DECASIA (2001): Passagem à ruína e as mortes regeneradoras do cinema
Rodrigo Faustini dos Santos[1]
O CORTEJO FÚNEBRE FINISSECULAR
“Talvez também falemos, um dia, das ruínas de um filme”
Mikel Dufrenne[2]
No campo das artes, nas últimas décadas, o emprego de imagens fotográficas deterioradas, seja naturalmente ou a partir de manipulações físicas e processos químicos realizados por artistas, reincide em conjunto com a persistência da prática analógica em contrapeso à hegemonia digital no ambiente midiático. Principalmente quando observamos o cinema experimental contemporâneo, que se insere em circuitos alternativos de exibição que não a sala de cinema comercial (hoje digital), a imagem analógica, que persiste enquanto materialidade, ressurge muitas vezes empoeirada, embolorada, degradada e corroída, sob o índice de sua existência material no tempo – uma “poética da obsolescência” como coloca Thomas Elsaesser (2018), rodeia o cinema de artista no século presente, quando o museu e a galeria passam a ser seus espaços privilegiados de subsistência, por sinalizar maior abertura à prática.
Após mais de 100 anos de sua invenção e intensa produção cultural, teórica e crítica, o cinema analógico conheceu, com a virada do século XX para o XXI, uma virada em seu próprio arquivo, que muda de suporte do analógico para o digital, o que vem a repercutir no entendimento da história (e historicidade) dessa arte. Para citar um exemplo próximo a nós, investindo na associação do filme em película e os discursos de memória e nostalgia que vieram a povoar o imaginário do meio, a artista brasileira Rosangela Rennó (cuja obra é sempre atenta ao arquivo e sua matéria), levou tal “poética da obsolescência” ao paroxismo em sua obra Vera Cruz (2000), feita para a exposição Brasil +500 (2000) da Fundação Bienal de São Paulo (Figura 1). Nela, a artista realiza um “documentário impossível” do descobrimento do Brasil, em que 500 anos de existência da película teriam apagado todas as suas imagens (VIDEOBRASIL, 2019) – a obra, um filme transferido para vídeo, apresenta apenas riscos, poeira e outros detritos, acompanhados por legendas que conduzem o espectador em meio à ruína. Jogando com o novo (a descoberta) e o velho (com o qual se conhece) a obra nos aponta que, tão importante quanto é o meio e sua materialidade, seria também o imaginário associado a eles (e por eles instigado), questão a qual retornaremos ao longo deste texto.
Figura 1 – Trecho de Vera Cruz, de Rosângela Rennó
Se, anteriormente, o recurso à materialidade era um campo de ação privilegiado nas vanguardas modernas em suas buscas pela essência de cada meio artístico, discurso formalizado pela crítica alinhada à Clement Greenberg (1961) em sua defesa da especificidade dos meios na arte moderna, é necessário apontar que os trabalhos mais recentes que buscamos pensar aqui, como o de Rennó, revisitam essas zonas de interesse, porém reelaboram essa reflexividade ao “pensar no filme em si enquanto entidade orgânica, algo que pode envelhecer, degradar e morrer – ideias intimamente entrelaçadas com a morte do filme no novo milênio, e assuntos concomitantes da preservação e arquivo do filme, que tem ganhado mais atenção na última década.” (HALTER, 2012, p. 90), como coloca o crítico e curador Ed Halter.
A diferença notada na reincidência contemporânea dessa materialidade do meio, assim, seria a de sua inserção numa retórica que, por um lado, investe morbidamente na obsolescência do analógico e na perda (quase total) do corpo fotoquímico do filme como uma forma de elaborar uma ideia de morte do cinema, apresentando imagens “destruídas”, próximas de sua obliteração. Por outro, insistem na persistência e idiossincrasia desse frágil material fotoquímico nos termos da virada digital: aqui “uma nova ênfase na materialidade da película negocia a mudança tecnológica do analógico ao digital e age como um contrapeso à tecnologia digital, ou para ser mais precisa, para a utopia digital.” (WALDEN, 2014 p. 96) escreve Olga Moskatova, observando a tendência desse cinema à impureza visual e técnica. Ao flertarem com as artes visuais em seu tratamento plástico e conceitual da matéria, essas obras de imagens degradadas possuem em seu horizonte menos a obliteração das imagens do cinema do que uma reativação de sua materialidade heterogênea, criativa e positiva no horizonte da cultura, revisitando potenciais expressivos da imagem fotográfica emulsiva em película.
Nesse recorte, uma poética atenta a sobrevivência (enquanto trajetória material) das imagens e às transformações dos meios técnicos e suas linguagens, como componentes de um ecossistema midiático, aproximam esses interesses contemporâneos observados no cinema experimental com discussões acerca da ecologia das mídias e novas perspectivas materialistas acerca da criação artística que instigam atualmente leituras sobre a mídia-arte enquanto sistemas técnicos, sociais, e estesiológicos em comunicação (em chave guattariana, conferir SAUVAGNARGUES, 2016; FULLER, 2005; PARIKKA, 2010). A arruinação de imagens, como a abordamos, descreve uma situação de tomada de consciência “ecológica” do cinema, uma via encontrada por artistas para refletir sobre o próprio meio e suas mudanças, em obras que projetam-se para uma realidade material e social do uso das imagens e sua inscrição na cultura pela via da técnica.
Um tipo de cinema particular que, ao invés de produzir novas imagens, “recicla” imagens do passado, seguindo uma tradição do filme de vanguarda conhecido como found footage, demonstra-se de especial contribuição para a “poética de obsolescência” que procuramos explorar aqui, já esboçada em referência ao trabalho de Rennó. Trabalhando sobre os cacos do cinema e da história, ocupando-se das condições de presença – e desaparição – do objeto fílmico na paisagem contemporânea das mídias, ao resgatar imagens e técnicas do passado do cinema e colocá-los em circulação novamente, através de montagens que re-interpretam seu conteúdo, os filmes de arquivo trazem consigo uma perspectiva arqueológica e ecológica da imagem, ao ponderar a historicidade de sua forma e conteúdo, o meio e as mensagens. Componentes que, num ambiente de transformações tecno-culturais intensificadas, passam a se confundir.
Como nos resume Jeffrey Skoller: “Enquanto o filme se aproximou de seu primeiro século de existência, os primeiros filmes começam a assemelhar-se à fósseis ou ruínas que, como as arcádias de Benjamin […] maturaram-se para serem lidas alegoricamente [pelos artistas]” (SKOLLER, 2002, p. 6). Em maior profundidade, é possível estruturar essas discussões, tal como apresentadas, através do filme/performance multimídia Decasia (2001), de Bill Morrison, toda composta por imagens de película de nitrato originárias das primeiras décadas do século XX, num gesto de resgate de mentalidade finissecular, “neodecadentista”, resultado de seu flerte melancólico com as ruínas. Se o artista de found footage no cinema, segundo Skoller, já trabalha como um catador de fragmentos, no caso do material de Decasia, a ruína se multiplica hiperbolicamente, pois suas imagens se encontram todas mofadas, riscadas, empoeiradas, corroídas, manchadas e, fotograma a fotograma, incompletas, pois o cineasta se apoiou principalmente no material de descarte de instituições de arquivo e preservação fílmicos para compor a obra. Essas imagens apresenta-nos uma origem do cinema e do último século, ao mesmo tempo em que são sombras, dissonâncias e ruídos dessa história corrente, pois, como seu mau-estado de preservação atesta, são imagens deixadas ao relento por essa mesma história e seu arquivo institucional.
