habitam a Comunidade de Ribanceira, na porção norte-mineira do Velho Chico, sobre as dinâmicas das águas que envolvem o rio [2] para refletir especulativamente sobre os futuros da habitabilidade sociomaterial e multiespécie na região. Meus interlocutores vivem na margem esquerda do São Francisco, em um povoado situado 12 km ao sul da sede do município de São Romão, no norte de Minas Gerais. A experiência ribeirinha de conviver com períodos de estiagem cada vez mais longos e intensos – a forma como as mudanças climáticas são sentidas nesta porção do Cerrado – nos oferece, em sua perspectiva crítica e urgente, elementos da sabedoria barranqueira [3] que encontram nas obrigações mútuas e nas práticas de retribuição recíprocas determinadas chaves para a sustentação da vida, em meio ao cenário de degradação crescente da paisagem sanfranciscana.

A reciprocidade é uma noção extensamente trabalhada na antropologia desde, pelo menos, a publicação da obra “Ensaio sobre a Dádiva”, de Marcel Mauss (2003 [1925]). Meu intuito aqui não é revisar os usos e abusos de tal noção na prática antropológica [4], mas tão somente resgatá-la na condição de uma “reciprocidade não correspondida” [unrequited reciprocity], tal como formulado por Stuart Kirsch (2006), em suas implicações para um breve e preliminar exercício de pensar junto com os habitantes da Ribanceira as mudanças climáticas que tem afetado suas vidas. Segundo meus interlocutores, o rio não é meramente um componente inerte ou estático da paisagem sanfranciscana, mas um ente compósito e ativo em relações recíprocas mais-que-humanas, cujas trocas implicam obrigações mútuas de retribuição.

(Leia o ensaio completo em PDF)

 

Recebido em: 15/02/2025

Aceito em: 15/05/2025

 

[1] Professor de Antropologia do Departamento de História-Instituto Multidisciplinar e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: felipebenites74@ufrrj.br

[2] Os dados apresentados neste artigo são produto de uma pesquisa financiada pelo Edital Universal do CNPq.

[3] O termo barranqueiro é utilizado na região para se referir aos habitantes das margens do São Francisco, cujo envolvimento e saber sobre as dinâmicas que dizem respeito ao viver no entorno do rio são constituintes do seu modo de estar e habitar o mundo. Entretanto, este não é um termo utilizado, até o momento, de forma identitária para mobilização coletiva como outros que são agenciados com estes propósitos na região. Vide, por exemplo, o caso de vazanteiros, geraizeiros, etc. e outras etnicidades ecológicas que nomeiam populações tradicionais no norte e noroeste mineiros. O uso da palavra barranqueiro para denominar meus interlocutores é uma escolha pessoal para demarcar sua distintividade regional e não algum tipo de reivindicação identitária dos próprios.

[4] Além do escrito clássico de Mauss, um panorama variado dos debates que se seguiram pode ser levantado na leitura em língua portuguesa de Bourdieu (2001), Caillé (2002), Godelier (2001), Graeber (2013), Lanna (1995,2000), Levi-Strauss (2003), Sigaud (1999, 2007). Strathern (2006).

O rio come, mas dá: notas etnográficas sobre a reciprocidade mais-que-humana no Vale do São Francisco

 

RESUMO: Este artigo busca refletir sobre uma modalidade de relação entre humanos e “outros-que-humanos”, que classifico como recíproca, na composição das paisagens fluviais e terrestres do Vale do São Francisco, em meio aos efeitos das transformações climáticas sobre a região. Faço este exercício de pensamento em interlocução com os barranqueiros, nome regional dado aos habitantes do entorno do rio São Francisco. Meus interlocutores barranqueiros são quilombolas e ribeirinhos que habitam a Comunidade de Ribanceira, no município de São Romão, no norte de Minas Gerais. A partir da sabedoria produzida na sua experiência em atividades de pesca e agricultura, mas também nos rituais de folia, procuro extrair breves implicações das suas práticas de cuidados relativas aos mananciais de água para a sustentação da vida e da habitabilidade nas margens do rio São Francisco.

PALAVRAS-CHAVES: Reciprocidade. Água. Barranqueiros. Socialidade mais-que-humana. Vale do São Francisco.

 


The river eats, but gives: ethnographic notes on more-than-human reciprocity in the São Francisco Valley

 

ABSTRACT: This article seeks to reflect on a type of relation between humans and” other-than-humans”, which I understand as reciprocal relationships, in the composition of the terrestrial and river landscapes of the São Francisco Valley, amid the effects of climate change on the region. I conduct this imaginative exercise in dialogue with the barranqueiros, a regional name given to the inhabitants of the surroundings of the São Francisco River. My barranqueiro interlocutors are quilombolas and riverside dwellers who live in the Ribanceira Community, in the municipality of São Romão, in northern Minas Gerais. Based on the wisdom produced in their experience in fishing and farming activities, but also in the rituals of the folia, I seek to extract brief implications of their care practices related to water sources for the sustainability of life and habitability on the banks of the São Francisco River.

KEYWORDS: Reciprocity. Water. Barranqueiros. More-than-human sociality.

 


BENITES, Luiz Felipe Rocha. O rio come, mas dá: notas etnográficas sobre a reciprocidade mais-que-humana no Vale do São Francisco. ClimaCom – Manifesto das águas [online], Campinas, ano 12, n. 28., jun. 2025. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/o-rio-come-mas-da/