Contar outras estórias
Daniela Tonelli Manica[1]
O filme dá voz, corpo e ambiência para Donna Haraway, uma das maiores pensadoras dos últimos tempos, professora emérita do Departamento de História da Consciência da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, e referência fundamental para quem trabalha com as temáticas de gênero, tecnociência e capitalismo. Fabrizio Terranova nos leva para os jardins, o escritório, a sala da sua residência na Califórnia, o chalé onde veraneia, construído por ela e seus companheiros no campo, e no qual escreveu obras como Primate Visions (1989) e o Manifesto Ciborgue (1991).
Em diálogo com outras pensadoras contemporâneas, como Isabelle Stengers, “Story telling for earthly survival” sobrepõe camadas às questões tratadas no último livro lançado por Haraway em 2016, “Staying with the trouble: making kin in the chtulucene”. O filme é uma experimentação audiovisual que desdobra algumas das principais ideias desenvolvidas em sua obra: ele parte da “vida” de Haraway, na sua concepção mais ampla e fidedigna às propostas teórico-políticas da autora, ou seja, levando em conta tudo aquilo que implica e ao mesmo tempo permite sua (e nossa) existência mundana. Terranova (re)compõe, em imagem e som, o mundo em que Haraway vive e os diversos seres que a acompanham.
Rusten Hogness, seu companheiro, e Cayenne Pepper, sua cadela já senil, dividem com Haraway a vida, e as cenas do documentário. A autora conversa com o diretor tendo como cenário sua casa, e o filme não economiza as interrupções, acontecimentos e composições desse ambiente doméstico. Vemos de perto Cayenne respirar, lamber as patas, dormir. Ouvimos seus latidos e ganidos.
Cayenne em um certo momento fita deliberadamente a câmera que registra sua intimidade doméstica, como que consciente da sua importância para as reflexões sobre espécies companheiras e a historicidade de suas coexistências “conosco”, sobre a humanidade como relação e não como algo inerente a corpos e a espécies. Rusten aparece como também um companheiro de vida que transcende a heteronormatividade, a família nuclear e a consanguinidade, entrelaçando pelas relações de parentesco ali vividas práticas e valores preciosos: compromisso, convivência, comensalidade, interesse mútuo, afeto, cuidado e alegria.
Ao eleger como cenário a casa de Haraway, Fabrizio Terranova acaba por mostrar o quão especial é seu ambiente e o arranjo doméstico-familiar que ele suporta. Essa percepção contribui para valorizar a coerência e honestidade daquilo que Haraway propõe com o conjunto de sua obra: pensar sobre feminismo e heteronormatividade a partir de sua própria experiência pessoal; localizar a tecnociência na relação com o colonialismo, o capitalismo e o patriarcado, pensando a sua própria condição de ser vivente e “consumidora” como algo que parte desse contexto; refletir sobre animais domésticos e coexistência assumindo seu comprometimento de vida com Cayenne, que agora envelhece e demanda uma série de cuidados, paciência e atenção. É disso, me parece, que ela fala quando defende que uma das tarefas mais importantes para o futuro é aprender a “fazer parente” (“make kin”, Cf. HARAWAY, 2016). Restituir uma rede de cuidados, afeto e respeito que o capitalismo, o individualismo e o modelo de família nuclear biológica e heteronormativa têm dilacerado.
As falas de Donna Haraway são entrecortadas por imagens que compõem o ambiente e a paisagem a partir da qual ela pensa, escreve e nos conta estórias: o céu, o sol, as árvores da floresta e as plantas cultivadas no jardim. O vento. Noites, a lua, estrelas, aviões. Sons de insetos noturnos, invisíveis na escuridão. Florestas, cores, cantos, ciclos de dias e noites. Terra, ar e água. Mas também imagens, frases, fotografias. Toda essa ambiência compõe a proposta da autora de pensar a partir das estórias, de pensar “contando estórias” (story telling). E sobretudo de aprendermos a contar outras estórias. Como uma saída imprescindível à sobrevivência no presente e no futuro desse nosso “planeta danificado”, em referência à expressão que dá nome à coletânea organizada por Anna Tsing e colaboradores (2017).