Assim, nessa obra que tornou-se uma importante referência do filme de arquivo contemporâneo, organizada enquanto a película como um todo conhecia sua obsolescência com a chegada do digital, Morrison voltou seu olhar para um dos formatos obsoletos e mais primários do cinema, que é a película de nitrato (extinta na indústria em meados de 1950), conhecida por sua alta flamabilidade e instabilidade material, quando armazenada em condições não ideais. São justamente as imagens mais afetadas e transformadas por esses intempéries da vida material que compõem todo o material visual de Decasia, obra apelidada pelo colaborador do cineasta, o compositor da trilha sonora Michael Gordon, como uma “environmental symphony”[3], posicionando o trabalho como uma reflexão do meio fílmico enquanto (eco)sistema.
Visto que Morrison partiu desses arquivos praticamente impossíveis de projetar, seu filme é também um tipo de “documentário impossível”, tal como Vera Cruz: foi apenas refotografando os fotogramas para um novo suporte que tornou-se possível assistir suas imagens. Essas imagens analógicas deterioradas encontram-se em diferentes graus de visibilidade do que os fotogramas completamente obliterados de Rosângela Rennó, pois neles muitas vezes vemos formas, mas que, postas em movimento, são instáveis, se desmancham, são engolidas por mofos, em dinâmica ruidosa e informe, mas que ainda possuem traços de seus originais envelhecidos.
Apresentado inicialmente como performance multimídia do grupo novaiorquino Ridge Theater, em palcos que incluíam a orquestra de Gordon tocando ao vivo, telas semi-transparentes com o filme de Morrison (projetado em película) e projeções de slides de imagens também em decomposição por Laurie Olinder, Decasia criava literalmente um ambiente de degradação, num sistema audiovisual imersivo de imagens em “rede”. As imagens que compõe a montagem, em 35mm, de Decasia encontram-se todas consumidas pelo tempo, materialmente instáveis e manchadas, vivendo num interstício simbiótico entre suas formas fotográficas originais e a entropia orgânica de sua emulsão mal conservada mas que ainda resiste, lentamente escoando pela base inorgânica, antes de nitrato e agora de acetato, do filme.
Copiadas e projetadas como em câmera lenta, essas imagens em putrefação são expostas no filme de Morrison como carregadas de uma turbulência bela e instigante, entre a melancolia e nostalgia do esvaecimento das formas e a intensidade de sua presença que nos interpela com acúmulos, intermitências, dissoluções e reagrupamentos da matéria. A projeção desses fotogramas embolorados funciona então como uma ampliação desses “microasmbientes” que passaram a povoar os 35mm de largura do filme, consumindo a emulsão e seu composto orgânico e inorgânico (Figura 2 e Figura 3), reinscrevendo as figuras dos filmes originais num embate com a natureza de sua própria matéria. Como escreve Jürgen Reble, cineasta experimental conhecido por expor seus filmes a intempéries atmosféricos e mesmo a inumação e exumação, “fungacidade = unicidade” (REBLE, 1997) – a putrefação carrega virtualmente uma unicidade, pensada aqui numa raiz alquímica, de convergência de opostos, referindo-se a dupla hélice entre o virtual e o material que se encontram na materialidade do filme, qualidades operantes na ruína que também podemos encontrar nas dinâmicas das imagens putrefatas montadas de Morrison.
Figuras 2 e 3 – “microambientes”, formados em cima de filmagens de microscópio, em Decasia
Em Decasia, a obsolescência ainda recente da película, na virada do século, permite e instiga um reencontro transformado com o meio, que, enquanto detrito e descarte cultural, torna-se representativo de eras passadas e costumes esquecidos – persistindo como ruína no presente, encarna tanto memória quanto esquecimento, aqui retomado enquanto “achado arqueológico” que sinaliza idealismos passados, de uma era de Ouro do cinema, e enquanto resíduo a ser reciclado, passível de renovação, transmutando-se em novas imagens e bricolagens entre o velho e o novo. Esse artigo, portanto, instigado pelas imagens em ruína de Decasia, ocupa-se de avaliar criticamente esse recurso à materialidade ligado aos discursos de morte do cinema que rondam a obra, num contexto no qual o digital surge como substituto de uma cultura analógica, relegando-a ao museu e até mesmo ao esquecimento, num conflito de territorializações que se duplica, ecologicamente, na superfície mesma das imagens, entre passagens do arquivo e seus suportes. Buscamos, assim, por uma imagem mais complexa da questão da obsolescência e da figura da ruína, materialidades do arquivo fílmico frequentemente enfatizadas no contemporâneo.
Decasia e a (im)permanência virtual das imagens
Em Decasia, a degradação, a corrosão e a mácula das imagens – enfim, a impureza e a efemeridade – são resgatadas enquanto elementos de potencial remediação em relação ao espectro de virtualização e de descontinuidade que pairam sobre a paisagem midiática digitalizada. A obra opera, assim, um curioso resgate do elogio decadentista às ruínas, que também demarcou a cultura finissecular na passagem do século XIX para o XX. O crítico André Habib, apreciador de Decasia, indo mais a fundo numa busca pelo interesse passado às ruínas, resgata uma frase de Diderot que nos ajuda a pensar no cinema na passagem analógico-digital como um cinema que se encontra na temporalidade paradoxal e mestiça da ruína, entre passado e futuro: “Marcho entre duas eternidades. De qualquer parte para qual direciono meu olhar, os objetos ao meu redor anunciam um fim e me conformam àquilo que está esperando por mim” (DIDEROT apud HABIB, p. 13, 2011)[4].
Se falamos das imagens de Decasia enquanto imagens arruinadas, resgatadas do mofo mas não restauradas dele, encarnando seu próprio relento, é porque identificamos nesse acúmulo de imagens em deterioração um movimento de contemplação da ação do tempo sob sua matéria, que ao mesmo tempo que enfatiza sua deterioração, também habilita, ao longo de sua trajetória rumo à obliteração, uma acepção dessas imagens como monumentos de uma memória que se esvai mas se dá a ver nesse processo, elegias à própria cultura analógica:
Sua melancolia [de Decasia], para recapitular uma idéia que Starobinski desenvolve acerca das ruínas, reside no fato de que elas tornam-se [os] monumentos da significação perdida […] Essas imagens recuperam um valor pleno da imagem, que aparece como fragmento em ruínas porque elas encontram-se desprovidas de sua função inicial, sua narrativa ou espetáculo, e mesmo de sua utilidade para o historiador do cinema (HABIB, 2008a, p. 332).
