Territórios e Geopoética
Paola Zordan[1]
Todos pertencem à Terra,
são manifestações da sua cólera,
de seu transe[2]
Raios fulminam uma torre. A Terra treme, seus abalos fazem tudo despencar. Uma construção vai abaixo, desmorona. Um diagrama maquínico se desmancha. Esse encontro com o inesperado, imprevisto, obra de motivos obscuros e inexplicáveis, é o caos. Caos não é o nada, um estado sem consciência, anterior ao Ser, desordenado, mas o devir imanente à matéria e à vida, inconsciente e louco. Caos é multiplicidade, lance de dados, frêmito molecular intensivo, univocidade de todos os fluxos que passam na matéria. Movimentos de elétrons, célula que se divide, ovo que rompe, batida da asa da borboleta, pedra atirada na água: mutabilidade imperscrutável do tempo que a cada instante desborda e se infiltra nos corpos.
O corpo é o ponto zero da experiência, a mordida da duração, devoração molecular na qual o caos e o plano se misturam, um afectando o outro e vice-versa. Em suas idas, vindas e voltas, entradas e saídas de agenciamentos, uma imagem de plano, “gigantesco tear” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 55) se cria. É o plano de imanência, indiscernível do plano movente da experiência, extensão da matéria junto a qual o corpo percebe. A percepção acontece nos sucessivos deslocamentos e mudanças de pontos de vista, os quais estão implicados em certas disposições de imagens. Uma vida, uma paisagem, rostos: imagens do que experimentamos, matérias de pensamento, matéria da criação. Mas, será que só criamos com imagens? É possível criar um pensamento sem imagens, como tantas vezes Deleuze propõe? Como exprimir a experiência sem as imagens, sem essa derme pela qual o pensamento faz corpo com o mundo? Se apenas na pele das coisas se dá o jogo pictórico, háptico, por meio do qual o pensamento experimenta o caos, potência caósmica da matéria, por que é tão difícil pensar fora do visível e do enunciável que compõem as imagens?
Pensar sem imagens, mais do que um encontro com o fora, não-enunciável, não-visível, o impensado de todo pensamento, pressupõe encarar o caos, as incertezas de sua atmosfera e seus fluxos tempestuosos. Um pensamento sem imagens implica pensar intensivamente e mirar um turbilhão. Mesmo assim, o caos ganha consistência nas formas de pensamento que recortam as variabilidades caóticas, variedades, variações e variáveis junto às quais se criam as caóides da arte, da filosofia e da ciência. Máquinas de corte que não se separaram do caos, as caóides traçam um plano secante de referência, de re-encadeamento de conceitos e de sensações que constituem o Caosmos.
Jordi Terré (1994), ao tratar os clichês da cultura midiatizada sob uma perspectiva deleuziana, lembra que precisamos de reconhecimento e familiaridade, de um pouco de ordem para nos proteger do caos. É a necessidade de proteção que nos afasta de seu “rosto pavoroso e sinistro” a ponto de sacrificarmos as potências caóticas criativas que a vida oferece (TERRÉ, 1994, p. 43). Uma aliança paradoxal com o caótico é a linha de fuga que Terré aponta para sair dos estados de clichê. Essa necessidade é afirmada por uma das máximas de Zaratustra, a grande “fórmula do jogo” (DELEUZE, 1976, p. 25): “é preciso ter caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante” (Idem, p. 25). Poeira do cosmos, dourada estrela dançarina, brinquedo de deus menino: belas imagens de Nietzsche e Deleuze para o devir criador da vida e sua potência ígnea. “Constelação saída do lance de dados” (DELEUZE, 1976, p. 25) é o jogo dionisíaco onde o deus é dilacerado, cozido, prova o caos e faz seu monstruoso casamento com o fora.
Como sair do tópico, como ascender a uma percepção, a uma experiência não codificada, sem desmoronar-se em uma regressão catastrófica do indiferenciado? E, como desembaraçar-se da opinião […], da prova escolar do saber, do erro e do reconhecimento, tudo isso sem desmoronar-se pelo declive dissoluto do caos mental? Como alcançar, enfim, o pensar, esse ponto em que o pensamento afirma a vida e a vida ativa o pensamento, cópula do leão e da pomba, pássaro de fogo? (TERRÉ, 1994, p. 44).
Se o pensamento só acontece no encontro com seu lado de fora, procede do caos, não é sem perigos que se ultrapassa a famosa “linha feiticeira”, descrita por Deleuze (1988) em seu livro sobre Foucault. Rasgar o firmamento e mergulhar no caos (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 260). Abrir fendas nos “guarda-chuvas e sombrinhas das opiniões”; rachar os dogmas que nos protegem da água da chuva e do ardor do sol. Somente fora das tramas de saber e poder, dos visíveis e enunciáveis, podemos transbordar a opinião corrente, experimentar o caos, criar um corpo sem órgãos aberto ao infinito, já que, afinal, o caos é “a condição imanente de toda a criação” (TERRÉ, 1994, p. 44). O confronto involuntário com o fora nos arrasta a um jogo incessante, no qual podemos tanto nos esconder nos clichês estratificados como encarar o espaço liso e demoníaco do que ainda não se formou. Um pensamento sem imagens é sempre in-formado, pressupõe um toque do caos virtual na matéria. Matéria sempre a se transformar, da qual o pensamento tira devires imperceptíveis e impessoais.
