Por: Daniela Klebis
Em meio à crise hídrica instalada no Brasil – com São Paulo como a região mais afetada até o momento – a relação entre poder público e população se transforma, e se transforma também a maneira como tanto um quanto outro se relacionam com os recursos hídricos, cada vez mais escassos. De um lado, é preciso mais transparência e fiscalização do uso da água por parte de todas as instâncias do governo; por outro, é necessária a relação de corresponsabilidade por parte da população, de forma a transformar sua relação com a água em curto, médio e longo prazos, tornando-a mais sustentável. Para o sociólogo Pedro Jacobi, esse compartilhamento de responsabilidades é uma forma viável e possível de lidar com a crise: a irresponsabilidade na governança pode tê-la acelerado, mas as consequências pervadem todas as instâncias da sociedade. Por isso, é inevitável que a relação com os recursos hídricos, em todas as instâncias, se modifique para tornar possível a continuidade da vida em meio à crise – que será crônica.
Pedro Roberto Jacobi é sociólogo, professor do Programa de Pós Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do grupo de Estudos de Meio Ambiente e Sociedade do Instituto de Estudos Avançados da USP. Pesquisa a governança da água e faz parte da rede Brasil-EUA sobre governança ambiental. A escassez da água se torna progressivamente mais visível, mas, Jacobi observa que “isto não precisa ser entendido como algo que tem prazo para acabar, mas que será daqui em diante inevitável pensar que vivemos numa região com escassez hídrica”.
“D’água-palavra – ao percurso imagético de narrativas orais em Salvaterra-PA”, de Camila Aranha, mestranda na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). As imagens, feitas no município de Salvaterra, no Pará, são resultado de uma oficina de mesmo nome. Confira o ensaio completo na seção de arte.
ClimaCom – A crise hídrica é o resultado de vários fatores, que vão das mudanças climáticas à gestão irresponsável das empresas de saneamento, passando por um problema crônico de governança e responsabilidade política e social. Com tantas variáveis em jogo, conseguiremos sair dessa crise?
Pedro Jacobi – Só posso responder que espero que sim, de uma forma ou outra. Terá de haver uma saída. Para mim, o fundamental é redução do consumo e muita fiscalização pelo poder público e cooperação pela sociedade. Trata-se de uma mudança necessária no comportamento dos usuários. Mas será muito importante controlar a forma de o governo ter transparência e prestar contas aos cidadãos. São muitas variáveis: o clima não pode ser governado. E o poder público tem de assumir governança responsável e dar todas as informações aos cidadãos, pois sua credibilidade está muito fragilizada.
ClimaCom – Em uma entrevista à revista do Instituto Humanitas Unisinos, em setembro passado, o senhor falou da necessidade de se incluir Comunicação Social e diálogo com a sociedade como variáveis na gestão e planejamento dos recursos hídricos. Como o senhor pensa ser possível reinventar essas relações de modo a conquistarmos uma verdadeira transformação na participação social nas políticas públicas e compartilhamento de responsabilidades?
Pedro Jacobi – Existe um grande desafio de promover processos que fortaleçam lógicas mais cooperativas e enfatizar práticas de aprendizagem social. Entendo que transparência sobre os fatos da gestão será um elemento importante para que os cidadãos aumentem sua confiança e isto promova corresponsabilização. Isto demanda muita ação comunicativa – diálogo aberto é preciso, esclarecendo os usuários sobre a situação existente, sem escamotear a informação. É importante ter campanhas e processos de dialogicidade permanentes nas escolas, informação nas mídias enfatizando a importância de fazer um consumo responsável e sustentável, mesmo nos períodos em que a situação é normal. Trata-se de avançar rumo a uma cultura na qual se promovam iniciativas midiáticas que estimulem a corresponsabilização. Mas é muito importante que a sociedade civil esteja cada vez mais mobilizada para questionar o governo e que participe e se organize de maneira e ser um ator relevante no processo. É importante também reivindicar seu assento no conselho da Sabesp e outras empresas municipais além de instâncias participativas como CBHs (Comitês de Bacias Hidrográficas), o que não tem sido o caso.