Abordando, em nossa chave, o aspecto mental e social dessa ecologia da imagem, Dominique Païni, em sua produção escrita durante sua diretoria da cinemateca francesa no anos 1990, denota o que chamou de um imaginário de ruínas que emergia na curadoria museológica no campo da preservação fílmica, através do emergente interesse na exibição de filmes incompletos – mutilados e deteriorados pelo tempo – que ganhava espaço em congressos de arquivo e curadorias de cinematecas, autorizando a apreciação do fragmento mesmo em sua incompletude: “A comemoração do centenário do cinema tem sem dúvida favorecido essa nova atitude em relação ao mutilado e ao incompleto. Do incompleto ao inacabado ou, para colocar de outra maneira, do memorável ao rascunho, essa passagem poética é pontuada pela legitimidade.” (PAÏNI, 1997, p. 16), idéias que relacionamos diretamente com o tipo de contemplação evocado por Morrison em Decasia.
Se o fragmento resgatado compartilhava com a ruína a fratura física e a perda de função, esse novo investimento poético atribuído ao fragmento cinematográfico compartilharia da “sensibilidade romântica” atribuída à ruína no período moderno, na qual “a mutilação era percebida como completude.” (PAINI, 1997 p. 17) – aqui, portanto, teríamos uma sensibilidade cinéfila, que traria de volta o olhar (e o movimento) para esses fragmentos órfãos da história do meio, num ato de restauração cultural, de reatribuição de função à essas películas respeitando sua fragilidade, diferente da restauração clássica que intervêm nos rolos para torná-los “próprios”, prática legitimada no contexto museológico das cinematecas.
Ao invés de indicar uma unidade perdida, o fragmento aponta aqui para a multiplicidade de camadas entre o material e o virtual, entre presente e passado, sujeito e objeto, fonte para outros devires da imagem. Decasia, feito a partir de coleções e recuperações de fragmentos (por vezes transferidos para outros suportes, como vídeo), numa colagem de ruínas anônimas, possivelmente esquecidas a décadas até sua incorporação nessa nova obra, floresce em grande parte do tipo de percepção em relação ao arquivo discutido aqui – não só fomentada pela crítica, academia e classe artística, pois também encontrava reflexos por toda a cultura nessa passagem entre séculos.
De fato, a história é posta em intensos atritos e contrações nesse trabalho, com Morrison refletindo sobre as primeiras décadas do século XX através de seu material de arquivo, anos que coincidem com as primeiras décadas do cinema, e que se encontram assim em desintegração no material frágil que é a imagem fotoquímica em película de nitrato. Antiga novidade tecnológica, ápice da indústria, são imagens que atravessaram essa temporalidade até o contemporâneo, como sombra analógica obsoleta de uma sociedade agora informatizada, tal como o próprio cinema. Conflação e conflagração de tempos e estéticas: “Decadentismo ou pós-modernismo?” (MUCCI, 1990, p. 12) – essas misturas e confusões entre tempos emergem assim enquanto comentários “extemporâneos” que artistas como Morrison articulam com a cultura de seu tempo ao reativar seus arquivos mofados, turvos e efêmeros (Figuras 4 e 5).
Figuras 4 e 5 – fotogramas acidentados de figura anônima observando ruínas, em Decasia
Nesse sentido, a obra engrossa uma certa estética finissecular que coincide a passagem do século XX para o XXI com a passagem analógico-digital (como já notada por Ed Halter, citado anteriormente) e que, curiosamente, remete a uma forma de ruinofilia paralela ao decadentismo finissecular que marcou a passagem do XIX para o XX, demarcada também pelo surgimento de novas máquinas midiáticas. Nos estudos literários, afinal, já é comum notar como “em tempos crepusculares, a decadência pode tornar-se fonte de inspiração, motivo de fascinação, tema para artistas” (MUCCI, 1990, p. 21), ao qual poderíamos acrescentar esse cinema de ruínas, que engrossa o caldo de “um sentimento apocalíptico inerente à nossa visão de mundo finimilenar” (MUCCI, 1990, p. 12), ponto ao qual retornaremos adiante.
Se morbidez e paranóia rondam debates que observam o impacto das novas tecnologias sobre as práticas do passado, um dos expoentes mais radicais desse discurso “neo-decadentista” ficou a cargo de um arquivista de cinema, Paolo Cherchei Usai, que com o livro The Death of Cinema: History, Cultural Memory and the digital dark age (2001), lançado próximo à estréia de Decasia, interpreta o início do novo século como condenado a uma “era das trevas” do digital, devido ao desconhecimento de como lidar com o arquivamento desse novo suporte. Tal dado, unido a conscientização de perdas significativas nos arquivos das décadas anteriores, é equiparado às lacunas históricas que caracterizam o período medieval, para o autor. Sua problemática central é a memória do cinema analógico no novo século, que vê sua relação com o arquivo de cinema profundamente transformada na sombra do digital e sua tendência para discursos utópicos em relação ao progresso das tecnologias e da “perfeição” das imagens, que privilegiam a transmissão e esquecem, aos poucos, de seu arquivo.
Pensar na preservação das imagens, para Usai, é tomar consciência de sua vida enquanto arquivo e como corpo, com o qual dividimos uma mortalidade inevitável. A busca por uma imagem imune à degradação se aproximaria, inclusive, de um ideal contrário à própria vida do cinema enquanto instituição cultural: “Uma Era de Ouro da imagem em movimento – isso é, sua existência num estado de estabilidade atemporal – seria possível apenas se filmes nunca tivessem sido exibidos em projetores, ou se suas matrizes nunca tivessem sido utilizadas para duplicação” (USAI, 2001, p. 71).
A promessa de oferecer imagens cristalinas de um passado, como uma negação da agência do tempo sob os objetos do mundo, que Usai associa a um projeto clássico de preservação audiovisual, negaria o próprio tempo e portanto iria na contramão da história, na ilusão de poder resgatar as imagens da catástrofe (o tom de seu livro aponta para tal morbidez). Para Usai, a escrita da história do cinema seria a própria obliteração da imagem pelo tempo, a afirmação do tempo sobre a matéria do mundo: “O objetivo final da história do cinema é o relato de seu próprio desaparecimento ou sua transformação em outra entidade” (USAI, 2001, p. 89). O cinema e a preservação audiovisual existem em seu pensamento, portanto, enquanto inscritos na irreversível catástrofe da passagem temporal, expondo um sentimento catastrófico de fin-de-siècle minado por Morrison em Decasia e dramatizado na própria superfície das imagens.
A ruína e o cinema: ansiedades materializadas
Nossa discussão das imagens do cinema enquanto ruínas, via Decasia, depara-se, então, com aquilo que André Habib, seguindo a sugestão de Païni, também identifica como um “imaginário de ruínas” no cinema (mais melancólica, em seus termos), do qual a recente poética de obsolescência e disfunção do cinema analógico seria uma de suas encarnações contemporâneas, convidando o olhar ao fragmento, à imagem degradada, (inter)rompida:
Quando um objeto perde sua integridade física, sua forma e coordenadas que o permitem atualizar ou efetuar certo número de ações ou tarefas, dizemos que está em ruínas. Mas é ao decair em ruína que esse objeto aparece-nos enquanto imagem, visto que seu uso cessou de substituí-lo. […] Isto poderia nos levar a dizer, com Eduardo Cadava e Jean-Louis Déotte[5], que a ruína é a imagem pura de um objeto, e que a imagem em ruína é apenas imagem de si: sua perda de vocação a faz digna de uma apreciação estética (ao nosso senso moderno de arte) (HABIB, 2006, p. 123).
