Uma criança em devir | Cristian Poletti Mossi e Aline Nunes
Título | Uma criança em devir
O que seria de um mundo orientado pelo desejo de uma criança? Que outras versões de mundo e de histórias teríamos, se nos tivéssemos deixado guiar por seu olhar ávido e pela vontade genuína – e devotada – de investimento de energia somente no momento presente? Dedicar-se, entregar-se na integralidade de seu corpo vibrátil: sentidos despertos, dor, cansaço, vigor, medo, coragem, raiva, esperança e expectativa. Escrevemos (e visualizamos as imagens que compõem este ensaio) a partir do lugar de adultos, sim, mas, em algum outro grau de abertura, não seria possível também dizer que fomos capazes de acessar uma criança e sentir com ela? Como se estivéssemos numa partilha de vontades, de intensidades e de ações para compor algo, dizendo sim ao movimento da vida em seus fluxos de perdas e ganhos, distantes de um olhar moral, comungando da força de criação que nos captura e nos une na persistência. Persistência para não se sabe exatamente o quê. E tudo bem. Porque de mãos dadas com uma criança o fundamental é estar em movimento, ainda que de leve, sem necessariamente saber aonde deve-se chegar. Jojo Rabbit, personagem principal do filme com o qual arranjamos esta série, nos mostra a complexidade que é experimentar o mundo de um ponto de vista infante, dissipando já muito cedo ideias romantizadas sobre a vida durante a infância: crianças desprovidas de mal-estar, de maldade, de percepção de (alguma) realidade. Vemos nessa construção narrativa o quanto a infância está também impregnada de contradições, de dissensos e de fissuras, justamente por onde algo outro, da ordem do acontecimento, sempre pode brotar. É pela fissura das certezas de Jojo que as vozes impositivas de seu melhor amigo (imaginário) – um conhecido ditador nazista – vão se esvaziando, na medida em que a escuta afetiva e participante de sua mãe, militante de uma frente menor de resistência ao regime da época, vai ganhando um contorno mais preciso. Do mesmo modo, é pelos desmoronamentos daquele mundo que o amor, enquanto sensação no próprio corpo-criança, cresce, desviando seus objetivos endurecidos e, assim, apresentando outras perspectivas, tão diferentes, de vida. Construímos a série, portanto, sobrepondo frames do filme enquanto tensionamento de camadas de sensações que, em meio à película, passamos a acessar com Jojo em sua saga… Aos poucos, um corpo-criança obrigado a matar e a queimar livros, um corpo-criança que se recusa a dançar, um corpo-criança antissemita e totalmente tomado por uma pulsão de morte, vai entrando, ele próprio, em devir-criança. Torna-se vivo, fluído, orgânico e amoroso, repleto de cicatrizes e marcas – de perdas, sobretudo. Tal devir não o possibilita encontrar-se com o que seria uma suposta ‘essência infantil’, mas conectar-se com seu desejo mais íntimo o qual antes não era possível re-conhecer, tamanha era sua expropriação pelos desígnios obscuros e estratificados de uma guerra.
Jojo Rabbit. Direção: Taika Waititi. Produção: Taika Waititi. Roteiro: Taika Waititi. [S.l.]: País: Estados Unidos; Alemanha. Ano: 2019. Suporte digital (108 min), son., color.
Ficha técnica
Artista | Cristian Poletti Mossi e Aline Nunes
Materialidades: montagens digitais realizadas com sobreposição de frames selecionados do filme Jojo Rabbit (EUA; GER/Taika Waititi, 2019).
País | Brasil
Ano |2019-2020
POLETTI, Cristian Mossi; NUNES, Aline. Uma criança em devir. ClimaCom – Devir Criança [Online], Campinas, ano 7, n. 18, Set. 2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/uma-crianca-em-devir/
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SEÇÃO ARTE |DEVIR CRIANÇA | Ano 7, n. 18, 2020
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