Reanimando um mundo que ainda vive | Rafael Ribeiro Visconti
Rafael Ribeiro Visconti [1]
Chove há vários dias, escuto cada vez mais forte o deslizar do riacho perto de casa. Daqui, de cima da colina, avisto Nenê, seu filho Luís Fernando e o sobrinho-primo de sua esposa, Jonas, revezaram-se dia e noite para retirar o fuísco que se acumula nas grades das entradas dos tanques de trutas. A criação intensiva de truta arco-íris (Oncorhynchus mykiss) exige fluxo contínuo de água corrente, limpa e gelada, desviada dos riachos que descem das montanhas ao nosso redor por um sistema de diques de concreto. “Ingenheria minha”, conta-me Nenê orgulhoso, apontando para a própria cabeça. A água vai passando de tanque em tanque até ser devolvida de novo ao riacho poucas centenas de metros abaixo. O acúmulo do fuísco (folhas e galhos) nas grades bloqueia a entrada de água nos tanques e, se não for retirado a tempo, pode chegar a esvaziá-los, causando a morte de milhares de peixes. Por isso, em noites de chuva, é preciso estar atento. Ao longo da noite toda, de tantas em tantas horas alguém se aproxima com sua lanterna da área onde está a principal captação de água para os tanques, embrenha-se na pequena mata e abaixa-se para retirar com as mãos as folhas e galhos que descem com a enxurrada.
Mudei-me para as Terras Altas da Mantiqueira durante a pandemia do COVID-19, aproveitando que meu trabalho e estudos estavam acontecendo remotamente. Chegar na roça em meio à pandemia tem suas vantagens. Como as pessoas pararam de se cumprimentar dando as mãos, poupo-me do constrangimento de notarem minhas mãos finas de homem urbano, sem calos. Não vim apenas para fazer minha pesquisa de campo, estas montanhas são minha nova casa. E, para viver aqui, é preciso aprender a lidar com a paisagem, é preciso aprender a ser matero. E mateiros tem calos nas mãos. Frequento essa região no sul de Minas Gerais há quase quinze anos, atraído pelas trilhas que ligam os picos da Serra da Mantiqueira. Essa área montanhosa entre 1.200 a 2.800 metros acima do nível do mar abrange as cidades de Passa Quatro, Itanhandu, Pouso Alto, Itamonte, Aiuruoca e Baependi, listadas na ordem de quem vem subindo a serra de carro a partir do Vale do Paraíba, onde corre a rodovia Presidente Dutra (BR-116) que liga as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, com trechos de Mata Atlântica e campos de altitude e de onde nascem os principais rios que abastecem o sudeste do Brasil. Mas, nas minhas vindas, caminhava por alguns dias acampando pelas cristas das montanhas e voltava para São Paulo. Não conhecia a vida abaixo dos cumes e não imaginava que a produção de truta arco-íris, de forma intensiva e em larga escala, tinha se tornado a principal atividade econômica nas pequenas propriedades locais. A região é parte da Estrada Real, marcada pela exploração e escoamento do ouro no período da colonização portuguesa. Depois veio o ciclo do leite, e mais recentemente, os trutários. Cercados das florestas pontuadas de araucárias que se esticam acima do dossel, em grande parte devastadas para dar lugar ao pasto que sustenta número cada vez menor de gado de leite e de corte, os trutários marcam a paisagem com seus buracos retangulares em espelho d’água. Em cada propriedade, dez, quinze pequenos lagos abrigam milhares de trutas que, ao final de alguns meses, são abatidas e vendidas para intermediários que comercializam o filé em mercados regionais e nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.
(Leia o ensaio completo em PDF).
Recebido em: 30/03/2022
Aceito em: 30/04/2022
[1] Mestrando em Antropologia da Natureza no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). E-mail: rafaelribeirov@usp.br.
Reanimando um mundo que ainda vive
RESUMO: A partir de uma etnografia multiespécies nas Terras Altas da Mantiqueira sobre a poluição causada pela criação intensiva de truta arco-íris, pergunto: por que os criadores de truta poluem a água que tanto admiram? E, então, por que poluímos a Terra que tanto admiramos? Comparando os modos de conceber a natureza dos modernos com os dos povos ameríndios, proponho um caminho possível de reanimação do mundo através de uma arte neoanimista.
PALAVRAS-CHAVE: Etnografia multiespécies. Crise ecológica. Arte animista.
Reanimating a world that still lives
ABSTRACT: Based on a multispecies ethnography in the Highlands of Mantiqueira on pollution caused by intensive rainbow trout farming, I ask the question: why do trout breeders pollute the water they admire so much? And so, why do we pollute the Earth we dearly admire? Comparing the ways of conceiving nature of the moderns with those of the Amerindian people, I propose a possible way of reanimating the world through a neoanimist art.
KEYWORDS: CMultispecies ethnography. Ecological crisis. Animist art.
VISCONTI, Rafael Ribeiro. Reanimando um mundo que ainda vive. ClimaCom – Esse lugar, que não é meu? [online], Campinas, ano 9, n. 22., mai. 2022. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/reanimando/