Enunciar a matéria, alquimizá-la, territorializá-la, imaginá-la, é desterritorializar a Terra. Colocar palavras nas coisas é criar imagens de pensamento, crivar o caos, enunciar o não-enunciável. Na imanência, pensamento e natureza são indiscerníveis, intrincados que estão na imagem oferecida pela experiência atual que se dispõe de acordo com os movimentos do virtual. O plano é mesmo a “imagem que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento…” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 53). Em sua ascendência e descendência, o plano retém o que a experiência pode reivindicar de direito, o que o pensamento seleciona. Imagem constituída do pensamento é “movimento infinito ou movimento do infinito”, também é “matéria do ser”, separada do cérebro (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 54). Todavia, essa imagem do plano de imanência não é necessariamente dogmática, e sim uma paisagem em devir. Paisagem como agenciamento entre matérias visíveis, sonoras, tácteis e abstratas, composição de sensações. Toda imagem mostra os territórios virtuais do pensamento que se atualizam na experiência, de cujo plano extenso são extraídas as perspectivas que povoam o plano intenso, virtual.
Esse plano é povoado por personagens conceituais, “verdadeiros agentes de enunciação” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 87) que constituem os “pontos de vista” (Idem, 1992, p. 99) e as condições internas do pensamento. Devir da própria filosofia, são entidades que manifestam territórios, desterritorializações e reterritorializações (Idem, 1992, p. 92), intervindo entre os traços do plano e o caos. Tiram determinações do caos das quais fazem “os traços diagramáticos” (Idem, 1992, p. 99) ao passo que lançam os dados do acaso, criando os traços intensivos que sobrevoam o plano de imanência. Para René Schérer, a construção de um conceito abarca “uma multiplicidade de figuras históricas, mitológicas, literárias, estéticas. Em cada caso, designa um tipo de relação singular que inclui graus, intensidades” (SCHÉRER, 1994, p. 37). Ao formar blocos de sensações, os personagens conceituais confundem-se com as figuras estéticas da caóide da arte, mesmo quando não deixam de povoar o plano de imanência filosófico. Vagabundos que mudam de contorno, os conceitos deslocam-se brincando de perceptos, viram híbridos que povoam uma caóide esquizo, o entre-plano onde arte e filosofia se misturam.
Os deuses greco-romanos clássicos são notáveis personagens/figuras criados nesse plano de fronteiras borradas, onde o pensamento é obra de arte. Elementos de sínteses disjuntivas, os deuses não representam nada, apenas expressam as forças da vida e as potências das artes. Combinações estranhas, os deuses ultrapassam os temas que encarnam para elevá-los à enésima potência do pensamento. São Imagens, Númens que se espalham pela Terra, personificando seus montes, rios, bosques, penhascos, mares, campos, lagos, grutas, tempestades. Junito de Souza Brandão observa o caráter migratório das divindades, composições de povos que se cruzam e cujos deuses se fundem “em elementos heterogêneos e, às vezes, contraditórios” (BRANDÃO, 2002, p. 73). Entrelaçadas com a civilização, formaram sincretismos complexos, assumiram as mais diversas formas e se apoderaram de quase todas as coisas inventadas no mundo.
Incógnitas do problema (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 106) tais figuras se situam nas linhas de fuga por onde passam forças diabólicas. Tais forças são rajadas e abalos deleuzianos que impelem a pensar os desconfortos e as delícias do inapreensível, da impermanência e do transitório que permeiam os territórios. Como personagens limítrofes, problemáticos, criam imagens que interiorizam o lado de fora e todas as forças ali relacionadas. Nessa movimentação, essas figuras, escolhidas pelo alto grau de partículas selvagens que possuem, produzem miscigenações entre o plano e o caos, misturas que desordenam reinos e confundem os territórios.
O primeiro personagem conceitual misturado a uma figura estética é Geia, a Terra[3], também chamada de Gaia, a engendradora de monstros, nascida logo após o Caos[4] primordial. Terra, que Deleuze e Guattari chamam “a desterritorializada”; o planeta Gaia, que os movimentos “verdes” e pacifistas, em defesa da preservação dos ecossistemas naturais, redimensionam a um só corpo. Grande Mãe primordial, o corpo de Geia, crosta terrestre habitável que se confunde com o próprio plano, estratificação da imanência, é permeada pelo caos ao mesmo tempo em que dele se distingue. Copuladora, não somente esposa Urano, a abóbada celeste, como também gera filhos sozinha: é a mãe de seres cheios de cabeças e de uma profusão vertiginosa de membros, os Hecatônquiros; dos gigantes Cíclopes de um olho só; dos Titãs que são os deuses da natureza em seu estado selvagem; da serpente Equidna; do dragão Píton; das vingadoras e furiosas Erínias, surgidas das gotas do sangue derramado na mutilação de Urano, ato brutal da foice de Cronos/Saturno incitado por Geia. Sempre ao lado dos que estão sem o poder, une-se ao Tártaro, o mundo inferior, para derrotar a ascensão dos deuses olímpicos, encabeçados por seu neto Zeus/Júpiter, o qual protegeu para derrubar o poder de Saturno, seu filho. Nas lutas pelo domínio de seu corpo, todas as gerações dos filhos de Geia estavam destinadas a devorar umas às outras e a vencer e exilar a força devorada pela obtenção do poder.
