Entrevista Eduardo Mário Mendiondo | “Segurança hídrica brasileira depende de pesquisa e investimentos” | Por Allison Almeida

O engenheiro de recursos hídricos indica que as pesquisas brasileiras em gestão das águas vêm chamando a atenção da comunidade científica internacional, e que é necessário mais recursos visando ações a longo prazo.

Por | Allison Almeida

Editora | Susana Dias

 

Mendiondo Foto selecionada

 

Essencial para a vida, a forma como uma nação realiza a gestão de suas águas revela dados importantes sobre o estágio de desenvolvimento de um país do ponto de vista socioeconômico. A Climacom conversou com Eduardo Mário Mendiondo, cientista líder do componente ‘Gestão de Recursos Hídricos’, do Projeto INCT-Mudanças Climáticas 2a. fase (INCTMC2), para discutir como o Brasil vem tratando o tema, e como a ciência nacional vem dando contribuições ao mundo. Questões como políticas públicas, novos produtos, gestão a longo, mitigação de efeitos da seca, colaboração entre universidades e os novos planos do INCTMC2 foram abordados numa conversa, que refletiu também sobre a importância da manutenção dos investimentos na área. “Sem um plano nacional de investimento em Ciência e Tecnologia a longo prazo, não haverá sustentação científica para futuros INCTs, nem instrumentos financeiros para as futuras etapas do Plano Nacional de Segurança Hídrica”, afirma.

ClimaCom | O Brasil é uma das maiores potências hidrográficas do globo e, por conta disso nosso país tem uma grande importância geostratégica no que se refere a recursos hídricos. Como o senhor define o momento atual das pesquisas brasileiras em relação à sustentabilidade e a exploração racional de recursos hídricos? O Brasil vem dando atenção necessária ao tema? Como o Programa INCTMC2 vem contribuindo para a autonomia brasileira em relação à gestão de recursos hídricos?

Eduardo Mário Mendiondo | As pesquisas brasileiras, em relações à sustentabilidade e exploração racional de recursos hídricos, estão ganhando atenção internacional. O Brasil, em geral, vem dando atenção ao tema. Um exemplo é o Plano Nacional de Segurança Hídrica, lançado em abril/2019. No PNSH/Brasil há oportunidades para incorporar os impactos regionais, assimetrias biomáticas e as estratégias de adaptação dos sistemas de recursos hídricos no horizonte 2030-2100. O Programa INCT-Mudanças Climáticas tem uma oportunidade da subcomponente de “segurança hídrica” estar mais alinhada com os planos federais, estaduais e municipais, porém ainda faltam mais recursos, públicos e privados, para termos uma melhor divulgação e incentivo nacional e internacional. A China estava atrás do Brasil há 50 anos e nos superaram. Por quê? No Brasil falta um jogo claro. Embora as pesquisas cresçam em número e em qualidade, existe, em primeiro plano, uma falta ou queda de uma política de longo prazo dos órgãos públicos de fomento. Como segundo aspecto, é incerta uma política que promova mais claramente as regras de parcerias público-privadas (PPPs). Como terceiro elemento importante, há uma falta de interesse de empresas privadas, no geral, pela pesquisa feita no Brasil. Estes e outros fatores comprometem as conquistas e deixam obscuros quaisquer cenários. A mensagem é clara: sem um plano nacional de investimento em C&T de longo prazo, não haverá sustentação científica para futuros INCT-Mudanças Climáticas, nem instrumentos financeiros para as futuras etapas do Plano Nacional de Segurança Hídrica. Também não haverá alavancas para tirar o empresariado do papel de mero espectador e não cofinanciador de pesquisas de ponta como as realizadas no INCT.

ClimaCom | O Programa INCT Mudanças Climáticas está em uma segunda fase, foi atualizado e se encontra com novas diretrizes. De acordo com o relatório do INCTMC2 de 2018, a primeira fase do projeto teve participação de mais de 400 pesquisadores do Brasil e de 18 países gerando uma farta rede de estudos em base científica das mudanças ambientais globais; impactos, adaptação, vulnerabilidade; mitigação, e esforços de inovação tecnológica em modelos do sistema climático, geossensores e sistema de prevenção de desastres naturais. O que podemos esperar do grupo científico relacionado à segurança hídrica nesta nova fase? Quais serão as prioridades de desenvolvimento de pesquisas do grupo?