Ao lançar mão da tela verde, Terranova sobrepõe cenas e ambientes, explorando a dupla-imagem de Haraway: ao mesmo tempo em que conversa com o diretor, ela aparece ao fundo digitando em seu computador. Ou lendo, sentada numa cadeira do jardim. Fundo e figura estão em constante deslocamento, muitas vezes tão lento e sutil que talvez imperceptível aos espectadores concentrados na presença forte da autora em cena. Quando a parede parece submergir por detrás, ou a figura de uma água viva gigante começa a navegar ao seu lado, esbarrando em Haraway seus tentáculos, assistimos aos trânsitos dos dois planos, fundo e figura.
A aposta de Haraway, presente de maneira transversal em toda sua obra, e ressonante nesse exercício visual de desestabilizar o lugar, a paisagem, o fundo, produzindo movimentos que fundem, em uma só imagem, temporalidades diversas, é de que precisamos explorar as potências da ficção, da imaginação, da fabulação. É a proposta de explorar conexões parciais e as múltiplas possibilidades das “SFs” (speculative fabulations, string figures, science fictions, speculative feminisms, science facts, so far).
Precisamos pensar, diz, ressoando Virginia Woolf (1966), Vincianne Despret e Isabelle Stengers (2011). De uma perspectiva feminista anticapitalista, de alguém que está preocupada ao mesmo tempo com questões de desigualdade e equidade (que envolvem múltiplas e diversas formas de opressão e dominação), importa “quais pensamentos pensam pensamentos, quais estórias contam estórias” (HARAWAY, 2016, p. 39).
Recorrendo ao exercício de crítica feminista à ciência (DESPRET; STENGERS, 2011), que atualiza a efemeridade e apagamento da escrita de mulheres (RUSS, 1983), Haraway defende a importância da valorização da originalidade, do trabalho e autoria feminista. Segundo ela, precisamos dar especial valor e reconhecimento às autoras mulheres, que tendem a desaparecer como referências nas citações acadêmicas numa velocidade vertiginosa. Haraway faz uma crítica importante sobre o apagamento de trajetórias sobre a qual “precisamos pensar”.
É preciso, evidentemente, valorizar a originalidade e o trabalho que tende a ser obliterado, quando não (o que é pior, mas infelizmente não raro) “apropriado” sem os devidos créditos. Mas não caberia, também, pensar o quanto a lógica de reconhecimento (acadêmico, intelectual, político, ativista) repousa essencialmente sobre trajetórias e biografias individuais? Seria possível pensar em saídas a essa tendência (de invisibilidade e desvalorização dos trabalhos de mulheres) que superem a lógica do reconhecimento da autoria individual na direção de uma perspectiva feminista mais “coletivista”, e menos “produtivista” e “individualista”?
Dar representatividade, reconhecimento e valorização à originalidade das ideias é, indubitavelmente, fundamental para permitir que outras estórias sejam contadas, para que outros corpos e vozes tenham espaço e legitimidade. Mas reinventar a forma pelas quais as ideias circulam nas ciências contemporâneas (publicação-proprietária de textos), as formas de apropriação e capitalização das ideias (nas contabilidades da produção acadêmica, artigos e livros, editoras e periódicos, qualificações e fatores de impacto) não seria também uma forma de subverter as regras do jogo, e mudar as estórias que são contadas e quem pode contá-las?
Mudar as estórias que são contadas, “virar o disco” como se falava em português há um tempo atrás, superar as estórias que fazem crer que o capitalismo seria a única forma possível de vida social sobre a terra. Desenfeitiçar-se (PIGNARRE; STENGERS, 2005). Não só por que o capitalismo não é a única forma possível – pois muitas experiências humanas por séculos e territórios diversos encontraram outras formas de se organizar – mas por que não pode continuar sendo… essa insanidade destrutiva automática descontrolada, que colocou em risco nossa sobrevivência coletiva (com várias outras espécies de plantas e animais, seres vivos) no planeta.
