“Meu uso não é insignificante” – água e desigualdade | Diana Zatz

Nesta reportagem, o termo técnico “uso insignificante de água” ganha novas camadas quando confrontada com a vida de comunidades tradicionais e os questionamentos de pesquisadores do Observatório Nacional de Segurança Hídrica. Entre conceitos técnicos, disputas territoriais e tecnologias sociais, surge a pergunta: Segurança Hídrica para quem?

Por | Diana Zatz

Editora | Susana Dias

 

 

Uso insignificante” de água é uma expressão técnica usada na gestão das águas para definir usuários que não consomem grandes volumes, muito diferente da irrigação, de uma indústria ou de uma cidade inteira. Na prática, o termo se aplica ao uso das águas por parte dos ribeirinhos, indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais que são dispensados de solicitar outorga de uso e muitas vezes seu consumo nem sequer é contabilizado na Política Nacional de Segurança Hídrica.

“Meu uso não é insignificante” – disse um ribeirinho, representante do setor de navegação do Rio São Francisco, durante uma reunião do Comitê da Bacia. O episódio relatado por Yvonilde Medeiros, coordenadora da Unidade Científica de Segurança Hídrica e Desigualdade Social do Observatório Nacional de Segurança Hídrica e Gestão Adaptativa (INCT ONSEAdapta), foi um marco: “A partir de então, ninguém mais falava em uso insignificante”. Tentou-se adotar outros termos, como “uso de pouca expressão”, mas o incômodo permaneceu. “Todo mundo que vivenciou essa experiência tem um certo constrangimento em falar em uso insignificante, e é um constrangimento mesmo. Nós não enxergamos os pequenos usuários, e principalmente, as comunidades tradicionais são invisibilidados”, afirma.

Yvonilde atua há muitos anos no Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, um dos mais ativos e estruturados do país. Segundo ela, o processo da transposição do rio foi um momento de debates tão intensos que acabou impulsionando um avanço político e técnico importante dentro do comitê que hoje é uma referência nacional em gestão participativa das águas, com a presença de povos indígenas e quilombolas, inclusive em cargos de direção.

 

Segurança Hídrica e Desigualdade Social

“Quando falamos de segurança hídrica, a pergunta é: segurança para quem?”, provoca Ângela Damasceno, socióloga e pesquisadora de pós-doutorado do grupo coordenado por Yvonilde no ONSEAdapta. O desafio do grupo, na academia, é justamente tecer essa relação ainda incipiente, entre Segurança Hídrica e Desigualdade Social, buscando aproximar o debate técnico de realidades invisíveis nas estatísticas oficiais. 

“Quando se fala em segurança hídrica, pensa-se logo em construir mais: mais sistemas de abastecimento, mais poços, mais barramentos. É uma lógica de aumento de oferta, e não de justiça no acesso”, explica Clélia Nobre, engenheira sanitarista e ambiental, também pós-doutoranda no grupo. “Estamos agora buscando formas de agregar nesse debate a desigualdade social, pensando naquelas comunidades que não têm acesso à água de forma igualitária. São comunidades que têm uma cultura própria no uso da água e que historicamente foram afastadas dos centros urbanos e das políticas públicas.” completa.

Atualmente, a equipe investiga a relação entre desigualdade social e segurança hídrica por meio de um estudo bibliométrico, que analisa como esses conceitos aparecem na literatura científica: “Encontramos poucos trabalhos que tratam diretamente dessa relação”, comenta Ângela. Segundo ela, tanto o conceito de segurança hídrica quanto o de desigualdade social têm trajetórias próprias e complexas, que se transformam conforme o contexto histórico e político. “Em outros momentos, ao invés de Segurança Hídrica falava-se em escassez hídrica, depois em gestão participativa das águas”. 

Já o conceito de desigualdade social, amplamente debatido nas Ciências Sociais, ajuda a compreender as raízes da discussão: “Se recorrermos aos estudos de Karl Marx, quando aborda a Revolução Industrial, e distingue os que detêm os meios de produção e os que dispõem apenas da sua força de trabalho, em classes sociais. Muita coisa mudou, mas a lógica permanece a mesma, a lógica de uma apropriação não só da força de trabalho, mas também dos elementos da natureza, tomados como insumos.”

Ângela reforça que é preciso pensar o direito à água para além do consumo humano, incluindo o acesso necessário para produção e garantia da permanência das comunidades em seus territórios. Ou seja, quando o acesso à água não é assegurado, ou quando ela se torna escassa, comunidades muitas vezes sem regularização fundiária, são obrigadas a deixar suas terras, rompendo laços sociais, culturais e econômicos que sustentam seu modo de vida. 

A contaminação, o assoreamento e as alterações no curso ou na dinâmica dos corpos d’água vulnerabilizam comunidades, submetendo-as a programas sociais emergenciais. Wiran Ferreira, representante do pajé Adalberto, e membro da comunidade Tingui-Botó em Alagoas, conta que, embora sua comunidade seja abastecida com água potável canalizada e gratuita, desde a seca de 2012, o Rio Boaci – que corta o território -, passou a secar e mesmo desaparecer durante os meses de outubro a março, comprometendo práticas culturais e econômicas, como a pesca e rituais tradicionais:  “Então, uma das maiores preocupações da gente agora é tentar recuperar esse rio. E se um dia cortarem a água ou passarem a cobrar?”, questiona.