Eduardo Mário Mendiondo | Nesta segunda fase, a subcomponente de segurança hídrica é composta por IES nacionais das regiões Nordeste, Sul e Sudeste do país, como UFPE, UFCG, UFRGS, Embrapa, Funceme, UFPE, Cemadem, Inpe e USP. Essas instituições estabelecem parcerias nacionais e internacionais com outras instituições e outros financiamentos. Nesta segunda fase do projeto temos quatro objetivos específicos. Primeiro: a identificação de bacias hidrográficas estratégicas críticas  para sistematizar a coleta de dados de oferta e demanda hídrica com modelos hidroclimáticos. Segundo: modelagem hidroclimática hidrológica sob condições de quase-estacionariedade, em diferentes escalas espaciais, como, por exemplo, usos do solo, demandas e biomas.  Terceiro: com simulações de longo prazo, trabalharemos a prospecção de novos indicadores de vulnerabilidade e riscos aos extremos hidrológicos sob cenários futuros sob condições não-estacionárias. Quarto: buscaremos a avaliação de novas estratégias de adaptação para segurança hídrica de usos múltiplos sob condições não-estacionárias, com o uso de indicadores clássicos e com novas ferramentas de transferência de riscos de extremos hidrológicos. Em última instância, a  proposição de estratégias para melhoria da comunicação de segurança hídrica entre comunidade científica, gestores públicos e população vulnerável a extremos hidrológicos. Em síntese, a primeira prioridade desta nova etapa foi incentivar um diálogo interinstitucional, dentro e fora do grupo relacionado a recursos hídricos. A partir dessa realização, trabalhamos com propostas de observatórios sociohidrológicos que aliem planos nacionais com estratégias e soluções de mudanças climáticas. Outra prioridade constante é atrair recursos financeiros complementares, que ajudem nos objetivos da subcomponente.

ClimaCom | O relatório relacionado de 2018 do INCTMC2 descreve ainda uma pesquisa referente ao acompanhamento de enchentes no Sudeste do Brasil. Segundo o estudo, chuvas extremas, como aconteceu na região serrana do Rio de Janeiro em 2011, estão se tornando um fenômeno mais frequente do ponto de vista científico. Este importante monitoramento deste tipo de fenômeno continuará nesta nova fase? Sobre a metodologia, o grupo científico de Recursos Hídricos do INCTMC2 aprofundará os estudos visando trazer soluções voltadas para questões de defesa civil e mobilidade urbana ou o estudo se dará por meio de acompanhamento científico apenas?

Eduardo Mário Mendiondo | As soluções do INCTMC2-segurança hídrica não somente trarão acompanhamento científico, mas também soluções integradas ligadas aos riscos socioambientais de comunidades. Um exemplo é que leis fundamentais, como a leis 9.433 (recursos hídricos), 11.445 (saneamento ambiental), 12.187 (mudança do clima), 12.608 (proteção civil), todas sancionadas em um período de 15 anos, ainda não foram efetivamente integradas a Política Nacional de Recursos Hídricos devido à limitação de recursos o INCTMC2-segurança hídrica. Por um lado, o monitoramento de variáveis hidroclimáticas continuará sendo realizado por instituições públicas específicas, como a Agência Nacional de Águas, o Instituto Nacional de Meteorologia, o Serviço Geológico do Brasil, O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais. A manutenção, expansão e operação destes sistemas de monitoramento é condição necessária para analisar, testar e aperfeiçoar as hipóteses de frequência de ocorrência, magnitude, e possível não-estacionaridade de evento dos eventos extremos. Por outro lado, as soluções do INCTMC2-segurança hídrica usarão estes monitoramentos colocando-os em sintonia com os objetivos de desenvolvimento sustentável proposto pela Organização das Nações Unidas. Isto é, de que maneira as soluções precisarão alcançar 60 milhões de pessoas com necessidades básicas ainda não atendidas, num horizonte de 2020-2100, e de possível aumento de fatores como desigualdade econômica, maior desemprego e decréscimo da porcentagem do setor público no financiamento de infraestrutura.

ClimaCom | Em boa parte do território nacional, a questão da segurança hídrica é um problema presente muito importante e que necessita de soluções imediatas, que amenizem os impactos sociais causados pela escassez de água. Atualmente, o senhor desenvolve, junto ao INCTMC2 um projeto na área das engenharias referentes ao desenvolvimento de novas técnicas para reciclagem de águas de drenagem urbana. No que consiste este projeto? Como num futuro essas novas técnicas poderão impactar positivamente a vida das pessoas?