Da materialidade dessas imagens em estado de arruinação à consciência material de uma fragmentação do cinema que se abriga nos espaços do museu e da galeria, renegociando suas fronteiras com as outras artes, a ruína persiste portanto como figura para se pensar o cinema contemporâneo ao discutirmos o cinema analógico, em decadência enquanto presença cultural dominante da imagem em movimento.
Habib encontra a materialização desse “imaginário cinematográfico de ruínas” tanto nos filmes de Peter Delput como os de Gustav Deutsch, Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi e Bill Morrison, delimitando uma tendência de produção que “negocia um espaço entre as práticas de vanguarda e a exploração arquivística” (HABIB, 2006. p.128), cujas obras apropriam-se de materiais fílmicos degradados em sua composição, compartilhando também de uma sensibilidade melancólica, afetuosa, quanto ao esvaecimento dessa matéria. Operando releituras não-lineares do tempo, enfatizando assim não só a memória que restou do passado, mas insistindo justamente nas ausências, perdas e obscurecimentos da história, encontramos ecos dessa retórica na insistência de Decasia por temas visuais circulares, que refletem ciclos de destruição/criação, nos quais permanência e memória encontram seus avessos, tal como no plano de dervixe que rodopia em transe, cena que se repete por três instantes no filme, reaparecendo em cópias cada vez mais deterioradas, relegando a imagem à entropia do movimento, também em círculos no próprio eixo, dos rolos cinematográficos em projeção.
Voltando a pensar o filme enquanto elegia, tal potencial revival de temas decadentistas e góticos que rondavam a última década do século XX, não passaram despercebidos na crítica cultural, tal como Bradford McGrath e Patrick Morrow notam na coletânea Gothic: Transmutations of Horror in Late-Twentieth- Century Art, publicada em 1997:
[…] nos anos da década de 1890, por exemplo, um espírito de decadência e degradação – com uma desnorteante fragmentação dos conceitos políticos, filosóficos e artísticos – no que Arnold Schoenberg chamou de uma “dança fúnebre dos princípios” invadiu o clima cultural […] É a ameaça do apocalipse que compõe o espetáculo do sublime, é a ameaça da auto-extinção e auto-dissolução que força o sujeito a retrair-se o enquadramento confortável do belo. Numa dança macabra final e extasiante, estamos num lento waltz rumo ao final do milênio (GRUNENBERG, 1997, p. 170).
Decasia, em sua mistura de peça sinfônica, obra fílmica e performance, memória do início do século (enquanto ruína modernista) na passagem para o novo milênio, parece encarnar justamente tal dança macabra rumo ao novo, carregando os detritos decadentes do velho numa experiência de contemplação da ruína das imagens seculares em dissolução, como numa canção de cisne para um formato imagético particular.
Há, sem dúvida, algo de um imaginário gótico na colagem de ruínas de Decasia, que prossegue nos trabalhos seguintes de Morrison, podendo ser notada mesmo em seus títulos, Light is calling (2004) e Spark of Being (2010), este último tendo como base adaptações do texto de Frankstein de Mary Shelley – todas obras também centradas no nitrato em estágios progressivos de deterioração. Como comentam McGrath e Morrow “esse tema de regressão e desagregação – de colapso em formas menos complexas de organização – é quase invariavelmente presente no gótico em alguma maneira. E assim seu segundo grande tema é a degradação, depois da transgressão” (GRUNENBERG, 1997, p. 154).
Tal como no decadentismo que caracterizou a cultura no período finissecular do século XIX e seu resgate de um imaginário gótico, a ruína ressurgia na passagem para o século XX como figura alegórica em voga para debater sensibilidades em transformação. Como nota o geógrafo Tim Edensor, cujas reflexões sobre ruínas industriais também nos inspiram a pensar na máquina obsoleta do cinema analógico, o tema da ruína retorna nesse período de passagens, numa “estética gótica contemporânea”:
Representações do abandono ecoam através de formas góticas populares [atualmente] em ressurgência, que expõem a ideia de que estruturas do mundo moderno estão ruindo […] Engatilhadas por medos finisseculares do apocalipse e a crença de que uma nova era medieval paira sobre nós, sentimentos talvez alimentados por memórias folclóricas e crueldades perpetuadas em épocas anteriores, as ruínas industriais questionam de forma similar o persistente mito do progresso. Essa decadência iminente pode ser imaginada através da ruína quando é lida como um sinal macabro do que está porvir, um espaço simbólico de escuridão que prefigura uma degeneração conseguinte. (EDENSOR, 2005, p. 14).
Atento a um devir auto-destrutivo do cinema, Decasia reinterpreta a alegoria da ruína enquanto forma crítica para compor uma reflexão acerca da efemeridade dos arquivos cinematográficos e o sentido de história (e historiografia) que comunicam. Não mais meramente um tema para teóricos e críticos de cinema discutirem um espírito de decadência finissecular (como Laura Mulvey, 2006, e D. N. Rodowick, 2010, o fizeram), o “estado de degradação” como prescreve o subtítulo da obra[6], coloca a estética à prova.
O caráter efêmero dessas figuras que se desintegram e se esvaem quadro a quadro faz com que a espectatorialidade de cada plano seja a de um olhar que corre contra o tempo do filme, que contempla as texturas da imagem mas ainda luta para discernir as figuras ali soterradas antes que sumam por completo, um olhar preso entre a beleza opressiva da mutação dos fotogramas e o fascínio acerca da possível preciosidade dos momentos em processo de obliteração – a opção de Morrison por ralentar todo o filme, num processo de step printing que duplica e ora triplica cada fotograma, dialoga formalmente com essa potência de sublime informe das imagens escolhidas, ao dinamizar o tempo de sua recepção.
Nessa nova temporalidade de sua existência na tela, imposta por Morrison, as figuras humanas do filme parecem ter o tempo necessário para reagir à sua própria dissolução, em momentos de profunda reflexividade do filme sobre si. Os fragmentos de Decasia existem assim, num jogo dramático entre a tragédia da mutilação dessas imagens e o jogo lúdico entre as figuras, numa peculiar dança com sua própria gangrena (Figuras 6 e 7). As imagens esfaceladas e arruinadas de Decasia não deixam, assim, de refletir o tom pessimista que retorna com o período finissecular, o que também ressoa, numa retórica mais abrangente, pela análise de André Habib, quando diz:
Esses filmes em ruína apresentam uma relação paradoxal ao tempo, que é talvez, no fundo, aquela do espectador [contemporâneo] frente às imagens do passado. Esses palimpsestos de tempos expostos, presentes e passados, não fariam, no final das contas, nada além de exacerbar essa melancolia do cinéfilo, uma melancolia das ruínas, própria ao cinema, nascida do tempo, de seu arquivo e de sua anacrônica atualidade? (HABIB, 2011, p. 83).
