Habitantes da margem da casa | Laís de Paula Pereira
Título | Habitantes da margem da casa
Portas. Brechas. Frestas. Fissuras. Paredes. Janelas. Histórias. Fotografias. Mapas de intensidade. Desvios. Cartografia. Diário. Poesias. Bordas. Margens. Brincadeiras. Água. Vento. Animais. Sol. Plantas. Fogo. Lama. Árvores. Estátuas. Canetas. Chinelos. Panos. Quartos. Sala. Banheiro. Cozinha. Sementes. Brinquedos. Varanda. Pedras. Sons. Silêncios. Luminárias. Devires. Cheiros. Horta. Toques. Vibrações. Copos. Corpos. Pedaços. Acontecimentos.
Comecei a quarentena quebrando um vaso de planta. Não era um vaso pequeno. A planta que morava nele era uma “pata de elefante”. Essa planta cresce, mas cresce muito, tem a sua base grande feito uma pata de elefante. Acontece que o vaso que era sua morada já não estava dando conta da sua expansão, de toda a vida que ela tinha pela frente. Fico imaginando, inclusive, que já estivesse rachado. Até o vaso estava cansado dessa forma que haviam lhe dado. A planta? Ganhou novos contornos. O vaso? Virou cacos que, em algum momento, podem vir a compor novos encaixes. Ou não. Um pequeno acontecimento que reflete o meu dia-a-dia: essas paredes já não me cabem; essa roupagem já não me serve. Toda essa vida em devir que me habita quer o afora, margear, cantar e contar as boas novas nas imediações da casa, encontrar outras vidas e compor novos caminhos. Assim, vou fazendo de mim cacos, passíveis de comporem com outros cacos, gerando mundos novos. Sobreviventes em plena crise sanitária e isolamento social, vamos fazendo-nos cacos em meio ao caos. E é ali, onde rompemos a velha ordem das coisas, que criamos, construímos, inventamos e introduzimos algo novo num mundo velho. Nas rotinas já não tão rotineiras, importam, de fato, os acontecimentos, as mudanças de perspectiva. As coisas já não são as mesmas de outrora. Não podemos considerar o vaso como um vaso. De sobreviventes tornamo-nos vivos e, somente enquanto estamos vivos, que os encontros acontecem com outros corpos (não só humanos) e com corpos que se tornam outros.
– Mãe, pra que você nasceu? Eu nasci para viver!
(Lila, 3 anos e 11 meses, 26/05/2020)
Na tentativa de fazer valer um desejo em pleno funcionamento, essa série de
fotografias se apresenta como possibilidade de rompimento com o pragmatismo da percepção, o qual acaba por privilegiar as realidades sólidas e manifestas. Ofereço, portanto, um olhar sensível de mãe-pesquisadora contaminada, em pleno isolamento social, pelo devir-criança da minha filha de quase 4 anos. Neste “entre” – modos, mundos, tempos, espaços – acompanho algumas existências inventadas no trajeto de sua instauração. Não tenho a intenção, com isso, de contar uma história e criar sentidos, tampouco submeter essas imagens à linguagem, à uma narrativa. O desejo é de atingir as coisas como processo, como acontecimento e, sob certo ponto de vista, fazer-me existir, em meio a uma pandemia, fazendo existir outros, ampliando outras existências e vendo “alma” ali onde outros nada viam ou sentiam.
Ficha técnica
Artista | Laís de Paula Pereira
País | Brasil
Ano | 2020
PEREIRA, Laís de Paula. Habitantes da margem da casa. ClimaCom – Devir Criança [Online], Campinas, ano 7, n. 18, Set. 2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/habitantes-da-margem-da-casa/
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SEÇÃO ARTE |DEVIR CRIANÇA | Ano 7, n. 18, 2020
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