O último predador foi Tífon, gigantesco monstro concebido no Tártaro como mais uma das investidas de Geia contra o estabelecimento do poder. Tífon, cujas mil cabeças tocavam as estrelas, excedia em tamanho a todos os seres criados. De seus olhos saíam labaredas, seus braços abertos alcançavam os confins do Oriente e do Ocidente, enquanto seus pés eram infatigáveis. O Filhos de Tífon eram Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a entrada do Hades, o reino inferior, o dragão de cem cabeças Ládon, e a Quimera, animal híbrido que “soltava fogo pelas ventas” (GUIMARÃES, 1995, p. 269). O nome do monstro, também conhecido como Tifeu ou Tifão, vem de “redemoinho” (LURKER, 1993, p. 203). tufão, diz das forças prodigiosas que abalam a Terra. Essa irrupção infernal que faz todos os deuses fugirem disfarçados de animais é enfrentada pelo celeste Zeus, que consegue ferir o monstro com uma lança. Resistente aos raios lançados por Zeus, Tífon toma-lhe a lança e arranca seus tendões. Colocados sob a guarda do dragão Delfínia, os tendões de Zeus são recuperados por Hermes e Pã. Depois de curado e de ter renovado suas forças, Zeus tenta fulminar Tífon com uma chuva indescritível de raios. O monstro sangra, atirando montanhas e mais montanhas contra Zeus, que as rebate de volta até conseguir esmagar Tífon com um monte.
Sob dimensões reduzidas, apresentando outras máscaras e variando as armas, o motivo da luta entre Águia, animal consagrado a Zeus, pássaro que atinge as maiores alturas do céu e Dragão, animal telúrico expelido pelas entranhas da terra, se repete ao infinito: Apolo e Píton; Hércules e a Hidra; Perseu e a Górgona; Belerofonte e a Quimera; Teseu e o Minotauro. Esse eterno combate de forças opostas é reterritorializado pelo cristianismo, com a lenda de São Jorge e com a função de São Miguel, Príncipe das Milícias Celestes, que garante a vitória transcendente do Bem e a subjugação do Mal. O que está em jogo são os contrastes entre a civilidade, criada com o domínio técnico da pedra e do metal, e a selvageria da natureza: o dragão feroz é ferido com a espada, repelido pela ponta da lança, expulso do Paraíso e obrigado a se exilar nos confins do mundo. Trata-se de uma narrativa, cujo desfecho imprescindível é mostrar o Vencedor e que, na maior parte das vezes, vira uma representação moral dos valores dominantes. Domar e subterrar a barbárie é o desenlace clichê desse mito do Grande Embate, que serve de alimento para a produção global de entretenimento e corre pelo mundo em várias versões.
O mito greco-romano da luta de Zeus e Tífon talvez seja a mais cataclísmica de todas as versões e interessa devido à dimensão amoral expandida pelo espírito pagão que a engendrou. Sua imagem mostra a natureza rebelde dos fluxos da Terra chocando-se contra a civilização que tenta controlá-los. Afirma o estado de combate travado na superfície, a permanente tensão entre os eflúvios secretos de Geia, matriz de todos abalos sísmicos, intempéries, cataclismos, útero canibal que gerou toda a miséria da carne, catacumba de si mesma e o poderio luminoso do Olimpo, governado por Zeus, “o primeiro, epônimo, fundador” (SCHÉRER, 1994, p. 37). Deus Soberano, o Pai Todo-poderoso, Senhor do Céu, é aquele que repartiu o poder com seus irmãos, Poseidon/Netuno, que ficou encarregado do mar e Hades/Plutão, que ganhou o poder dos Reinos Abissais[5]. A Zeus coube o domínio dos Céus e todo o poder sobre a Terra. Irmãos e filhos de Zeus, os deuses olimpianos possuem armas e artes inerentes a práticas da civilização[6].
Tífon, o pior dos flagelos, também aparece como filho de Hera, esposa traída de Zeus, Senhor do Raio e do Trovão. Perante a fúria de Hera, por Zeus ter dado à luz sozinho, Tífon foi criado para enfrentar o poder de um deus que pariu pela cabeça. A única divindade que não se transforma em animal e combate o monstro ao lado de Zeus, Atena, nascida de sua cabeça arrebentada, a deusa virgem de armadura, elmo, escudo e espada, exímia tecelã, detentora da tecnologia, inventora do carro, estrategista, protetora de rebanhos, é a obreira que protege a cidade e aconselha em nome da paz. Filha da Prudência, também é a deusa da Razão. Seu coração é protegido pela cabeça petrificadora da Medusa, de modo que nenhuma emoção atrapalha os julgamentos e os métodos de discernimento que se põe a aplicar. Efígie da morte, seu peito é o rosto feito de buracos-negros estancando o devir. Personagem conceitual da vontade de verdade, soberana do plano de consistência da cultura ocidental “esclarecida”, as forças dessa deusa obliteraram quase todas as outras. Como Sofia, a sabedoria, foi incorporada aos cultos gnósticos no alvorecer do cristianismo, o qual, já instituído, passa a cultuar forças parecidas por meio da imagem de Santa Catarina de Alexandria, a protetora dos estudantes. A coruja, um de seus atributos, tornou-se emblema estereotipado da Filosofia e, posteriormente, da Educação.