É preciso imaginar outros futuros possíveis, proposta que ela traz desde o manifesto ciborgue ao sobrepor essa incômoda imagem-mito para o feminismo de esquerda do século XX, em lugar da deusa-mãe. Haraway é uma das autoras feministas brancas da virada do século que mais levou às últimas consequências o que se articula mais recentemente em torno da ideia de “lugar de fala” (RIBEIRO, 2017). Partindo do que aprendeu com as críticas ao feminismo pelas feministas negras e latinas nos Estados Unidos, ela colocou-se desde então no lugar de reconhecer e sempre evidenciar os privilégios que tornam audíveis suas falas e visíveis seus textos. Isso que ela caracteriza como “saberes localizados” (HARAWAY, 1995)[2] transborda a mera defesa de um conceito, e é, em seu trabalho e também nesse filme, seu ponto de partida.
Uma frase forte que expressa isso logo no início do filme aparece quando ela apresenta, entre demais “totens” que ocupam sua mesa (como um polvo de pelúcia, livros e um porta-retrato com a fotografia de seu pai), um cesto indígena Navajo. Haraway não “naturaliza” a presença do souvenir nativo em sua casa sem falar, de forma tocante pela sinceridade e autoconsciência, sobre ser uma “filha da conquista”: “eu não posso ‘não saber’ quem eu sou como mulher branca no oeste americano”, não posso não saber quem é Cayenne e por que sua raça de cães pastores foi trazida para esse lugar, e o que esse projeto colonial de ocupação ostensiva e genocídio representou para os povos nativos americanos.
O reconhecimento da “branquitude” e a autoconsciência dos custos político-ecológicos da sua existência são inspiradores, e ainda atuais para um filme e um livro que saíram no mesmo ano em que o Brexit foi aprovado, um ano antes de Trump ser eleito como Presidente dos Estados Unidos e dois anos antes de Bolsonaro ser eleito no Brasil. Todos esses, processos eleitorais que contaram com a mediação de robôs programados para divulgar notícias falsas e manipular emoções para o direcionamento dos votos. Movimentos decorrentes, entre outras coisas, da ruptura da oposição organismo-máquina, que ela anteviu com o manifesto ciborgue na década de 1980 (HARAWAY, 1991).
Esses acontecimentos recentes vão na direção da manutenção das estruturas de poder e do sufocamento dos movimentos sociais libertários e ambientais, entre outras e diversas bandeiras progressistas. Nesse contexto, o reconhecimento dos privilégios e o esforço na direção de uma redistribuição de recursos e oportunidades contrasta radicalmente com a reação fascista que se tornou monstruosamente evidente nos eleitores do mundo todo, potencializada pela reverberação de discursos de ódio em plataformas digitais. Com o desejo de morte (GARCIA DOS SANTOS, 2018).
Como Haraway sabe desde a guerra fria, quando escreveu o manifesto ciborgue, é preciso saber “quem se é”, de onde se fala, como é possível falar (e ser ouvida), para saber o que se pode, e o que importa, dizer! A honestidade de assumir esse lugar sempre, como ponto de partida, é fundamental neste momento em que temos, e teremos que manobrar a cobrança e expectativa de neutralidade e objetividade (nas ciências, sobretudo) e reinserir a ética e a política como princípios, pressupostos básicos para a produção de conhecimento e de tecnologia. Haraway defende, acertadamente a meu ver, que é preciso partir do pressuposto de que todo conhecimento é situado, e que precisamos urgentemente disputar narrativas. Contar outras estórias.
Seu trabalho mescla sacadas improváveis de crítica cultural (de cartuns e tirinhas publicadas em jornais, passando por publicações audiovisuais em formatos de curta-metragem e materiais de publicidade, e até ficção científica). Sua capacidade de conectar a crítica cultural a intuições, valores e processos socioeconômicos de nível macro, excludentes e destrutivos, foi sempre muito original e criativa. Em diversas passagens do filme essa sua capacidade singular apresenta-se de forma divertida e ao mesmo tempo leve e comovente.
