Poéticas do rastejar: por modos educativos do instável e da transformação na era do Antropoceno | Gisela Here, Adrián Cangi e Michele Fernandes Gonçalves


Gisela Here [1]

Adrián Cangi [2]

Michele Fernandes Gonçalves [3]

Tradução de Priscila Costa [4]

 

Educação milenar

Em junho de 2003, Dona Nazaré faleceu, após meses internada no hospital de Porto Velho. Na aldeia Central (Kyowa) do Povo Karitiana, no estado de Rondônia (porção sul da Amazônia), 450 indivíduos de sete comunidades próximas se reuniram para seu funeral. O pôr-do-sol de nuvens avermelhadas no horizonte longínquo até poderia nos fazer pensar nos extensos incêndios naturais ou provocados que recorridamente mancham o céu nas extensas fazendas vizinhas ao território Karitiana. Mas esse povo não pensa “da nossa maneira”. Para eles, esse é o “ce ambo”, o sangue de dona Nazaré subindo em direção ao firmamento. As nuvens vermelhas são resultado do líquido também vermelho que passa do corpo da idosa para o céu e se espalha no momento em que o sol se veste com um cocar de penas de arara, aquele usado pelos guerreiros em antigos confrontos com os povos inimigos. O sol recepciona e “come” o sangue da falecida que, ao se tornar espírito, não precisa mais dele, pois os espíritos intermediários entre os mundos carecem do tipo de “circulação” dos homens. Quando alguém morre, os moradores dessas terras costumam dizer que sempre há um barulho no céu, mas que ele “não é grande coisa”, que o trovão “só vai passar”, indicando que a morte é como um estrondo em um céu claro e sem nuvens. Um céu intermediário, um céu-limiar entre os vivos e os mortos. É um tipo específico de trovão, chamado dokoit’pyroky (trovão que faz barulho), que não deve ser ouvido entre os vivos porque anuncia mais mortes. Recomenda-se tapar os ouvidos. Ele é produzido por um tatu gigante que mora no céu e, com seu casco, faz parte da abóbada celeste. Os Karitiana sabem que o tatu devora cadáveres e é chamado de “carniceiro rastejante”.

Esses animais não podem ser servidos como alimento aos seres humanos porque sua condição de necrófagos indica que quem os come envelhecerá rapidamente até se aproximar da morte. Seguindo o som estranho que vem de cima, “a chuva dos mortos” (yjbopo’e) acontece porque o tempo está bravo com a partida da senhora, umas das sábias da comunidade. Os trovões são pela morte do corpo, mas principalmente por aquela da sabedoria e do amor na fábula (anteriormente lenda e primeiro mito) que indica que o afeto é um corpo vibrante em uma relação “multiversal”. O afeto vibra, preserva as malhas privilegiadas de intensidades pessoais e impessoais que atravessam os limiares entre-mundos. O céu dos Karitiana não invoca apenas o passado de um corpo que “não mais está”, mas o presente de um povo que o tem sob sua cabeça e o olha diariamente pela fábula, bem como o futuro dos espíritos que ali se refugiam para continuar, sempre, “entre nós”. O futuro é ancestral (Krenak, 2022) porque chama todos os tempos, assim como a pertença a uma “fricção educatica” com a vida que flui “entre” as palavras e as histórias de um continuum existencial e plurimodal. O aprendizado dessa composição é o que nos coloca lado-a-lado ao ritmo das coisas, quando então já não há mais nem um único “homem” – apenas “nós”, o corpo da Terra.

 

(Leia o ensaio completo em PDF).

 

Recebido em: 25/04/2023

Aceito em: 15/05/2023

 

[1] Mestre em Design Comunicacional pela Faculdade de Arquitetura, Design e Urbanismo (FADU) da Universidade de Buenos Aires (UBA – Argentina). Mestranda em Estéticas Contemporâneas Latino-americanas da Universidade Nacional de Avellaneda (UNDAV – Argentina). Professora adjunta regular na UNDAV. Auxiliar docente na FADU/UBA. Email: ghere@undav.edu.ar.

[2] Doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e em Sociologia pela Universidade de Belgrano (UB). Pós doutor em Filosofia e Letras pela USP. Professor e pesquisador da Universidade de Buenos Aires (UBA – Argentina), Universidad Nacional de La Plata (UNLP – Argentina) e Universidade Nacional de Avellaneda (UNDAV – Argentina). Diretor do Mestrado em Estéticas Contemporâneas Latino-americanas da UNDAV e do Centro de Estéticas e Políticas Contemporâneas Latino-americanas da UNDAV. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0755-6699. Email: adriancangi@hotmail.com.

