Reelaborar o passado colonial: arte congolesa na ignição epidêmica do HIV | Aldones Nino e Matheus Simões


Aldones Nino [1]

Matheus Simões[2]

O COMEÇO DA DISSEMINAÇÃO GLOBAL DO HIV

Atualmente, segundo os dados apresentados pela OMS em 2018, existem 37,9 milhões de pessoas infectadas com HIV em todo o mundo. Destas, 23,3 milhões (62%) recebem tratamento antirretroviral. Apenas no continente africano, 25,7 milhões de pessoas estão infectadas, enquanto nas Américas são 3,5 milhões convivendo com a doença (UNAIDS, 2020). Em 2020, na década que se inicia, completa-se um século desde a data provável estipulada por cientistas (PÉPIN, 2011; FARIA et al., 2014) da primeira infecção humana pelo vírus símio (SIV) gerando, através de mutações, o vírus HIV. Desta forma se inicia a epidemia global de HIV/Aids, assolando primeiramente indivíduos que habitavam as proximidades das florestas do vale do Rio Congo, na África Central.

Na compreensão tecnocientífica mais largamente difundida, a história do HIV começa apenas em 1981, o ano chave da identificação do vírus no ocidente, quando homens gays estadunidenses começaram a morrer em Los Angeles e Nova Iorque fazendo o vírus ser reconhecido pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. Primeiramente identificado como uma doença específica de determinados grupos minoritários — imigrantes haitianos, hemofílicos, heroinômanos e homossexuais — o governo estadunidense dissemina uma corrente de desinformação ao utilizar a desastrosa expressão de “Doença dos 4Hs”[3] como forma de comunicação preventiva sobre o vírus. Porém, hoje se sabe que sua origem remonta a um período muito anterior e intrinsecamente ligado ao imperialismo e à expansão colonialista dos países industrializados.

Como forma de reconstruir sua origem e formular uma “história social da Aids”, pesquisas articulando campos de conhecimentos diversos como a epidemiologia, a antropologia, a estatística e o urbanismo visam preencher uma lacuna de aproximadamente 60 anos. Um destes pesquisadores é o médico canadense Jacques Pépin, especialista em doenças infecciosas da Universidade de Sherbrooke, em Quebec, que em seu livro “As Origens da Aids” (The Origins of Aids, 2011) utilizou técnicas de arqueologia viral e abordagens estatísticas para compilar dados de pesquisas anteriores e analisar minuciosamente fatos históricos. Recorrendo a análises de DNA em arquivos de amostras de sangue da época, Pépin mapeou as origens da doença, permitindo dessa forma analisar o vírus em seus estágios iniciais de evolução genômica. Desta forma, Pépin define uma localização e data aproximadas e remonta a uma cadeia específica de amplificadores virais que possibilitaram o surgimento da epidemia.

Os resultados dessa “história social” do vírus possibilitaram formular uma linha temporal filogenética da doença e detectar que, retrospectivamente, há uma alta probabilidade do HIV-1 de Grupo M[4], o mesmo que estabeleceu as proporções pandêmicas que conhecemos hoje (sendo responsável por mais de 95% dos casos infecciosos no planeta), ter tido um ancestral comum surgido em áreas próximas de Kinshasa, atual capital da República Democrática do Congo (RDC). A partir da percepção que a maior variabilidade de subtipos do vírus consegue determinar o provável local inicial de sua dispersão, a localização estimada da origem da epidemia explica a observação de que Kinshasa, em análises coletadas ainda nos anos 1980, exibia mais diversidade genética do HIV-1 contemporâneo e “cepas muito mais complexas do que as encontradas em qualquer outra parte do mundo” (PÉPIN, 2011, p. 16, tradução nossa); portanto, permitiu-se traçar com maior precisão um recorte geográfico do início da expansão do vírus e o surgimento de seu comportamento pandêmico através de mecanismos de amplificação da transmissão entre países da África Central (leia o artigo completo em pdf).

 

Recebido em 30/10/2020

Aceito em 23/11/2020

 

[1] Mestre em História Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ em cotutela com a Universidade de Granada. E-mail: aldones.c@gmail.com

[2] Especialista em Gênero e Sexualidade pelo IMS/UERJ e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ. E-mail: galuboiy@gmail.com

[3] Mais tarde, seria ainda usado o termo “Doença dos 5 Hs”, com as trabalhadoras sexuais (hookers) incluídas.

[4] Existem dois tipos principais de HIV: o HIV-1 (o mais comum) e o HIV-2 (relativamente incomum e menos infeccioso). Assim como muitos vírus, o HIV tem a capacidade de sofrer mutações e mudar com o tempo. Isso explica porque, dentro dos principais tipos de HIV, existem muitos subgrupos geneticamente distintos: o HIV-1 se divide em quatro grupos (M, N, O e P), cujo M é o responsável pelas suas proporções pandêmicas, enquanto os outros três permanecem bastante incomuns. Ainda neste mesmo grupo M, há as variações em nove subtipos conhecidos: A, B, C, D, F, G, H, J e K. E a maior variedade destes subtipos é encontrada hoje justamente na África Central.

 

 

Reelaborar o Passado Colonial:
Arte Congolesa na Ignição Epidêmica do HIV

RESUMO: Através de estimativas da propagação do HIV (o vírus da imunodeficiência humana) e suas rotas de transmissão utilizando as redes de transporte entre Kinshasa e os países da bacia do Rio Congo, pesquisas atuais reconhecem a circulação do vírus na região desde a década de 1920. Isto, por sua vez, questiona as narrativas hegemônicas que demarcam a década de 1980 como o período de emergência (ou o “surgimento”) da epidemia de HIV/Aids. É neste sentido que o presente artigo aborda a história da epidemia de HIV/Aids numa perspectiva decolonial, estabelecendo conexões críticas com a história social e os regimes de visualidades gerados sob a dominação colonial do Congo. Para tanto, são analisadas a literatura decolonial sobre o tema e a arte pictórica congolesa do período, que se inicia sob a intervenção do domínio escravagista. Dessa maneira, linhas são traçadas entre os fatos históricos que tanto marcaram a temática das produções artísticas quanto possibilitaram a transmissão críptica do HIV nos anos em que se manteve ignorado pelo ocidente.

PALAVRAS-CHAVE: HIV/Aids. Perspectiva decolonial. Arte congolesa.


Re-elaborating the Colonial Past:
Art of the RDC in the Epidemic Ignition of HIV

ABSTRACT: Through estimates of the spread of HIV (the human immunodeficiency virus) and its transmission routes using transport networks between Kinshasa and the countries of the Congo River basin, current research has recognized the circulation of the virus in the region since the 1920s. This, in turn, questions the hegemonic narratives that demarcate the 1980s as the period of emergency (or “the birth”) of the HIV/AIDS epidemic. It is in this sense that the present article addresses the history of the HIV/AIDS epidemic in a decolonial perspective, establishing critical connections with the social history and the visual regimes generated under the colonial domination of Congo. To this end, the decolonial literature on the subject and the Congolese pictorial art of the period, which begins under the intervention of the slaveholding domain, are analyzed. In this way, lines are drawn between the historical facts that both marked the theme of artistic productions and made possible the cryptic transmission of HIV in the years when it remained ignored by the West.

KEYWORDS: HIV/AIDS. Decolonial Perspective. Congolese Art.

 

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NINO, Aldones; SIMÕES, Matheus. Reelaborar o passado colonial: arte congolesa na ignição epidêmica do HIV. ClimaCom – Epidemiologias [Online], Campinas, ano 7,  n. 19,  Dez.  2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/decolonial-arte-congolesa/