Eduardo Mário Mendiondo | A subcomponente de segurança hídrica fomenta economias de baixo carbono e baixo custo. Assim, o diálogo interdisciplinar do INCT Mudanças Climáticas 2a. fase, nacional e internacionalmente, serviu para mudança fundamental do pensamento tradicional de infraestrutura hídrica. O INCTMC2 permitiu uma revolução no pensamento sobre uma nova geração de técnicas compensatórias. Atualmente, a maioria das infraestruturas urbanas usam técnicas compensatórias, como obras de drenagem, para mitigar somente impactos marginais de extremos hidrológicos como, por exemplo, os excessos da drenagem urbana que aumentam as inundações, enxurradas e ocasionam perdas de vidas. O pensamento tradicional somente projeta e executa obras para mitigar o avanço da urbanização. O INCTMC2 permitiu consolidar uma segunda geração de técnicas compensatórias construídas especialmente para projetos mais resilientes, do aumento da urbanização junto com os futuros impactos de mudanças climáticas. Assim, mais indivíduos, desde um mestre de obras até um Código de Obras (e um Plano Diretor), poderiam apreciar com normas técnicas de como mudar o tamanho, o design e o monitoramento e manutenção destas novas técnicas, para que os efeitos da urbanização somado aos efeitos do clima sejam devidamente mitigados. O INCTMC2 foi mais longe: propomos técnicas compensatórias de terceira geração com o objetivo de fazer o ciclo hidroclimático restaurado em escala local poder ter ligações diretas com o ciclo de vida de bens e serviços. Por exemplo, estudamos como associar estações de reciclagem de água, de nutrientes e/ou de materiais como metais (todos transportados pela drenagem urbana) visando mitigar a insegurança alimentar, também a insegurança energética, e, por fim, a insegurança hídrica.

ClimaCom | Em pesquisa em andamento para o projeto INCTMC2, o senhor vem discutindo uma nova forma de valoração dos serviços hidrológicos, que leve em consideração uma metodologia unificada de valoração ecossistêmica, que inclua elementos científicos de cenários de mudanças, e que seja de fácil assimilação por comitês de bacias hidrográficas, indo além das questões de mercado, que decidem quanto um bem público como a água deve custar. Como anda esta pesquisa? Que tipos de resultados vocês almejam? Seria possível a médio prazo ser criada uma nova fórmula para cobrança da água, que leve em consideração outros fatores, além das questões econômicas de oferta e demanda?

Eduardo Mário Mendiondo | O subgrupo INCTMC2-segurança hídrica aborda os serviços ecossistêmicos associados às componentes de recursos hídricos de uma bacia a partir do conceito de adaptação baseada em ecossistemas. Primeiramente, é necessário identificar e mensurar a disponibilidade de adaptação de setores às mudanças futuras; como, por exemplo, quais medidas estruturais (obras, técnicas compensatórias de 2a e 3a geração, entre outras), e quais medidas não estruturais (como capacitação, educação e transferência de riscos com mecanismos de seguros). Num segundo momento, um dos instrumentos, relacionado ao conceito de adaptação baseada em ecossistemas, consiste em verificar como alguns instrumentos de mercado permitidos na atual legislação, como os seguros, podem estar associando a disponibilidade de pagar por um setor usuário. Tradicionalmente, não existe uma visão unificada na escala de bacia para os instrumentos legais e locais. A subcomponente de segurança hídrica busca novos indicadores viáveis para tomadores de decisão em sintonia com o Plano Nacional de Segurança Hídrica para assim responder questões importantes como: “Como e quanto é mais vantajoso contratar um seguro de ameaças múltiplas relacionada a questões de inundações e de secas, em vez de contratar seguros separados, um para secas e outro para inundações?”; “Como e quanto muda o prêmio de seguro para riscos hidrológicos sob cenários de mudanças e em um horizonte não-estacionário?”; “Como incorporar mecanismos de transferência de riscos para regimes hidrológicos parcialmente ou totalmente impactados por escassez de recurso?”; “Como incorporar elementos simples, tipo aplicativos de celular ou observatórios, que permitam aos cidadãos e setores de usuários de recursos hídricos comparar as vantagens de tipos de seguros hídricos visando mitigar impactos sob cenários de mudanças de médio e longo prazo”; Como incorporar seguros visando objetivos de desenvolvimento sustentável e como e quanto custa a incerteza na aversão ao risco?

ClimaCom | Historicamente a população da região do Semiárido nordestino passa por constantes problemas ocasionados por escassez de recursos hídricos. Constantemente, o sertão passa por grandes períodos de estiagens, como aconteceu de 1979 a 1985, onde segundo projeções dois milhões de pessoas morreram de fome, e quase dez por cento da população do Nordeste migrou para outras regiões. Do ponto de vista das ciências que se dedicam ao estudo das mudanças climáticas, o que pode ser feito para amenizar ou até mesmo solucionar o problema? A questão da perene crise hídrica no nordeste receberá atenção nos estudos do INCT Mudanças Climáticas nesta nova fase? A ciência pode evitar tragédias sociais como as que ocorreram na estiagem de 1979 a 1985 no Nordeste?