Figuras 6 e 7 -Trecho de Decasia – rindo face à morte
Aos poucos, e em seu acúmulo pelo filme, a ruína, enquanto figura alegórica, abre-se enquanto figura de passagem e transmutação para o novo, que Decasia põe em ação: “[qualidade da ruína] que, ao invés da elegia chorosa, suscita de nós uma adesão à ordem do mundo” (HABIB, p.14, 2011). Logo, se de início nos parece como trágica e mórbida, a partir de sua conotação decadentista, essa mesma ruína traz consigo um reconhecimento do efêmero enquanto possível positividade, modelo crítico relevante para se construir futuros alternativos (e não apenas a ele submeter-se), resistências aos apagamentos que vieram a definir noções da história moderna e de seu arquivo (EDENSOR, 2005; BUCI-GLUCKSMANN, 2005). Enquanto matéria, a entropia é irreversível ao filme, que, ao mesmo tempo, enquanto cinema, é inevitavelmente energia, movimento e, logo, impressão de vida.
Assistir Decasia, hoje disponível enquanto filme digital monocanal, é, portanto, se encontrar em meio a esse atrito insólito entre os efeitos de presença e de sentido das imagens que se esvaem sob o olhar – principalmente se lembrarmos da obra enquanto performance (em sua encarnação multimídia em 2001), evento caracterizado pela efemeridade. Porém, mais do que atribuir irrevogavelmente uma pulsão de morte à essas imagens, Morrison investe na ambiguidade compreendida por sua fragmentação: como algumas imagens do filme apontam, seja uma cena de batismo, uma cena de um parto ou mesmo uma imagem de um carrossel, dividido quase pela metade em um canto dissolvido e outro estável, esses arquivos também podem ganhar forma e “vitalidade” a partir de sua decomposição – o fato da imagem de parto, que aparece na metade do filme, estar semelhante a um negativo ou pseudo-solarização (Figura 8), seja por aberração corrosiva ou por uma escolha de Morrison, aponta para esse avesso e ambiguidade da degradação. Do bolor das latas escuras, essas imagens reencontram a luz do dia (e do projetor) sob novas formas e estruturas, com a descontinuidade informe entre cada fotograma gerando um movimento artificial que todavia remete ao mais intenso fervilhar do orgânico.
Figura 8 – parto “negativado” pela deterioração
O espetáculo da morte do cinema e o trauma transformador da forma
Mesmo sem aludir diretamente às tecnologias contemporâneas, Decasia confrontou o espectador da (emergente) era digital com uma experiência que reside na encruzilhada entre formas contemporâneas e históricas de espectatorialidade da imagem em movimento: obsoleto mas “expandido”, seu retorno à performance ao vivo de música para um filme mudo é justaposto a uma experiência multimídia, na qual o filme é projetado em 3 telas (a partir de três projetores e três rolos de película com o mesmo material), enquanto 15 aparelhos de slides fotográficos projetavam imagens no espaço que abrigava a performance[7].
Essa coleção de imagens em decomposição encontra, nesses fragmentos e lapsos da história, o potencial virtual para remedeio e reformulação dos traumas históricos (disfunções industriais, intempéries de acervo) que geraram essas perdas. O cinema, herdando uma pulsão pelo arquivo das sociedades modernas que o conceberam, surge como um objeto catalisador para essas relações, principalmente em certas tendências no cinema de found footage, como notamos, quando o artista lida diretamente com a imagem no estado em que é encontrada, atento a sua existência enquanto arquivo, objeto de memória.
Como Erika Balsom analisa, no contexto atual de sua dispersão pela galeria, pela instalação e a performance, o cinema “encontra-se em ruínas e, assim, é investido com a curiosidade e o apreço que a ruína produz” (BALSOM, 2013, p. 101). Tomando o cinema como objeto histórico e obsoleto, os artistas que hoje insistem na prática analógica por vezes se aproximam do trabalho do museólogo e do arquivista – ou, como colocamos, a persistência desse produção torna-se uma questão de uma postura de “arqueologia” e “ecologia” das mídias, que busca dar conta das transformações do meio.
Já Laura Marks resume: “materialidade é mortalidade” (MARKS, 2002, p. XI), e sua aceitação. Mortalidade evocada não só pelo ruído que o filme decomposto traz em sua superfície, mas também pela maneira como ambos (o ruído e a morte) costumam ser elementos reprimidos, excluídos da experiência, sendo recuperados, portanto, num momento em que ansiedades em relação à desaparição do cinema analógico povoam um imaginário tecnológico da passagem analógico-digital, como exposto no filme. Porém, assim como para Habib, Marks observa como essa melancolia da matéria também pode possuir um intuito de remediação, performática, live: “Apreciar a materialidade de nossas mídias nos distancia de uma compreensão simbólica [de seu conteúdo] e rumo a uma existência física compartilhada” (MARKS, 2002, p. XII).
Para além da relação que Marks faz entre materialidade e mortalidade, Huyssen insere a ruína nessa dinâmica em chave crítica, pois “No corpo da ruína o passado está tanto presente em seus resíduos quanto não está mais acessível, fazendo da ruína um gatilho potente para a nostalgia” (HUYSSEN, 2006, p. 7) – descrição alegórica que sugere certo paralelo entre uma imagem cinematográfica degradada e seu aspecto fugidio, dissipativo enquanto projeção. O espectador da performance de Decasia não pode senão ver tempo e matéria desfiarem-se (e desafiarem-se); cenas de tecidos, inclusive, povoam diversos trechos do filme. Tal poética de reciclagem, prospectada por Morrison, que escava seus arquivos, torna-se também uma forma de aceitação das trocas, perdas e transformações inerentes a essa vida virtual, inorgânica das imagens, que remete ao sentimento melancólico que vimos em Decasia mas também encontra certa relação de alteridade com essa temporalidade cíclica, estranha a vida humana:
[…] se compartilhar de um passado que nunca ocorreu não possui nada a ver com uma dissolução [da imagem], não poder mais compartilhar de um passado traz algo de inaceitável e inscreve a perda irremediavelmente como modo de ser no mundo, ao qual o cinema propõe uma provável exibição espetacular [parade], uma partilha quase virtual a partir de imagens de um além que está a disposição dos cineastas (BEAUVAIS, 1998, p. 16).
– assim reflete Yann Beauvais acerca do found footage, fazendo referência à complexa temporalidade, ruinosa, compartilhada pelo cinema enquanto espetáculo. De uma ideia da ruína enquanto lacuna e fragmento, passamos aqui para o movimento de transformação, erosão e hibridismo (entre natureza, técnica e cultura) que o estado do objeto em ruína também comporta, compartilhado com esse cinema de mestiçagem e transmutação de imagens, entre o orgânico e o inorgânico, real e virtual.
Da gangrena às formas em renovação, esse estado de deterioração das imagens convida um imaginário de transmutação. Como coloca Giuliana Bruno, outra leitora dessas imagens:
Nessa arqueologia da superfície há uma mutação atmosférica, pois tais deteriorações químicas são uma alquimia de elementos residuais [weathered elements]. Dessa forma, o próprio meio da película torna-se exposto enquanto uma alquimia de estados de matéria em transformação, que são manifestados na projeção (BRUNO, 2014, p.125).
