A crise da água e os entraves dos comitês de bacias hidrográficas

Plano de gestão descentralizada, integrada e participativa prevista na Política Nacional de Recursos Hídricos chega à maioridade enfrentando desafios apontados ainda nos primeiros anos de sua criação

Por: Daniela Klebis

Quase vinte anos após a promulgação Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH – Lei Federal 9433/97), conhecida como Lei das Águas, em 1997, o colapso hídrico no Sudeste do Brasil, que se prolonga desde 2014, demonstra que a proposta ainda está muito aquém dos resultados almejados pela tríade descentralização-integração-participação pública. A lei determinou a água como um bem comum e previu um sistema de gestão configurado pela integração de políticas públicas dos órgãos federais, estaduais e municipais, pela descentralização das tomadas de decisões em relação às bacias hidrográficas e pela criação, em todo o país, de organismos deliberativos para participação popular – os chamados conselhos de recursos hídricos e comitês de bacias hidrográficas. Tais políticas depararam-se, desde sua aprovação, com obstáculos para sua implementação, como o fato de a água ser de domínio duplo (estadual e federal), o que não deixa claro quais os papeis dos diferentes níveis da federação na gestão da água. Além disso, a maioria dos estados enfrentaram – e ainda enfrentam – dificuldades técnicas para a implantação de sistemas relativos à outorga, às informações, ao monitoramento e à fiscalização dos recursos. O estabelecimento da cobrança sobre as águas é um terceiro desafio que poucos estados deram conta nos anos que seguiram à lei. Tais desafios colocam em xeque o papel dos comitês de bacias hidrográficas, uma das bases sobre a qual se realizaria o plano de descentralização integrada e participativa da gestão das águas.

Para Margaret Keck, cientista política da Universidade de Johns Hopkins, EUA, e especialista em políticas de recursos hídricos na América Latina, para serem efetivos, os comitês necessitam do apoio institucional. “As leis não se implementam sozinhas”, observou a pesquisadora em sua apresentação no fórum “Sustentabilidade Hídrica: perguntas, desafios e governança”, realizado na Unicamp, nos dias 17 e 18 de março. A cientista falou sobre as fraquezas da legislação sobre as águas e os entraves para a implementação de novas leis e planos. “A luta para fazer passar leis é menor que a luta para implementar. A criação de arranjos institucionais na política se trava em meio a interesses diversos”, comentou a pesquisadora.

 

 

"Invasão", de Lucia Quintiliano. Veja ensaio completo na seção de arte: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=1791

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Em artigo publicado em 2004, Keck já alertava que o modelo descentralizado e participativo de decisão adotado pelo Brasil para a gestão dos recursos hídricos teria um longo processo de adaptação. “Por estarem na base da estrutura decisória, os comitês somente serão efetivos se os órgãos gestores federais e estaduais reconhecerem a sua autoridade e implementarem as suas decisões”, aponta. O acesso dos comitês a recursos materiais e financeiros prescinde da mobilização de capital humano e social e, conforme discutiu a pesquisadora, tanto a democratização do processo decisório quanto a eficiência dessas decisões não se dá de forma espontânea. Eles demandam colaboração interna e apoio externo para os objetivos e as atividades dos comitês se concretizarem: “A falta de apoio institucional consistente poderá condenar os comitês à irrelevância”.

 

O problema de decidir e implementar

Os comitês de bacias hidrográficas foram parte de ações para institucionalizar a governança descentralizada e participativa da água no Brasil, na década de 1990. O estado de São Paulo foi pioneiro no país quando, em 1991, promulgou a Lei Paulista das Águas (lei 7663/1991), que instituiu a adoção da bacia hidrográfica como a unidade físico‑territorial de planejamento e gerenciamento, além de estabelecer ao Estado o dever de assegurar meios financeiros e institucionais de proteção contra eventos hidrológicos críticos. Nos seis anos que se seguiram, precedendo a Lei Federal, outros 14 estados implementaram leis sobre recursos hídricos, semelhantes à lei paulista, com criação de seus respectivos comitês, responsáveis, entre outras coisas, pela criação de um sistema de cobrança e aplicação dos respectivos recursos financeiros.