Esses conflitos, muitas vezes não destacados ou devidamente identificados, revelam a dificuldade de acesso à água enfrentada por populações tradicionais e rurais, invisíveis porque não estão mapeadas, descritas ou com seus impactos mensurados. “Esses litígios, frequentemente arbitrados pelo Ministério Público ou por outras instâncias de controle social, seguem sem definição, enquanto a perspectiva técnica permanece restrita à análise da disponibilidade e da demanda hídrica com base nas outorgas emitidas”, explica Ângela.

O grupo iniciou a pesquisa com foco em comunidades tradicionais – quilombolas, ribeirinhos, povos indígenas, comunidades de fundo e fecho de pasto -, que mantêm práticas próprias de manejo e uso da água, mas as pesquisadoras reconheceram que as desigualdades hídricas vão além, alcançando também as periferias urbanas e as populações que vivem à margem dos sistemas formais de abastecimento e saneamento.

 

Tecnologias Sociais e Alternativas

Para Ronaldo Mendes, professor do Núcleo de Meio Ambiente (NUMA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e coordenador da Unidade Científica de Tecnologias Sociais e Alternativas do ONSEAdapta, as ciências e engenharias precisam sair da lógica de publicar artigos e buscar resultados para o mercado, e se voltar para a efetividade social. 

Na realidade amazônica onde atua, apesar da imensa disponibilidade de água, o saneamento básico é bastante precário, com alguns dos piores indicadores do Brasil. Muitas comunidades ribeirinhas não têm acesso seguro à água potável, situação que Ronaldo define como ausência de Segurança Hídrica Primária. 

Acontece que, embora os rios amazônicos sejam imensos, a água fluvial não é potável sem tratamento adequado. Contém microrganismos, sedimentos e frequentemente é contaminada por agrotóxicos, resíduos do desmatamento e mercúrio proveniente do garimpo ilegal. Em rios próximos ao litoral, como os que banham Belém, o efeito das marés torna a água salobra em alguns períodos do ano, deixando uma possível potabilização ainda mais complexa. Ou seja, em muitos casos, captar e tratar as águas dos rios é um processo caro, tecnicamente difícil e, sobretudo, insustentável no longo prazo, ainda mais em uma região com tantas e tão diversas comunidades espalhadas pelo território, muitas delas de difícil acesso. 

Essa insegurança hídrica primária, segundo o pesquisador, não pode ser enfrentada apenas com grandes obras ou soluções tecnológicas importadas de outros contextos. “Não é só instalar uma estação de tratamento ou perfurar um poço, até porque essas estruturas precisam de operação e manutenção”. Para ele, as soluções precisam ser simples, apropriadas e sustentáveis, tanto do ponto de vista técnico quanto social. Para isso, “compreender o ambiente social, é tão importante quanto o estudo da profundidade do aquífero, dos equipamentos para perfurar o poço, ou da energia elétrica necessária”, explica Ronaldo. 

Uma das tecnologias sociais em que o grupo tem apostado para solucionar a questão hídrica na região é o aproveitamento da água da chuva, uma solução de baixo custo e grande potencial devido à abundância dos regimes de chuva. Quando se trata de uma tecnologia social, o foco não está no artefato em si – a cisterna, a caixa d’água ou o filtro -, mas nas relações sociais que tornam possível o uso e a continuidade dessas soluções. Este é o tema da tese de Marcos Vinícius Quintairos, orientada por Mendes. A pesquisa, buscou compreender como as interações entre os recursos hídricos, os sistemas de governança e os atores sociais influenciam o desempenho social do Programa Cisternas em diferentes contextos sociológicos da Amazônia Paraense. Quintairos identificou que a efetividade das tecnologias sociais de captação de água da chuva depende menos dos aspectos técnicos e mais das dinâmicas comunitárias, da participação social e da capacidade de governança local. 

Ronaldo enfatiza a importância de envolver as pessoas desde o início dos projetos, entender as necessidades e vontades das comunidades e não chegar impondo uma solução: “A segurança hídrica é também uma questão de confiança. Quando a comunidade entende o sistema, acredita nele e participa da sua gestão, o resultado é duradouro”, afirma. Segundo Mendes, ele e seus colegas do NUMA trabalham a partir de uma perspectiva complexa e engajada, que envolve transformar o conhecimento científico em proposições concretas: “Nós não queremos produzir apenas livros, artigos ou capítulos de livro. Queremos desenvolver estudos que tenham como objetivo principal a proposição de soluções e instrumentos práticos: diagnósticos, projetos de lei, planos de bacia”, afirma.

Para Ângela Damasceno, “Adaptar é diferente de mitigar. É mudar posicionamentos, criar alternativas, trazer um teor cultural para a mudança do modo de fazer”. Identificar e contemplar captações de usos considerados ‘não significativos’ precisa se tornar prioridade, não apenas para medir volumes, mas para ressignificar o próprio termo. “Precisamos perceber onde essas comunidades estão, como o acesso à água vem sendo assegurado e de que maneira podemos renomear esse tipo de uso, para que, de fato, revele uma preocupação que as inclua.”



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[1] INCT Observatório Nacional de Segurança Hídrica. Email: dianazatz@gmail.com

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