Adicionando a essas reflexões, Christa Blümlinger, por sua vez, ao incorrer seu estudo do found footage para a era digital dos arquivos, também demonstra interesse por analogias atmosféricas quando pensa nessa deriva de imagens, rumo a um cinema “pós-imagético”, no qual, resgatando o pensamento de Christine Buci-Glucksmann, nesses encontros e “transferências de arte, traz-se à superfície as potências geológicas, tectônicas e arqueológicas da imagem” (BUCI-GLUCKSMAN apud BLÜMLINGER, 2013, p. 359), novamente remetendo a ideias de transmutação, heterogeneidade e atrito entre imagens, suportes e dispositivos – ao que podemos acrescentar a perspectiva orgânica de putrefação e re-emergência da matéria.
Da discussão cultural da obsolescência providenciada por uma “ecologia das mídias”, a reflexão repousa aqui sobre o orgânico/inorgânico das imagens e os modos de sensibilidade que sua presença ativa, numa imersão na matéria que é profundamente demarcada por seus modos de geração e degradação de estruturas (algo esboçado de início por nossa referência à obra Vera Cruz). Importante lembrar como Decasia é repleto também de um imaginário geológico, de herança romântica, coletando imagens degradadas de rochedos em meio a marés, desertos, vulcões, escavações e minas que emolduram o filme, estabelecendo aqui um fascínio sublime pelos intempéries do mundo.
Pensando essas imagens enquanto ruínas, pudemos observar, novamente junto de Tim Edensor, como “os costumes estéticos da forma, beleza, localização e exibição são reenquadrados na ruína” (EDENSOR, 2005, p. 76), visto que Decasia convida a esse tipo de encontro com a matéria degradada. Na confusão entre figura e suporte, após o “esventramento” dos fotogramas criado pela transgressão de barreiras catalisada por seu estado em ruínas, observamos como essas imagens ganham novas texturas e exploram diferentes materialidades do que a representação fotorrealista que antes suportavam: “o estado de ruínas das coisas e sua invasão por matérias externas, além de confundir a apreciação estética normativa dos objetos, lhes revela tatibilidades antes obscuras” (EDENSOR, 2005, p. 120), relata Edensor sobre suas perambulações por entre ruínas.
A imagem em putrefação, de fato, não deixa de reproduzir esses movimentos, imprevisíveis e hipnóticos, produtivos, durante a projeção do filme – a decomposição enquanto experiência plástica toma aqui o centro do apelo visual da obra, ocorrendo a partir da corrupção de convenções ópticas e materiais da imagem cinematográfica, irrompendo com formas tradicionais de espectatorialidade (e da imagem imaculada da preservação audiovisual, denegrida por Usai, como vimos), muito ligadas à representação de figuras sob a perspectiva clássica e movimentos realistas de um universo pró-fílmico, enfatizando na contramão as texturas informes e ruídos da imagem que são abjetos da experiência típica de cinema.
Nessa decomposição da perspectiva clássica, numa verdadeira montagem ruiniforme que se aproxima dos estranhos encontros entre objetos disformes nos ambientes em ruína, a experiência desses atritos pode tornar-se “prazerosa por virtude da interação entre objetos que contém diferentes cargas semióticas, e os relacionamentos arbitrários entre diferentes formas, contornos, texturas e materialidades, a diversidade sem fim de justaposições materiais não codificadas que estimula sensações inefáveis” (EDENSOR, 2005, p. 77), reiterando a percepção da imagem enquanto corpo, por outro corpo sensibilizado por ela.
A ruína opera frequentemente no filme, então, ora tomando posse de todo o fotograma, ora ainda em batalha com as imagens originais, como na sequência chave de uma luta entre boxeadores, que, com os fotogramas transformados pela ação do tempo, ressurge como uma luta da forma contra o informa, pois um dos lutadores agora não passa de uma mancha que ameaça a integridade do arquivo. A imagem-ruína contamina-se, assim, com algo não muito diferente da “montagem irônica” que Tim Edensor nota nas ruínas industriais e urbanas em seus encontros entre natureza e cultura, pensando na degradação enquanto comentário sobre a memória:
[…] Enquanto alegorias da própria memória, ruínas ridicularizam noções de que memórias perduram e são estáveis, e caçoam tentativas de fixação mnemônicas por aqueles que instituem comemorações. Compilada de fragmentos e sucatas em transformação, recontadas de maneiras diferentes dependendo do público, ambiente e ocasião, a memória é intrinsicamente elusiva, e nunca evocou um replay de imagem perfeita do passado. (EDENSOR, 2005, p.142).
– a ruína de imagens duplica-se então enquanto um movimento além daquele do cinema: um movimento entrópico de transformação, esquecimento e resistência, que demanda que a memória seja pensada enquanto construção e deslocamento, impossível de fixar. Signos e vestígios do tempo, suas manchas, esmaecimento e ranhuras dialogam com essas imagens, infiltrando-se no imaginário do meio.
A passagem do tempo, em Decasia, materializa-se como uma camada de intermediação ruidosa entre nosso olhar e as figuras do passado, desfigurando as semelhanças da imagem fotográfica com o profilmico e assimilando-as ao informe produzido pelo próprio corpo emulsivo que se impõe sobre as figuras – e assim “o filme é exposto como uma materialidade produtora de imagens, não como uma ilusão de realidade, como no filme clássico” (HERZOGENRATH, 2014, p. 64) – a morte da imagem em Decasia é um devir de novas imagens, tornando sua desaparição um espetáculo cinematográfico, ao qual somos convidados a contemplar tal aspecto ruiniforme das imagens.
Há no filme, portanto, uma celebração encantada pela particularidade de cada segmento momentaneamente suspenso da dilaceração do tempo, como se lhes fosse permitido uma última oportunidade de oferecer seu espetáculo visual antes de serem obliterados por completo. Laura Marks justamente nos aponta para essa reincidência contemporânea de imagens que “atraem um olhar que não se recolhe da morte, mas compreende-a enquanto parte de nosso ser. Filmes opacos, fitas de vídeo degradadas, vídeos projetados que atiçam sua conexão tênue com a realidade das quais são índices: todas clamam um olhar de amor e de perda” (MARKS, 2002, p. 91). Os traços da obliteração dessas películas de nitrato, assim, são os traços da sensibilidade desse material enquanto objeto posto no mundo.
Imagens em ruína, no descolamento parcial de seu substrato e significados originais, ativam um elemento performático da degradação e sua capacidade “improvisacional” de “remixar” cenários, personagens e histórias que são sugeridas tão logo são soterradas por detritos, como em “faíscas” de narrativas que emergem da abstração das manchas emulsivas, criando um drama de inumação e exumação, simbolizada literalmente numa sequência recorrente no filme, que surge entrecortada entre outros momentos, de mineiros presos e escapando de uma mina, carregando corpos inconscientes (Figuras 9, 10 e 11).
O trauma da obliteração histórica dessas imagens é tomado como inevitável, mas revelador de particularidades intrínsecas de sua natureza mesma como imagem, transformando a experiência de sua espectatorialidade. O cinema se esvai e se transforma na passagem para o novo século e Morrison propõe uma sinfonia multimídia elegíaca para essa passagem. E assim paira a questão: como sair do século XX com vida? Algo nessas imagens resiste e sua heterogeneidade de tipos e formas desafiam a idéia de um passado estável e conhecido do cinema: temos aqui filmagens que expressam modos de diegese fílmica que reconhecemos (drama, documentário, comédia) mas estranhamos, pois, com o tempo e o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, se transformaram ou mesmo desapareceram se comparadas as suas formas atuais de elaboração na cultura.