Ao invés da multiplicidade de forças geopoéticas que compõem a imagem de figuras imanentes à natureza e às atividades dos homens, foi se sobrepondo uma Ideia Transcendente. Ergue-se, então, um Deus único, molar. Deus de valores abstratos: Verdade, Sabedoria, Conhecimento, Beleza, Justiça, Misericórdia, Glória, Vitória, todas emanadas da Árvore da Vida[7] e expressas por livros sagrados feitos para serem incontestáveis, como a Torá, a Bíblia e depois o Alcorão. As antigas divindades, forças da natureza, das artes e dos ofícios foram tomadas como grandes mentiras, falácias idólatras de um povo que desconheceu a verdadeira Lei de Deus. E, embora essa Lei tenha sido tecida junto ao plano de consistência greco-latino, cujas divindades operavam como personagens conceituais e figuras estéticas enredadas na realidade psicossocial, a cultura cristã reduz os deuses clássicos a temas alegóricos que ornam os salões da Idade Moderna. Acabam ligados às práticas libertinas e passatempos aristocráticos, aparecendo como firulas da erudição. Viram enfeites retóricos que afirmam a cultura clássica “esclarecida” contra os misticismos populares que perduram junto ao poder eclesiástico. As entidades greco-romanas povoam o discurso dos filósofos e dos homens de todas as letras, seus nomes permanecem nas classificações de várias ciências e suas lendas inspiram a sintomatologia médica e psiquiátrica.
Décadas antes de declarar-se discípulo de Dioniso, antes de apregoar a morte de Deus, Nietzsche, ainda professor de filologia clássica, disse que os homens cultos, ocidentalizados e cunhados pelo espírito grego, são algemados pela ânsia socrática por Conhecimento (NIETZSCHE, 1992, p. 108, 109). Presos também estão os meios educativos, erigidos a serviço de uma cultura mais ou menos erudita, que se empenha no estabelecimento de verdades, na obtenção de graus, na distribuição de títulos, formação disciplinar e determinações curriculares, enfim, formas de educar que se prendem a traçados fixos. Máquinas binárias, esses traçados descrevem segmentos molares tomados como o caminho legítimo para se chegar ao saber, do qual Nietzsche fez questão de mostrar as limitações e impossibilidades. As ideias, o conhecimento, aeternae veritates, são tomados como uma instância superior, separada da Terra. Vista como matéria dominada, a Terra não passa de simulacro, cópia mal-feita do Projeto Divino, abstrato, que não cabe aos mortais inteiramente compreender. Quando o homem passa a cultivar valores abstratos, cujo teor platônico tende a descolar matéria e pensamento, rebaixando as efervescências caóticas dos fluxos da Terra, ele cria uma ilusão transcendente. Feita de abstrações metafísicas, que pouco interessam, tal ilusão é conhecimento morto que nada tem a ver com as fulgurações invisíveis da vida. Cheio dos limites e condicionamentos que os contratos sociais instituem e aparelham, esse Conhecimento, rosto embalsamado que perde aquele frêmito indizível da matéria, nos afasta da Geia e de seus filhos. As codificações operadas por essa imagem fomentam regras e leis que isolam as forças do devir, enfraquecendo as potências intrínsecas ao território. Esse isolamento afirma uma vontade ressentida que serve a uma cultura que necessita de servos e escravos, na qual os lugares são marcados com poucas chances de barganha.
Frente a essa cultura, Nietzsche procura as brechas abertas pela arte, fissuras pelas quais um outro tipo de conhecimento consegue passar. Ao reivindicar o contra-senso (DELEUZE, 1985, p. 56) e privilegiar a passagem dos fluxos “por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações contratuais, desmentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as” (Idem, p. 59), Nietzsche inaugura o que pode se chamar de filosofia underground. Não se trata apenas de desenterrar monstros exilados no Tártaro, mas de experimentar os fluxos desterritorializadores de Geia, libertar suas torrentes e aprender com a dimensão trágica da existência, expressa nos múltiplos elementos dançantes do sentido dionisíaco. Em O nascimento da tragédia, mostra como a cultura alexandrina só considerou o aspecto apolíneo dos gregos, descartando o “reverente assombro” com que os antigos veneravam a “onipotência sexual da natureza” (NIETZSCHE, 1992, p. 57). Movimentos orgiásticos presentes na vida de Geia mostram a necessidade titânica, bárbara, do horror antinatural da fusão e da desintegração. Esse niilismo de Nietzsche é uma negação ativa, vontade de potência nascida da má-consciência, que assume os riscos do caos como prova e estratégia de transvaloração. Afirmar o caos é entrar na dança animalesca, transmutar, mas sem fazer da dança uma cerimônia ou um ritual, mas levar o rugido do leão a virar gargalhada de menino. A dança, jogo dionisíaco, é brincadeira de crianças, cria um corpo que não pode ser recodificado pelos aparelhos de Estado. Trata-se de criar um corpo em que o devir “possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da terra, o do escrito…” (DELEUZE, 1985, p. 57).
O projeto genealógico nietzschiano conduz à invenção de novos modos de vida. Deleuze expõe o nomadismo do pensamento de Nietzsche, mostrando como esse é voltado para o exterior, para o fora, que atravessa a interioridade dos conceitos e conduz a um pensar itinerante que escapa às codificações. No meio de um palhaço e de um defunto, a “aurora da contra-cultura” (Idem, p. 57) transporta o pensamento para áreas obscuras, onde a arte revela o tragicômico, ao qual estão fadados todos os filhos e filhas da Terra. Em defesa de uma geopoética territorial, de inspiração esquizoanalítica, segue-se os fluxos da matéria e seus agenciamentos no interior de uma cultura cada vez mais ilógica, cria-se, então, uma filosofia que abandona o solo onde apodrecem os ideais do Iluminismo para afirmar a imanência transcendental da diferença e envolver a vida e suas criações no pensamento[8]. A tendência inumana dessa filosofia, composta por elementos animados e inanimados, corpóreos e incorporais, todos em constante ebulição, rompe com as ideias humanistas, contemplativas, reflexivas e comunicativas, que predominam na maior parte dos planos, filosóficos ou não.