Em um vídeo da década de 1980 sobre Koko, uma gorila que parecia apresentar autoconsciência e capacidade de comunicação verbal, a jovem Haraway – cercada por um cenário em estilo bricolagem, composto por desenhos e pinturas de animais selvagens, computadores, samambaias, um globo terrestre e um rapaz de sunga segurando um cartaz escrito “Koko” – parte um bolo e come um pedaço, lambendo os dedos lambuzados de calda. A Haraway madura ri da cena, nostálgica e condescendente com a sua tentativa performática de sensibilização coletiva e popular à complexidade da vida e da humanidade, e à importância da nossa responsabilidade no processo de tomada de consciência de quem somos e o que podemos, e devemos, fazer para continuar tornando possível a re–existência, nossa e de tantas outras espécies, na Terra.
Hoje sua proposta segue com experimentações “SF” como as estórias das Camilles, cuja narração encerra o filme. Feminismo especulativo, ficção científica, fatos científicos, cama de gatos e fabulação especulativa. Imaginar outros “fins de mundo” possíveis, outras formas de resgatar a vida e coexistir em um planeta danificado. Aprender a viver junto, e a deixar viver.
Termino, comentando a primeira cena do documentário, como um spoiler-convite para que o assistam. Haraway conta sobre sua impressão de estranhamento ao falar aos estudantes de Princeton, uma das principais universidades estadunidenses. Algo a incomodava até que ela se deu conta de que eram os dentes, alinhados, brancos, perfeitos, de todos os estudantes que a ouviam. Essa percepção a levou a pesquisar a história da ortodontia. Sua pergunta: como um ortodontista sabe quando parar? O que conta como uma “mordida” ideal?
Isso a levara à interessante descoberta de que os modelos para o ângulo perfeito da mordida, parâmetro para a atuação desses profissionais aos quais aparentemente todos aqueles estudantes de elite haviam recorrido, não vinham de nenhuma espécie viva no planeta, mas de estátuas de deuses gregos! A gargalhada com que encerra esta primeira, de muitas, estórias que se seguem no documentário é representativa da sua consciência desconcertante da loucura que é esse projeto de civilização ocidental do qual somos todos, pessoas, mulheres, animais, plantas, planeta, reféns. Fabular, rir e fazer rir, difícil tarefa em tempos tão sombrios. Mas precisamos conseguir rir dos absurdos, expor e desmontar contradições, contando outras, e melhores, estórias de sobrevivência, paz e afeto.
Bibliografia
DESPRET, Vincianne; STENGERS, Isabelle. Les faiseuses d’histoires. Que font les femmes à la pensée? Les empêcheurs de penser em rond. Paris: La découverte, 2011.
GARCIA DOS SANTOS, Laymert. Viva a morte! Pandemia. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
HARAWAY, Donna. Primate Visions: Gender, Race, and Nature in the World of Modern Science. New York: Routledge, 1989.
_______. A cyborg manifesto: science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century. In: _______. Simians, cyborgs and women. The reinvention of nature. London: Free Association Books Ltd., 1991 [1985], p. 149-181.
_______. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995.
_______. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.
PIGNARRE, Philippe; STENGERS, Isabelle. La sorcellerie capitaliste: pratiques de désenvoûtement. Paris: La Découverte, 2005.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento/Justificando, 2017.
RUSS, Joanna. How to suppress women’s writing. Austin: University of Texas Press, 1983.
TSING, Anna et. al. (ed.) Arts of Living on a Damaged Planet: Monsters and Ghosts. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 2017.
WOOLF, Virginia. Three Guineas. New York: Harvest, 1966.
Recebido em: 28/02/2019
Aceito em: 28/03/2019
[1] Antropóloga, Pesquisadora do Labjor/Unicamp. E-mail: dtmanica@unicamp.br.
[2] Tradução dada em português para a expressão “situated knowledges”.
Contar outras estórias
Donna Haraway: Story telling for earthly survival. Roteiro e Direção: Fabrizio Terranova. Bélgica, França, Espanha, 2016. HD (77 min), son., color.
MANICA, Daniela Tonelli. Contar outras estórias. ClimaCom – Fabulações Miceliais [online] [online], , Campinas, ano 6, n.14, abr. 2019. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=10908