Figura 9, 10 e 11 – trabalhadores resgatados de mina em ruínas
Temos, na coleção de imagens do filme: trechos documentais, de guerra, em contraste com o esplendor das filmagens de estúdio, prenunciando tragédias e ruínas do século; imagens de caráter antropológico ou mesmo provenientes de outras culturas, apontando para arquivos fílmicos de outras formas de olhar e filmar, assim como registros de monumentos, tecnologias e rituais residuais de outros tempos que demarcam suas descontinuidades com os tempos atuais, apontando para uma pluralidade submersa nas utilizações múltiplas do cinema. Esses arquivos flertam com o mistério de um passado remoto e genealógico do cinema (e da modernidade do século XX), duplamente obsoleto e lacunar por estar inscrito numa tecnologia descontinuada (a película de nitrato) e em vias de desaparição devido a processos naturais de decomposição no tempo, tornando fantasmagórica sua teleologia.
Decasia interpela assim o desaparecimento de uma forma de arte enquanto prática cultural e técnica com sua própria materialidade fadada à desaparição, efetuando essa travessia ao encontrar essa mortalidade na própria identidade associada ao registro fotoquímico e ao índice como específicas a esse meio. Decasia se cerca, assim, de um discurso fantasmagórico, no qual:
[…] o senso de mortalidade encontrado no conceito de indicialidade faz referência não apenas à imagem assombrosa de um passado perdido, mas também é sintomática da presença de outro espectro: aquele do próprio cinema. Indicialidade portanto indica tanto uma morte na imagem e uma morte da imagem (BALSOM, 2013, p. 426).
Essas imagens habitam o lugar instável que é a memória, que se demonstra não só um espaço de apagamento e esquecimento, mas também como um de reconstrução a partir de fragmentos, de potencialidade de emergência de sentidos obscurecidos, ressignificações e reterritorializações, como numa transformação alquímica, no qual o novo emerge da matéria morta. Como resume Herzongenrath, esse devir da putrefação formula-se através do:
[…] cruzamento entre entropia e evolução, passado e presente, intenção e acaso. A ruína – tal como em Decasia de Morrison – simultaneamente batalha contra e brinca com a sua própria destruição, e dessa oscilação uma “forma nova” emerge. Logo, em Decasia, cenas no qual uma massa amorfa ameaça engolir uma “vida diegética” estão a par com cenas no qual a imagem parece precisamente emergir desses lodos (HERZONGENRATH, 2015, p. 127).
Assim, se há algo de anacrônico no resgate dos temas formais góticos, abre-se também espaço para o novo, e Decasia pode ser incluído aqui em vertentes já observadas na arte da passagem para o século XXI, visto como “a estética do grotesco e do informe está presente em boa parte da arte contemporânea […] Pois enquanto pode tender ao macabro e ao soturno, o gótico também demarca ‘uma preocupação peculiarmente moderna com limites e seus colapsos’ (Halberstam, in Toth, 1997: 89)” (GRUNENBERG, 1997, p.162), catalisando transmutações a partir do disforme.
Tal como a adaptação de Frankenstein irá complementar as reflexões de Morrison sobre o arquivo de cinema na passagem do século em seu filme de 2010 (Spark of Being), o tema da decadência convive em Decasia também com o da transgressão de barreiras, das quais a fronteira entre vida e da morte torna-se campo de confusão e de trocas, porosidades – há aqui a melancolia da perda assim como a aceitação das passagens, elogio dos ciclos e volúpia pela transgressão; as imagens “morto-vivas” de Decasia são dotadas de vidas particulares e mágicas ao longo da projeção, fazendo de sua melancolia também um elemento motriz para uma percepção transformada acerca do “velho” enquanto reservatório de tempo e vitalidade própria da resistência.
Comentaristas extemporâneas do presente, essas imagens putrefatas, decadentes, assim, constituem um efêmero que incorpora as temporalidades incongruentes da matéria e sua história, do retorno do substrato reprimido, um efêmero afirmativo da impermanência e da passagem, que explora também a intensidade do encontro com um presente em transformação, um passado à deriva a ser redescoberto e um futuro que demanda uma reapropriação do obsoleto para evitar a mera amnésia ou fria repetição. E assim, como já refletiu Christa Blümlinger, “o vasto fenômeno do re-emprego fílmico deve ser lido menos como um adeus nostálgico ao meio e à tão distante ‘sétima arte’ do que como sintoma de uma transformação dentro da cultura da memória” (BLÜMLINGER, 2013, p. 25), que surge, na passagem entre séculos, como bem-vinda, acenando para o novo com o peso crítico das utopias ultrapassadas e redirecionadas.
Decasia, jogando lenha no fogaréu finissecular da “morte do cinema”, traz um retorno do reprimido do arquivo enquanto matéria e discurso, perturbando uma história institucional ao reivindicar a lacuna, o ruído, o relento, elegendo a própria mácula da imagem enquanto documento histórico e (anar)arquivo, impedindo a reconstrução de sentidos originais e inserindo a imagem num vetor entrópico porém criativo, irreversível e mutante, de deriva – Decasia constitui assim uma afasia do documento e uma Fantasia criativa do arquivo[8].
Conclusão: O eterno retorno (da morte e nascimento) do cinema
Respondendo às ansiedades acerca do futuro do cinema na virada para o século XXI, Decasia age e reflete sobre o estado de obsolescência do meio, como nos propusemos a analisar, alinhando-se às retóricas materiológicas[9] e arquivísticas que permeiam a produção artística do cinema experimental contemporâneo tal como as apresentamos, estabelecendo um vínculo direto entre essas questões e o retorno de discussões de “morte do cinema” e o imaginário de ruínas que caracterizam a passagem analógico-digital, abrindo espaço, assim, para a localização do filme num dos temas centrais de uma ecologia das imagens: a (sobre)vida material e cultural das formas.
Como resgatam André Gaudreault e Philippe Marion, “a entrada do cinema no terceiro milênio ocorreu sob o signo da mudança radical, do transtorno, da reviravolta” (GAUDREAULT; MARION; 2013, p. 20). Essa turbulência é materializada em Decasia como uma tensão de superfície, expressa de forma háptica, materializada na tela de projeção, modo expressivo que também domina o recurso às imagens arruinadas que observaremos nas obras a serem analisadas nos próximos capítulos. Utilizando de uma linguagem ruiniforme, Gaudrault e Marion chegam a sugerir, ao invés de revolução tecnológica, a idéia de fratura digital (poderíamos dizer fissura) para caracterizar o abalo da chegada da tecnologia que ressoa por todo o “ecossistema” de mídias (GAUDREAULT; MARION, 2013, p. 59).