Tal ruptura, assim como a expulsão das palavras de ordem do racionalismo, instauram um plano filosófico demoníaco, o qual Sandra Corazza chama Infersfera, “reservatório inesgotável de criação” (CORAZZA, 2002a, p. 20). Traçada com linhas de Nietzsche, Guattari e Deleuze, a Infersfera desestabiliza vertiginosamente as estruturas culturais assépticas, povoando territórios de personagens “emergentes dos abismos” que “fazem curto-circuito entre dois ou mais reinos” (Idem, p. 54) e movimentam conceitos vagos, confusos. “Fantásticos, absurdos”, os Infernais, aqueles que “queimam sem se consumir e renascem sempre” (Idem, p. 37), fazem “vinculações extravagantes” (Idem, p. 57) cuja complexidade expressa a alucinação infinita dos acontecimentos.
Contrariamente a Platão, que alegava não se encontrar a felicidade fazendo “doutas deduções” sobre criaturas inexplicáveis e lendárias, “hipocentauros, a quimera e uma multidão de górgonas e pégasos”[9] (PLATÃO, 1962, p. 195), é com imensa alegria que a geopoética faz desfilar um cortejo dionisíaco, afirmando sua natureza selvagem e seres de estranhas combinações. Colocar imagens monstruosas e animalescas na “berlinda” é recriar perceptos que sempre estiveram nos limites do educacional, bodes expiatórios que funcionaram em oposição ao que foi eleito pelo monoteísmo, pelos dogmas da ciência e pelo positivismo. Contudo, não se trata de reforçar caducos esquemas opositivos, mesmo que se explore os contrastes… Os opostos se misturam, confundem os limites, apresentam tendências que diferem e fazem oscilar termos que, a princípio, seriam contrários. Criam contornos indefinidos, técnicas de chiaroscuro[10] e efeitos de sfumato[11] que provocam percepções imprecisas, afirmando o lusco-fusco do dionisíaco e seu cortejo de monstruosidades, bandos de arteiros malditos e todas as suas esquisitices.
Pensamento que é “o sorriso sem focinho do gato de Chester”, personagem maluco de Lewis Carroll, “no lugar da velha coruja carrancuda” (LYOTARD, 1996, p. 46), a Filosofia da Diferença cria um plano educacional louco, feiticeiro e infantil, completamente esquizo, que se abre “para as línguas e falas proscritas” (CORAZZA, 2000, p. 101). Esse plano de consistência experimenta deuses antigos, fantasmas, vampiros, dragões e outras criaturas, para deixar que a vida seja invadida pelo sentido trágico, por acontecimentos inexplicáveis e, principalmente, pela magia, intensidade imperceptível das coisas que sempre escapa ao conhecimento. Espécie de xamanismo desterritorializado, a magia maquínica da diferença filosofa besteiras, seguindo o curso das artes e das trilhas deixadas pelas ciências ambulantes. Trata-se de um saber “menor,” disjuntivo, que a priori seria impossível de ser ensinado nas escolas, nas instituições de propagação do conhecimento formal e nos lugares ditos “pedagógicos” pelo status quo, como a “indústria cultural” e suas derivações capitalísticas.
O modelo Árvore do Conhecimento-Livro do Mundo-Grande Obra-Imagem de Deus, cuja multiplicidade e inconstância dos elementos poderiam fornecer mapas variados para ajudar nas inevitáveis travessias pelo caos, acaba como representação molar, Oficial, que limita a diferença. Ao produzir uma divisória estanque que relega o caos aos confins de suas estruturas, atribuindo-lhe o estatuto de um inconsciente inacessível e inatingível, esse modelo de pensamento passa a aprisionar a vida. Apartada, a vida cria ameaças cada vez mais obscuras, enquanto o Modelo de Mundo canaliza e controla o caos. Os fluxos desejantes são obrigatoriamente identificados, designados, reconhecidos e ajustados, coagulados numa imagem que serve como sua representação, produzida para ocupar o lugar do fluxo em si. Nesse tipo de vida, não há nenhuma força mágica. Magia se confunde com clichês de amor romântico, receitas para obtenção de orgasmos, fórmulas para se alcançar a felicidade, esoterismos dogmáticos, terapias alternativas e com todas as maravilhas da tecnologia, principalmente quando envolvem confortos e a facilidades de ordem privada e emoções vertiginosas do entretenimento partilhado globalmente[12].
Para Sylvio de Sousa Gadelha Costa (2000), a total indiferença, a depressão, a perda de capacidade de invenção, de criação, de encontrar-se com o mundo, são sintomas que expressam as impossibilidades de se captar “toda uma energética, todo um processo de produção molecular que anima o movimento que nos arrasta” (COSTA, 2000, p. 128). Quando pensa que “O anti-édipo e Alice sejam dois bons livros para dar início a uma esquizo-educação” (Idem, p. 130), este professor, assim como muitos outros no Brasil afora, procura a tessitura de um outro plano para o educacional:
Pensar uma educação esquizo é potencializar, dentro e fora da escola, modos de marcação, códigos, práticas, linguagens e experimentações, deslocamentos e deslizamentos que não coincidem com aqueles já instituídos nos planos psicopedagógico, educacional e social.(…) é fazer fugir e escoar, ativamente, tudo aquilo que não tem sua pulsação visível à superfície, por efeito do peso, da letargia e dos enquadramentos das políticas educacionais, das instituições de ensino, das tecnologias de gestão do comportamento, das teorias e métodos psicopedagógicos que cada vez mais organizam, codificam e impõe limites e identidades ao devir-criança e ao devir-professor (COSTA, 2000, p. 130, 131).