ClimaCom – Adaptação parece ter entrado na pauta do governo, primeiramente com o projeto Brasil 2040 da SAE e, mais recentemente, em São Paulo, em meio à urgência da crise de abastecimento de água. Fala-se em adaptação enquanto resposta a situações novas e/ou adversas, mas estaríamos nos adaptando a quê – especialmente no caso da água? Somos capazes de, para além de adaptar, transformar efetivamente nossas relações políticas, humanas e ambientais?
Pedro Jacobi – Eu pessoalmente acredito que os governos em nível nacional, estadual e municipal têm de promover ações mitigadoras como redução de emissões face às mudanças climáticas. No caso da água, as ações devem estar associadas a investimentos de um lado, mas sem dúvida a redução do consumo é fundamental. As medidas adaptativas são essenciais. Esta crise tem de representar mudanças no comportamento do governo e dos usuários.
ClimaCom – Por que falhamos tanto em aceitar que a crise hídrica era iminente? Estudos de 2009 já haviam indicado essa crise em 2015 e outros também; temos relatórios da própria ANA, de 2011. E nada foi feito. Agora, com o Comitê de Crise, possivelmente as ações que entrarão em prática serão medidas de emergência, a altíssimos custos e eficácia de duração provavelmente muito curta. Como o senhor acredita que devemos olhar para o futuro pós crise?
Pedro Jacobi – Fundamentalmente pela irresponsabilidade do governo estadual, que escamoteou o problema por interesse eleitoral. O futuro tem de incluir palavras como ‘transparência’ e ‘prestação de contas’ para garantir governança e governabilidade, em um processo continuado de aprendizagem social cooperativa para fortalecer a corresponsabilização. E dar estímulos a ações pautadas pelo caráter preventivo. A água é um bem escasso na região metropolitana de São Paulo! Isto precisa ser entendido não como algo que tem prazo para acabar, mas que será daqui em diante inevitável pensar que vivemos numa região com escassez hídrica, e que mesmo sendo feitos investimentos que levam anos para se concretizar, o mais importante é a sociedade ter presente a necessidade do uso responsável e sustentável. E cabe ao governo promover campanhas permanentes de corresponsabilização. A palavra-chave é prevenção – o que se contrapõe às ações no presente momento, essencialmente curativas, pois o dano foi feito.
ClimaCom – Em meio a tanto desencanto e pessimismo, que a própria crise gera, temos visto também ações positivas de conscientização, de empresas e comunidades, de uma maior preocupação com o uso responsável da água. O conceito de pegada hídrica (cálculo do volume total de água usada na produção de um bem de consumo) é um exemplo. O senhor acha que essas alternativas podem vir a ser um caminho para novas políticas e relações mais corresponsáveis?
Pedro Jacobi – Todas as alternativas têm de ser consideradas. A Pegada Hídrica é sem dúvida um instrumento muito importante para promover um uso cada vez mais responsável e sustentável da água, não só pelas empresas mas pelos governos. Ainda é ínfima a adoção pelas empresas, porque apresenta uma informação que nem sempre agrada aos gestores. Resultados que revelam consumo excessivo pelos processos produtivos demandam respostas que podem implicar em mudanças operacionais, tecnológicas e isto representa potenciais incrementos nos investimentos das empresas. Mas também é muito importante avaliar a Pegada Hídrica de bacias, e isto pode representar e fortalecer usos e costumes dos cidadãos.
ClimaCom – Que novas relações nossas com a água podem surgir dessa crise?
Pedro Jacobi – Relações que tenham como premissa transparência da ação governamental e que isto estimule confiança e motivação dos cidadãos para assumir de forma continuada e responsável novas práticas de consumo num contexto sempre ameaçado pela escassez hídrica, cada vez mais visível, e pelo reconhecimento dos impactos das mudanças climáticas. É também muito importante que as entidades da sociedade civil se mantenham proativas, assim como as instituições universitárias, que o tema esteja de forma permanente debatido nos meios e que os governos assumam de forma permanente ações preventivas.