Eduardo Mário Mendiondo | A ciência, desde que seja devidamente publicitada e divulgada, pode ajudar na redução de riscos de desastres ligados à insegurança hídrica, incluindo suas ligações com os nexos de segurança alimentar, energética e de biodiversidade. Porém, é preciso um planejamento de despesas ligadas à publicação e divulgação. Havendo cortes orçamentários, sejam em verbas discricionárias, seja em novos projetos que não saem do papel por falta de verbas, a população não terá noção do que a ciência faz para prevenir os impactos negativos.  Outro exemplo, com custo bem maior, é integrar mais, e melhor, de forma eficaz, na escala local, os atores, os instrumentos, os fundamentos e as boas práticas oriundas das leis 9.433, 11.445, 12.187 e 12.608. Hoje, há vários produtos disponíveis ao público como o Monitor de Secas, promovido por uma instituição do INCTMC2, a Funceme. O Projeto incorpora elementos para a tomada de decisão para se preparar, prevenir, mitigar e responder às secas, incluindo a cultura de “conviver com as secas”. Nesta nova fase do INCT-Mudanças Climáticas, a Funceme sempre será convidada a participar e compartilhar este e outros exemplos que visam à segurança hídrica. O Cemdem, participante do INCTMC2, com o produto “Sistema de Monitoramento de Seca para o Brasil”, permite ampliar novas ferramentas como o Índice Integrado de Seca (EIS), e Impactos Hidrológicos em bacias afluentes a reservatórios estratégicos. Finalmente, a Agência Pernambucana de Água e Clima (Apac), em associação com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), incorpora vários destes produtos com inclusão social, divulgação e treinamento, como a Funceme e o Cemadem. Estas ferramentas poderão ser incorporadas dentro de uma ótica de mudanças do clima e de uso do solo, com a participação das instituições e os setores usuários beneficiários destes produtos. Enquanto não houver ou diminuir as dotações orçamentárias, e/ou não houver integração de produtos, cresce o risco de desinformação e de tomada de decisão sob ignorância, o que aumentam os riscos e perdas econômicas a médio e longo prazo.

ClimaCom | O Projeto INCTMC2, além de envolver uma grande rede de instituições e cientistas do Brasil, é um grande projeto de integração de conhecimento global envolvendo parcerias com dezoito instituições de pesquisa internacionais. No âmbito dos estudos relacionados aos recursos hídricos, com quais instituições o grupo de recursos hídricos existem parcerias e que tipo de trabalho os cientistas realizam em conjunto?

Eduardo Mário Mendiondo | No Brasil, além das instituições que oficialmente compõem a subcomponente de segurança hídrica do INCTMC2, há parcerias com outras instituições como a Fiocruz. No exterior, a partir da Escola Avançada de Altos Estudos, há parcerias com IES estrangeiras do Canadá, Estados Unidos, Europa, Ásia e Austrália. Em todas elas, os pesquisadores têm alto índice h de citação, receberam os mais destacados prêmios internacionais ligados à segurança hídrica e têm interesse interdisciplinar pelo INCTMC2, desta e de outras subcomponentes.

ClimaCom | Além de focar em estudos de impactos, adaptação e vulnerabilidade em relação às mudanças climáticas, o INCTMC2, segundo suas próprias diretrizes, visa a elaboração de novos produtos tecnológicos. Em que nível essa diretriz acontecerá no grupo de estudos relacionados a recursos hídricos na segunda fase? Vocês, nesse momento, desenvolvem algum novo projeto que entrará futuramente no mercado?

Eduardo Mário Mendiondo | Sim, há vários produtos sob análise para instrumentos de políticas públicas, e também com potencial de patentes. Existem iniciativas, como da Fapesp-Pipe, onde existe um financiamento inicial para Empresas de Base Tecnológica, com apoio do Centro de Inovação, Pesquisa e Divulgação (CEPIDs) de Matemática Aplicada às Indústrias.

ClimaCom | A subcomponente de recursos hídricos tem alguma ação voltada a comunicação? Qual? Tem alguma demanda ou expectativa relacionada à comunicação? Qual?

Eduardo Mário Mendiondo |  Sim, há uma ação voltada para comunicação intitulada Observatório Sociopsicológico para Segurança Hídrica (SocioHydrological Observatory for Water Security, SHOWS). Ele é um produto das discussões no INCTMC2 e está em fase de testes, e é discutido no âmbito do Centro Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Clima, participante do INCTMC2.

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Esta entrevista faz parte das ações do projeto INCT-Mudanças Climáticas Fase 2 financiado pelo CNPq projeto 465501/2014-1, FAPESP projeto 2014/50848-9 e a CAPES projeto 16/2014.