Há uma razão política para sempre se começar pensando o minoritário pela crítica ao molar, afinal, é mais fácil destruir aquilo que já se conhece do que criar alguma coisa junto ao que ainda não está formado, que ainda não tem imagem. O problema de se estudar as máquinas binárias é o de não sair de suas estruturas e continuar ignorando linhas de fuga, aquelas que fazem circuitos subterrâneos e sobrevoam o espaço estriado dos próprios conglomerados estatais. Uma micropolítica pede estudos sobre processos moleculares, sobre o caos, corpos sem órgãos e outros acontecimentos que fazem a vida vibrar. Isso implica uma pesquisa que busque a intensidade zero, o acontecimento pleno em que se começa a pensar, aprender e criar.
A maior parte das teorizações e das práticas educativas envolvem problemas em torno dos processos de recognição, de reprodução e de representação submetidas a noções do que seja aprender e pensar. A Educação pensa a criação sobre bases dialéticas, que veem o criar como uma passagem do nada ao ser, ideia cujas repercussões psicológicas e cognitivistas acabam por tomar a criação apenas como processo, como o resultado do que se fez em sala de aula ou qualquer outra coisa produzida nos espaços educacionais. Todos concordam que a criação é vital, não há plano ou intenção pedagógica que não faça suas apologias à criatividade. Mesmo assim, a “criatividade” é uma preocupação legada à Educação Infantil, ou socada no espaço restrito no qual se debate a Educação Artística e sua função dentro do currículo. Apesar de tudo, a criação é um dos mais notáveis problemas que atravessam o campo educacional. Sem criação não há pensamento e sem pensamento não existe vida, força criadora que é o interesse primeiro da educação.
A criação é explicada pelas mais díspares correntes teóricas, mas quase ninguém toca nas suas complicadas núpcias com o pensamento, no risco das provações exigidas para que se possa criar e nos perigos mortais que rondam suas implicações com o caos. Criar é cruzar uma linha, fazer magia, entrar na “Existência Estética Demoníaca” (CORAZZA & TADEU, 2003, p. 84), sem modelos, representações, posições previamente fixadas. Entrar no devir que é a própria vida, que devora os traços do plano e bebe do caos, que burla as imagens e faz joguete nas dobras do pensamento. De nômade distribuição, é o devir da geo-filosofia, a Filosofia de Geia, a Senhora da Cornucópia, deusa da abundância exuberante e das fúrias incontidas. Mesmo que a educação faça de Geia um grande laboratório, tome-a como campo no qual a cultura desenvolve todos os seus experimentos, é impossível conter a proliferação de seus devires. É a Terra, o que nos faz pensar (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p.117). Mesmo que em seu seio se afirmem crenças por meio de imagens, as imagens não passam de coagulações daquilo que foi provado e experimentado na superfície plena, abocanhado do corpo de Geia, absorção de algum devir. Então, por que parece tão difícil extrair devires de certas imagens?
Porque certas imagens parecem ser o juízo de Deus[13], égide petrificadora de Palas-Athena e sua implacável espada de discernimento. São imagens produzidas dentro de um sistema de regras, cujos contornos se estabelecem por contigüidade, encadeamento, ordenação, obedecendo à necessidade de haver acordo entre as coisas. Esse sistema procura as semelhanças, a causalidade, de modo que, uma vez dentro dele, percebe-se o presente em conformidade com as imagens do passado (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 259). Imagens que são ideias prontas, pensamentos já “dados”, estereótipos. Para Deleuze e Guattari (1992), esse tipo de sistema, “anti-caos objetivo” (Idem, p. 259) forma a pior das desgraças da humanidade, os clichês de opiniões. Calcadas no bom senso, as opiniões temem os fluxos caóticos imanentes ao próprio pensamento. Duras, estratificadas, formam imagens dogmáticas que são modelos de recognição. Embora possam parecer reconfortantes, familiares, transitáveis, tais imagens são as inimigas do pensamento e da criação, a ponto de só conseguirmos criar depois de esconjurá-las e exterminá-las. As caóides arte, ciência e filosofia investem contra as opiniões, traçam seu plano eliminando a doxa, o senso comum que teme a diferença e isola o caos, funcionando como verdadeiro guarda-chuva que protege das intempéries caóticas. Mesmo pensar, criar, só acontecem num embate corpo-a-corpo com o caos, numa dança que movimenta desejos e potencializa novos encontros de forças.
O problema é que a doxa, opinião que “retira da percepção uma qualidade abstrata e da afecção uma potência geral” (Idem, p. 189), evita as singularidades da experiência e a multiplicidade experimentada no devir. Acreditando nos proteger da morte, a opinião acaba por nos afastar da vida, do devir caótico da Terra, corpo de toda a criação[14]. Evitando a loucura oceânica do caos, a opinião é uma atividade mental que jamais cruza as fronteiras colocadas pelas imagens de pensamento e não se deixa tocar pelas ondas do oceano caótico. A forma-força-matéria que compõe as imagens não é o problema, os problemas surgem no modo pelo qual se experimenta uma imagem, naquilo que se faz com ela, com aquilo que dela se extrai. O problema é de método, pois envolve os procedimentos e os meios pelos quais o pensamento restitui uma interioridade para as forças exteriores que o atravessam.