[3] Especialista em Jornalismo Científico pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com temporada sanduíche no Mestrado em Estéticas Contemporâneas Latino-americanas da Universidade Nacional de Avellaneda (UNDAV – Argentina). Professora do Departamento de Estudos Especializados em Educação (EED) da UFSC. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6146-8764. Email: mi.fernandes.goncalves@gmail.com.

[4] Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Franciscana (UFN), Especialista em Processos Criativos em Palavra e Imagem pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais e Mestranda em Estéticas Contemporâneas Latino-americanas pela Universidade de Avellaneda (UNDAV). Email: priscila.costa13@gmail.com.

Poéticas do rastejar: por modos educativos do instável e da transformação na era do Antropoceno

 

RESUMO: A linguagem, assim como o desejo, perturba, recusa-se a ser contida em qualquer limite. No campo educativo, pode reiterar posturas desgastadas e partícipes de uma uma ideia centralizadora, autoreferente e “elevada” de “mundo”, “humano” e “escola” ou abrir-se à possibilidade de pensá-los desde posições menos eurocentradas e que se coloquem “ao rés do chão”. Em tempos da política do “design de si” e da monetização do Eros e do ethos na figura do “empreendedor de si” que prega o “autocuidado” como “cuidado” da “natureza”, como pensar, a partir de linguagens sensíveis, linhas de fuga em educação que respondam a uma contemporaneidade assediada pela crise climática e pelos discursos teológico-salvacionistas? O mundo dos insetos, larvas e embriões é efeito e afeto de processos de instabilidade e metamorfose cujo movimento apresenta problemas estético-políticos que desarmam qualquer ideia do estável, incluindo o binômio Natureza/Cultura. A partir da problematização desse binômio, propomos pensar as linguagens das artes e do design como um convite a se deixar afetar pelas tramas bio-estético-políticas do não humano, fabulando e “rastejando” até desencadear um novo distúrbio do sensorium que faça emergir poéticas e estéticas da instabilidade e da metamorfose potentes para o campo da educação.

PALAVRAS-CHAVE: Metamorfose. Natureza/Cultura. Larvas. Sensorium. Educação.


Retóricas y políticas del arrastre: por una estética de lo inestable en la era del Antropoceno

 

RESUMEN: La lengua como el deseo perturban, se rehúsan a quedar contenidos dentro de los límites. En el campo educativo, puede reiterar posturas desgastadas y partícipes de una idea centralizadora, autorreferencial y “elevada” de “mundo”, “humano” y “escuela” o abrirse a la posibilidad de pensarlas desde posiciones menos eurocéntricas y que miren las cosas “muy cerca del suelo”. En tiempos de la política del “diseño de sí” y la monetización del Eros y el ethos en la figura del “empresario de sí”, que predica un “autocuidado” como “cuidado” de la “naturaleza”, ¿cómo pensar, desde los lenguajes sensibles, líneas de fuga en Educación que contesten a una contemporaneidad asediada por la crisis climática y los discursos eulógico-salvacionistas? El mundo de los insectos, larvas y embriones es efecto y afecto de procesos de inestabilidad y metamorfosis, cuyo movimiento despliega problemas estético-políticos que desarman cualquier idea de lo estable, incluyendo el binomio naturaleza/cultura. Bajo problematización de este binomio, proponemos pensar los lenguajes de las artes y del diseño como una invitación a dejarse afectar por las tramas bio-estético-políticas de lo no-humano y a partir de allí, fabular y “arrastrarse” hasta desencadenar un nuevo desorden del sensorium que crie poéticas y estéticas potentes de la inestabilidad y la metamorfosis en el campo de la educación.

PALABRAS CLAVE: Metamorfosis. Naturaleza/Cultura. Larvas. Sensorium. Educación.


HERE, Gisela; CANGI, Adrián; GONÇALVES, Michele Fernandes. Poéticas do rastejar: por modos educativos do instável e da transformação na era do Antropoceno. ClimaCom – Ciência.Vida.Educação [online]. Trad. Priscila Costa, Campinas, ano 10, n. 24., mai. 2023. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/poeticas-rastejar/