Dotado de imagens em constante estado de mutação e de uma forma híbrida enquanto performance multimídia, Decasia nos dá um tom inaugural, portanto, a esse momento de crise da própria idéia de cinema, de forma particular por operar um olhar anacrônico para a própria história do meio e a sua constante tendência à mutação e hibridização de formas, no período de sincretismos audiovisuais que caracteriza o contemporâneo. A instabilidade material do nitrato surge, portanto, como ilustração de um presente e um passado de uma forma de cinema em rebuliço, e enfatizá-la opera um resgate anacrônico da história do meio, que também ecoa na análise de Gaudreault e Marion acerca do momento contemporâneo, no livro “O Fim do Cinema?”:
[…] a abertura do meio de comunicação que resulta da atual revolução digital equivaleria, de certa forma, a uma volta ao espírito de não diferenciação identitária, próprio da miscelânea do cinema de atração […] A crise identitária que o tsunami digital provoca e o esfarelamento do controle da instituição são assim, concomitantes. Consideradas com certa distância, as crises que um meio de comunicação como o cinema atravessa em sua genealogia constituem um excelente revelador da hibridização implícita que condiciona a identidade de todo um meio de comunicação (GAUDREAULT; MARION, 2013, p. 132).
Como Gaudreault e Marion nos apontam, em sua cartografia das diferentes narrativas de morte ao longo da história do cinema, esses períodos de crise da prática são também reveladores de tensões ocultas acerca da identidade desse meio que sempre recria-se, transformado a partir de suas cinzas e das faces inexploradas de seus arquivos. Discursos acerca de sua morte recorrem na história do cinema tanto quanto os de sua reformulação, e assim nos alinhamos a perspectiva desses autores de que essa história é, portanto, uma narrativa de hibridizações, renegociações de fronteiras e transformações da técnica e da prática desse meio de comunicação, processo que divide com outros meios na medida em que “todo meio de comunicação é uma hipermídia que não se reconhece como tal” (GAUDREAULT; MARION, 2013, p. 132).
Decasia, à sua maneira, apresenta uma instância de confronto crítico com esse turbulento processo de transformações e trocas entre as artes, que se mutilam e se transformam, figuradas em processos de criação e destruição de imagens. Em sua abordagem multimídia, nos apresenta não apenas esse caráter híbrido que o cinema reencontra na passagem analógico-digital, como também sua efemeridade – toda imagem, enquanto arquivo, surge aqui como uma ruína que deve ser reconhecida como tal, sob o crepúsculo da obsolescência da película, investindo sobre uma ambiguidade particular do cinema que “desde suas origens, tem combinado o tempo mítico da preservação eterna com o tempo efêmero da produção industrial.” (HABIB, 2006, p. 125).
A curiosidade que esses destroços atraem é também a curiosidade mórbida da ruína – se há uma recorrência nos discursos de morte do meio, a passagem analógico-digital demarca-se por essa crise identitária que ataca a própria base analógica do cinema, que, ao invés de encontrar-se mumificada em discursos de preservação, surge em Decasia como encarnando sua própria putrefação, entre decadência e transgressão, exumada e renovada enquanto presença afirmativa da potência de transformação da matéria, num plano ecológico das mídias.
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Lista de Figuras
1. Fotograma de Vera Cruz (2000). Dir: Rosangela Rennó. Distribuição: Videobrasil.
2. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
3. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
4. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
5. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
6. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
7. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
8. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
9. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
10. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
11. Fotograma de Decasia (2001). Dir: Bill Morrison. Distribuição: Janus Films.
Recebido em: 28/02/2019
Aceito em: 28/03/2019
[1] Mestre em Ciências pelo programa de Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP (2018). Doutorando (2019-) pelo mesmo programa. Email: orfaustini@gmail.com.
[2] DUFRENNE, 1973, p. 163. Tradução minha (exceto quando indicada a referência de obra traduzida ao português na bibliografia, as citações do artigo possuem traduções feitas pelo autor).
[3] MICHAEL GORDON. Decasia. Michael Gordon Music. 2004. Disponível em: <https://michaelgordonmusic.com/music/decasia>. Último acesso: 02/08/2018.
[4] Cf. Salon de 1767, p. 371 (DIDEROT, 1821).
[5] Cf. “Lapsus Imaginis”: The Image in Ruins (CADAVA, 2001) e Oubliez ! Les ruines, l’Europe, le musée (DÉOTTE, 1994).
[6] Em seu lançamento monocanal em mídias digitais, a obra é entitulada Decasia: the state of decay. (WORLDCAT, 2018).
[7] Segundo diário de performance de Bill Morrison (2007).
[8] Em entrevista a MACDONALD (2016) Morrison indica que o título Decasia veio de um jogo com o título Fantasia (1940), do clássico da Disney.
[9] Nossa tradução do termo proposto por Brenez (2002), para discutir as práticas cinematográficas que enfatizam a materialidade da película fílmica.
DECASIA (2001): Passagem à ruína e as mortes regeneradoras do cinema
RESUMO: A recorrência, no cinema experimental contemporâneo, de obras que enfatizam a instabilidade material da película – notavelmente em Decasia (2001), de Bill Morrison – vem sendo apontada por alguns autores como um retorno às questões da materialidade cinematográfica (outrora empregada pelo Cinema Estrutural) na era da passagem do analógico ao digital. Tal ênfase material se dá, em obras como essas, através do emprego de imagens deterioradas, por vezes permeado de um caráter nostálgico e mórbido, característico de culturas finisseculares. Ao se voltarem ao corpo analógico na era digital, tais obras tensionam, assim, imaginários associados a ambas tecnologias, criando cruzamentos que ultrapassam a mera associação do digital com o imaterial e da película enquanto fixadora do real. Através desse emprego da degradação, numa leitura de ecologia das mídias, é possível atribuir à passagem do cinema analógico para o digital o lugar paradoxal da ruína que, em sua complexa materialidade, oscila entre o material e o imaterial – e que, tal como essas imagens em dissolução, instiga considerações acerca de um reconhecimento da efemeridade do mundo (e cultura), permitindo observar as mudanças tecnológicas do cinema sob um eixo de transmutações e passagens.
PALAVRAS-CHAVE: Ecologia das mídias. Ruínas. Decasia.
Decasia (2001): Passage to ruin and the transformative deaths cinema
ABSTRACT: The reoccurrence, in contemporary experimental cinema, of works that emphasize the material instability of film – notably in Decasia (2001), by Bill Morrison – has been pointed out by authors as a return to questions of materiality in cinema (often associated with american Structural Film) in the era of transition between analog and digital technology. Such material emphasis occurs, in these works, through the use of deteriorated images, often in a nostalgic and morbid manner, characteristic of fin-de-siècle cultures. Returning to the analog body in the context of the digital, such works operate a friction between the imaginaries associated with both technologies, creating encounters that surpass the mere association of digital with immateriality and analog as a fixer of the real. Through the use of degradation, in a media ecological reading, it is possible to attribute the passage from analog to digital cinema the ambiguous space of the ruin, whose complex materiality oscillates between the material and immaterial – and, as much as these images in dissolution, instigates an acknowledgement of the ephemerality of the world (and our cultures), allowing for an observation of technological change through the axis of transmutations and passages.
KEYWORDS: Media ecology. Ruins. Decasia.
SANTOS, Rodrigo Faustini dos. DECASIA (2001): Passagem à ruína e as mortes regeneradoras do cinema. ClimaCom – Fabulações Miceliais [Online], Campinas, ano 6, n. 14, abr. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=10725