Pensamento e criação são problemas estéticos implicados em composições, combinações, arranjos e encontros que dizem respeito a agenciamentos concretos e conceituais que não se separam do caos. Os perigos do caos não são poucos, seus fluxos podem ser fatais, entrar nele sem um mínimo de logística, sem estratégias, é enlouquecimento certo. Por isso, é preciso manejar a matéria caótica com cuidado, elaborar um estilo, um jeito de criar um corpo sem órgãos pleno, para que ele não se vitrifique, empedre, esvazie ou se dissolva completamente na sua ligação com o caos. Para a esquizoanálise, o estilo é política (DELEUZE,1985, p. 59) pois é a maneira de se conduzir na vida, de trabalhar junto com a Terra e produzir agenciamentos territoriais.
Aprender uma estilística para a vida plena é traçar uma poética para o plano educacional. Trata-se de pensar uma educação caósmica, plano monstruoso miscigenado e sincrético das três caóides dançando suas criações; conceitos, funções e perceptos que povoam o corpo de Geia, matéria divina onde tudo se engendra. Pensando a cultura como devir da natureza, essa educação responde à grande questão colocada por Guattari sobre a “maneira de viver daqui em diante sobre este planeta”(GUATTARI, 1990, p. 8). Sem separar a mecanosfera dos ecosssistemas, Guattari articula três registros ecológicos, o meio-ambiente, o socius e a psique na luta contra a deterioração dos modos de vida, a carência de arte presente nas misérias materiais e desgraças psíquicas que pairam sobre o planeta. Essa revolução, chamada por Guattari de ecosófica, opera por heterogênese. A heterogeneidade é um processo erótico, desejo aberto que “afronta o face-a-face vertiginoso com o Cosmos”(Idem, p. 54) num processo contínuo de re-singularização que reinventa relações “com o corpo, com o fantasma, com o tempo que passa e com os mistérios da vida e da morte”(Idem, p. 16). O mapa ecosófico de Guattari segue o projeto esquizoanalítico: cartografar Territórios existenciais para detectar e experimentar vetores potenciais que se abram à singularidade. Pensar uma pedagogia ecosófica implica o campo problemático, bio-cultural, constituído por práticas, filogenias, tecidos de signos, modos ontológicos e linhas virtuais que inventam universos de referência e modelos estereotipados de vida. Essa pedagogia procuraria as vias singulares, menores, como saída das absurdas monstruosidades que alimentam o mercado global, sua lógica de “produção pela produção” e o crescimento obsessivo que rege o Capitalismo Mundial Integrado (GUTTARI, 1998, p. 33).
Sob uma perspectiva ainda crítica, a mecanosfera é tomada como um campo de lutas, superfície na qual se “briga”(CORAZZA, 2001, p. 28) contra a molarização homogeneizadora. As estratégias de resistência resgatam as subculturas, as minorias, as margens, as populações do fora. É o que Sandra Corazza chamou artistagem ética, estética e política das práticas pedagógicas (Idem, p. 27-30), de modo que o professor, “artista”, é aquele que inventa, cria, “faz algo diferente com a sua docência”. É quando o professor se desprende dos traços diagramáticos e, ao invés de ensinar um estado de coisas sobre a sua matérias, passa a “artistar” a matéria (CORAZZA, 2002b, p. 07-16). Pensar a práxis educativa como arte, estilística, maneirismo, é estabelecer, no lugar de leis marciais e regras dicotômicas, relações éticas e estéticas com a Terra e suas ecologias, afirmando uma geopoética territorial.
Geia, bio-mecanosfera polidimensionada, é composto molecular que precisa ser considerado não como um organismo holístico, mas como corpo desorganizado a ser tomado em suas complexas variabilidades infinitesimais. Para aprender a magia dos signos que esse corpo emite é preciso seguir as linhas minoritárias, potencialmente criadoras, que experimentam as intensidades caósmicas da matéria. O aprendizado do caosmos, relação esquizo com o fora, traça um plano geopoético para o campo educacional. Educação que é a dança excêntrica, a liberação os impulsos indomáveis e disfuncionais do sentido dionisíaco, da força sensorial e da movimentação do pensamento, para a Terra, com a Terra e pela Terra.
Referências
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Recebido em: 1/06/2016
Aceito em: 1/06/2016
[1]Artista visual, professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, (UFRGS). Coordenadora dos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais da UFRGS. Líder do grupo de pesquisa ARCOE, Arte, Corpo e EnSigno (CNPq), articula o M.A.L.H. A., Movimento Apaixonando pela Liberação de Humores Artísticos.
[2] Frase nascida dentro de uma pesquisa que conjuga o pensamento de Deleuze com a obra cinematográfica de Glauber Rocha ( BENTES, 1996, p. 112).
[3] As figuras míticas da primeira geração teogônica, embora sejam de certa maneira “personificadas” pela narrativa, pois engendram filhos, conspiram e lutam, não podem ser consideradas deidades simplesmente antropomórficas. São forças da natureza que geralmente possuem localização física e geográfica. Além de Geia (terra), nessa tese aparece o Tártaro (um monte que oculta profundezas abissais), Aqueronte (rio tumultuoso que deságua numa fenda insondável), a Noite (céu escuro) e Urano (abóbada celeste). Assim como Iroko, a árvore do tempo dos iorubanos, são divindades-lugares, forças do tempo e do espaço cujas ações não são facilmente imagináveis.