Dessa forma, o objetivo dos comitês é reunir governos, sociedade civil e entidades privadas para participar de decisões legais sobre a cobrança da água, distribuição, gestão e monitoramento dos recursos, desenvolvimento de planos de bacias, entre outros. O processo de tomada de decisão é coordenado e regulado por conselhos estaduais e federais. Um exemplo é o Comitê das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Comitê PCJ), criado a partir da lei paulista de 1991.

Ao fim da primeira década da implantação dessas políticas de gestão descentralizada dos recursos hídricos, os mecanismos de participação pública foram ampliados com as novas políticas, mas continuavam inexpressivos por conta da atuação limitada da população nesses espaços deliberativos, conforme argumentaram, na época, o sociólogo Pedro Jacobi e a economista Ana Paula Fracalanza. Os autores apontam ali a falta de informação e de uma definição mais clara da função dessa população como os principais entraves para a concretização dos objetivos de participação efetiva. “O aproveitamento é limitado porque a grande maioria da população não tem conhecimento sobre os mecanismos existentes, e como poderiam ser aproveitados para pressionar o governo”, comentam. Falta, portanto, o suporte institucional já mencionado por Keck, falha que, segundo os pesquisadores, vem de uma cultura governamental resistente a uma gestão participativa.

A falta de integração de diferentes referenciais para os processos decisórios dos comitês também foi problematizada. A prevalência de decisões pautadas nos argumentos dos chamados peritos denuncia a assimetria da relevância dos atores durante as negociações. “Faz-se necessária uma redefinição do papel de poder em que se situam os peritos em relação aos leigos e não só um questionamento das relações de poder econômico ou uma abertura de maior espaço para a sociedade civil no processo decisório”, argumentam.

De acordo com o economista Sérgio Razera, diretor-presidente da Fundação Agência das Bacias PCJ – órgão responsável por auxiliar a implementação dos planos do comitê, bem como acompanhar o desenvolvimento de planos e ações -, além da dificuldade de representatividade e articulação política, o Comitê e a Agência das Bacias lidam também com o desafio de fazer os municípios comprometerem-se a usar os recursos repassados para realizar esses planos. “O comitê tem poder de decidir, mas tem muito pouco poder de implementar”, critica.

 

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Nova crise, novos planejamentos

As bacias do PCJ atendem 5,3 milhões de pessoas em 76 municípios, entre São Paulo e Minas Gerais. É uma região considerada de baixa disponibilidade relativa de água, e mesmo com suporte da Cantareira, a média de água disponível por habitante é muito mais baixa que a média nacional. Isso já deveria ser suficiente para que um plano de contingência se tornasse imperativo. Mas, na realidade, tal plano não existe. O que existe é uma situação de superexploração da bacia, perdas de mais de 45% de água tratada na distribuição, agravada pelo crescimento populacional urbano e uma dificuldade do governo de aceitar que existe o problema e tratá-lo com transparência. “Como será possível o crescimento da oferta senão por reformas estruturais profundas?”, questiona a Promotora de Justiça do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (GAEMA), da região de Piracicaba, Alexandra Facciolli Martins, que também participou do Fórum sobre sustentabilidade hídrica na Unicamp, em março.

A promotora ressaltou a necessidade de cobrança e pressão sobre o governo para a implementação de políticas de longo prazo, que pensem em planos de contingência em situações de crise, ao invés de usar a imprevisibilidade da estiagem como justificativa do colapso. “A gestão dos recursos hídricos não compactua com o improviso”, defende.

O organismo que teria o papel de propor e implementar tais reformas é o comitê das bacias hidrográficas. Mas, conforme observa a promotora, o Comitê (PCJ) teve assento em minoria nas deliberações políticas e, por isso, sem possibilidade de fazer articulações diretas. “As discussões, dessa forma, ficaram a um patamar muito aquém da necessidade”, conclui.

Nesta semana, a gestão dos recursos hídricos no Brasil volta à pauta durante a 7ª edição do Fórum Mundial da Água, entre os dias 12 e 17 de abril, na Coreia do Sul, para debater a segurança hídrica no planeta. A cada três anos, desde 1997, o evento organizado pelo Conselho Mundial da Água reúne representantes de todo o mundo para discutir desafios e possibilidades de integração entre setores privados, governos, ONGs, indústria organizações intergovernamentais e cientistas para a administração regional e global da água. A participação brasileira ganha destaque neste ano, uma vez que próxima edição, de 2018, será sediada em Brasília.