“A escrita é a minha língua nativa”: entrevista com Gustavo Rückert | Daniela Feriani

Gustavo é “autista, mas não só”, como ele mesmo diz. Também é poeta, pesquisador e professor. É através da escrita que Gustavo se sente à vontade para se expressar; as palavras são uma espécie de laboratório ou ateliê, em que ele experimenta as sensações do próprio autismo, como a ecolalia, a sinestesia, as repetições, o movimento, a sonoridade. Escreve, assim, com o seu autismo, e não apesar dele, numa relação indissociável entre vida e obra, palavra e corpo,
linguagem e mundo.

Daniela Feriani[1]

Gustavo nasceu em Porto Alegre e atualmente vive em Pelotas. É “autista, mas não só”, como ele mesmo diz. Também é pesquisador e professor na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Defende o acesso do ensino, das artes e da ciência a grupos politicamente minoritários, como pessoas imigrantes e refugiadas, oriundas de classes sociais menos favorecidas, pessoas com deficiência e neurodivergentes, com identidade de gênero ou orientação sexual não normativa ou pertencentes a grupos étnico-raciais que são alvos de violência. É doutor em literatura, autor de livros didáticos, livros acadêmicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Estreou na poesia em 2015, com o livro Poemas de plástico (Editora Literacidade) e, em 2021, publicou Serão as rosas vermelhas no escuro? (Editora Class), sua segunda obra poética.

Nesta entrevista, Gustavo conta, entre outras coisas, a sua relação com a escrita e com a experiência de ser autista: para ele, a poesia, ao possibilitar uma “liberdade anárquica” do uso da linguagem, tornou-se sua casa, “onde posso ser como sou.” É através da escrita que Gustavo se sente à vontade para se expressar; as palavras são uma espécie de laboratório ou ateliê, em que ele experimenta as sensações do próprio autismo, como a ecolalia, a sinestesia, as repetições, o movimento, a sonoridade. Escreve, assim, com o seu autismo, e não apesar dele, numa relação indissociável entre vida e obra, palavra e corpo, linguagem e mundo. “Tem coisas que só consigo compreender e processar se escrevo.” Além de escrever os próprios poemas, Gustavo abre espaço para que outros autistas lancem suas palavras ao mundo, contribuindo, assim, não só para a compreensão mais ampla e plural do autismo, mas, principalmente, para a entrada e o reconhecimento de novos poetas no cenário da literatura nacional.

Numa mistura entre ser autista e ser míope, Gustavo nos convida para ver de outro modo: ver a beleza dos borrões, misturar cores e contornos para ver outras coisas. “É como uma volta a um estágio inaugural onde somos um corpo reagindo a borrões, cores e formas que não reconhecemos”. Nessa abertura do ver, praticamos o exercício de reconhecer a poesia do cotidiano, sem perder a crítica a um mundo caótico e avesso às diferenças. Pois muitos dos  poemas de Gustavo tocam em questões urgentes, como a violência contra pobres, pretos, mulheres, indígenas. É na rasgadura do olhar, no ver estrábico, distorcido, errático, que somos capazes de ver mais, ver além, ver o diferente, ver o que está à margem, ver o invisível – ou o que se considera como tal.

ClimaCom – Daniela Feriani – Quando você soube do diagnóstico de autismo? Como foi?

Gustavo Rückert – Meu diagnóstico ocorreu na vida adulta, já com 31 anos. Eu sempre soube que possuía um funcionamento diferente de muitos colegas, familiares, amigos. E eles também sabiam, mas chamavam esse funcionamento de: “estátua”, “preguiça”, “mundo da lua”, “isolamento”, “falta de vontade”, “desinteresse”, “desleixo”, “apatia”, “confusão”… Então, desde criança cresci ouvindo coisas como “o Gustavo é muito inteligente, mas é preguiçoso” – ou “desajeitado”, ou “desastrado”, ou “estranho”, ou “confuso”. E, quando essas são as únicas imagens que temos de nós mesmos, acabamos internalizando e nos sentindo culpados. Ter um diagnóstico (e esse diagnóstico veio depois de muitos quadros de depressão e de ansiedade que não eram devidamente compreendidos) foi como renascer. Entender que a dupla excepcionalidade (autismo/altas habilidades) faz com que eu pense, sinta, mova, socialize de uma forma não convencional foi importante para buscar uma melhor qualidade de vida através da aceitação, respeito e cuidado comigo mesmo.

(leia a entrevista completa)

[1] Antropóloga formada pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Atualmente, é bolsista de Jornalismo Científico (Mídia Ciência) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, com o projeto “A demência como outro mundo possível: ações de divulgação científica” [2024/05623-0]. Email: danielaferiani@yahoo.com.br