[4] O Caos da Teogonia de Hesíodo personifica um estado primitivo, primordial, anterior a criação. É importante não confundi-lo com o conceito de caos da geo-filosofia.
[5] Reino dos mortos cujo nome é o mesmo do deus, Hades.
[6] Além de Zeus, o panteão olímpico era composto por deuses encarregados dos casamentos (Hera/Juno), da agricultura (Deméter/Ceres), da organização e economia doméstica (Héstia/Vesta), da metalurgia (Hefestos/Vulcano), da tecelagem e engenharia (Atena/Minerva), do comércio e comunicação (Hermes/Mercúrio), das Belas Artes, artes divinatórias e medicina (Apolo), das artes galantes e eróticas (Afrodite/Vênus), da música e do vinho (Dionísio/Baco). E ainda que os partos e a caça, (Ártemis/Diana) e a guerra (Ares/Marte) sejam acontecimentos anteriores à Era do Metal, também foram cultuados no panteão clássico.
[7] As palavras iniciadas com maiúsculas são os nomes das sephirot da árvore da vida cabalística. A Terra, em hebraico Malkuth, décima e última esfera, de cor marrom, situa-se na base inferior. A Lua, sua contraparte, nona esfera que a antecede e que também está abaixo de todas as outras é Yesod, chamada O Fundamento. Por meio dessa esfera é que contemplamos os atributos divinos que vibram em todas as outras. Somente por meio de reflexos, sob a luz enganadora da lua, pode-se vislumbrar o montante das forças do universo que emanam do Ain soph aur.
[8] Isto implica, para François Regnault, um pensamento que envolva “sensações, intuições, afetos, impressões, emoções, sentimentos, paixões, vitalidades, representações, virtualidades”, enfim, “todos os momentos do que chamamos vida, e que quando começamos a fazer filosofia, esperamos que sejam tratados por ela” (REGNAULT, 1996, p. 56).
[9] Embora nossa intenção não seja exatamente fazer deduções sobre a origem e a morfologia de tais seres, tampouco de procurar suas verossimilhanças com as espécies naturais, a perspectiva da diferença não se coaduna com a visão de que tratados sobre os monstros sejam perda de tempo.
[10] A palavra refere-se a um artifício pictórico desenvolvido no Renascimento para produzir efeitos de luz e sombra nos quadros a óleo. Em português corresponderia a claro-escuro.
[11] Técnica pictórica renascentista, que diz respeito à diluição dos contornos e uma sutil indefinição dos limites de uma forma. Um exemplo são os olhos da Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci. Em português poderia ser chamada de “esfumaçamento”.
[12] Quanto a este último ponto, cabe lembrar o estrondoso sucesso comercial dos produtos com temática “mágica” e fantástica, dentre os quais destaco Harry Potter e O senhor dos anéis.
[13] “Para acabar com o juízo de Deus” foi a emissão radiofônica de Antonin Artaud feita em 28 de novembro de 1947, cujo texto escatológico inspirou o conceito de corpo sem órgãos, CsO, criado por Deleuze e Guattari. Metaestrato libertador dos automatismos orgânicos, o CsO é a terra. O juízo de Deus aparece no platô 3 como um sistema de estratificação, compactador, do qual a terra se esquiva, afirmando suas linhas de fuga. No platô 6, o corpo sem órgãos aparece como campo de exercício do juízo, sofrendo o peso dos órgãos. Cf. DELEUZE & GUATTARI, 1995 (p. 55) e DELEUZE & GUATTARI, 1996 (p. 21). Para Artaud, conseguir um corpo sem órgãos permite “dançar às avessas como no delírio dos bailes populares e esse avesso será seu verdadeiro lugar “ (ARTAUD,1986, p. 162).
[14] Interessante observar que a “matéria deriva da mesma raiz que mãe”, Ma, que na antiga língua ariana também designa medir ou construir. (MACLAGAN. 1997, p. 41).
Territórios e Geopoética
RESUMO: O plano de imanência é uma linha abstrata que corta o caos em infinitos movimentos, criando imagens. Como criar um pensamento sem imagens se a mente precisa de imagens para pensar? Algumas imagens produzem mitos que dão corpos para os conceitos, expondo um perspectivismo que apresenta personagens conceituais mitológicos para mostrar a relação entre forças incontroláveis e crenças morais. Deuses e monstros gregos, forças e cataclismas, são figuras que demonstram os paradoxos do pensamento da diferença de Nietzsche e Deleuze. Guattari traz a heterogênese da matéria para afirmar o valor da Terra, Gaia ou Géia, para todo o tipo de existência, corpos e vidas ainda não formadas.
PALAVRAS-CHAVE: Gaia. Caosmose. Imagem.
Territories and Geopoetics
ABSTRACT: Immanence plan is a abstract line inside caos, where infinite movements are cut to make images. How to create a thought without images if mind needs images to think? Some images make myths that do subject for concepts, exposing a perspectivism for present mythological conceptual characters which to evince the uncontrolled forces in relationship with moral beliefs. Greek gods and monsters, forces and cataclysms are figures that demonstrate the paradoxes from diference thought by Nietzsche and Deleuze. Guattari introduces the matter’s heterogenesis to affirm the valour of Earth, Gaya or Gea, for all kind of beings, bodies and unformed life.
KEY-WORDS: Gaya. Chaosmosis. Image.