Sonhos guiam a comunidade Kaingang – entrevista com Lidiane Damasceno Cotui Ignesta

Nesta conversa, com Rayane Kaingang, a cacique e professora Lidiane Damasceno Cotui Ignesta manifesta a força do feminino e o cuidado com as culturas Kaingang e Krenak, nos lembrando da singularidade de cada modo de viver. No seu trabalho com os jovens, ela promove o diálogo entre os saberes ancestrais e o currículo do estado, além de ser a gestora do museu Akãm Oram, coordenadora da dança Krenak e mestra artesã.

Desenho de Rayane Barbosa Kaingang

ClimaCom – Rayane Barbosa*

Na minha época escolar, o contato

Nesta conversa, com Rayane Kaingang, a cacique e professora Lidiane Damasceno Cotui Ignesta manifesta a força do feminino e o cuidado com as culturas Kaingang e Krenak, nos lembrando da singularidade de cada modo de viver. No seu trabalho com os jovens, ela promove o diálogo entre os saberes ancestrais e o currículo do estado, além de ser a gestora do museu Akãm Oram, coordenadora da dança Krenak e mestra artesã.

Desenho de Rayane Barbosa Kaingang

ClimaCom – Rayane Barbosa*

Na minha época escolar, o contato com a educação territorizada se fortaleceu a partir de práticas pedagógicas. Através do preparo de artesanatos e de histórias contadas por professores e os mais velhos. Foi a partir desse movimento que aprendi a escutar e praticar um diálogo com as formigas, o beija-flor e o milho. A partir de uma educação voltada ao diálogo e respeito com os territórios. Você, como professora e liderança, poderia me dizer como traz as plantas, rios e toda a diversidade cultural a participar das suas aulas e também como esse contato é ativo fora do contexto escolar.

 

Lidiane Damasceno

Dentro da luta e concepção de educação escolar indígena, eu uso principalmente o eixo espiral “de que tudo passa por todos”. Independente de ser na disciplina de português, matemática, história ou geografia. Todos se falam e eu sempre digo que “os não indígenas sempre usam caixinhas”: caixinha de português, caixinha da matemática. E uma não pode se misturar com a outra. Nas minhas produções e atividades, sejam elas voltadas às ervas medicinais, à culinária, ao canto, ou à dança – usamos aqui sempre todos esses eixos de aprendizagem. Eu procuro levar as crianças para vivenciar e coletar, para fazer e experimentar, tanto dentro da sala de aula como fora dela, além da comunidade, porque as nossas crianças começam a ser formadas antes de entrarem dentro de uma sala de aula. A gente senta em roda de conversa, seja em grupo familiar, grupo comunitário ou em rodas de amigos, e sempre relata às crianças e adultos fatos e acontecimentos. Para que dentro desses fatos e acontecimentos eles tirem um modo de vivência ou formas de sair de uma situação que venha acontecer futuramente.

Sempre fazemos essa vivência de relato, porque o não indígena é muito de escrita, escrita e escrita. O ensino do indígena é mais oral. Ou seja, no aprendizado na prática. Nas minhas aulas, principalmente eu que trabalho com linguagens e códigos,eu sempre busco trazer as narrativas para dentro da sala de aula, e depois peço para que as crianças transcrevam, ou levo as crianças onde tem uma memória viva dentro da aldeia.

Conversar com os mais velhos ou passar por lugares que aconteceram alguns fatos em algumas situações, faz parte da memória viva da aldeia. Fazemos essa articulação com as crianças para que elas possam ouvir e depois vivenciar e estarem presentes no local da memória, onde aconteceu alguma história, algum fato, algum acontecimento. Estamos sempre junto delas. E a culinária também é uma maneira de ativação da memória. Não é só o modo de preparo do ingrediente que a criança vai aprender. A gente coloca ela para tirar o produto, a mandioca, para ir pescar o peixe e depois a gente limpa o peixe, torce a mandioca e, assim, a criança leva essa prática cultural para dentro de casa, ensinando ou revivendo as memórias que os mais velhos acabaram deixando adormecidas. É dessa forma que a gente faz as práticas na escola e com a comunidade. Vivemos dessa forma.

 

ClimaCom –  Rayane Barbosa

Na escola, atualmente vocês trabalham com cânticos Kaingang e Krenak, e na maioria das letras, eles remetem a presença de seres da natureza. Por exemplo, existem cânticos que falam muito do espírito dos rios. A partir desse movimento, como podemos perceber na prática cotidiana a presença desses seres? E como aprendemos a ouvi-los ao cantarmos? Como no cântico: “O nosso rio tem espírito, ele traz a proteção e ele dá alimento e tudo mais”. Como podemos ouvir esses seres e como fomos ensinadas a ouvir? Eu aprendi a ouvir escutando os saberes dos mais velhos. Mas, como ensinar a nossas crianças hoje com a globalização, o mundo digital, em que nossas crianças estão conectadas a todo momento com propagação de vídeos relacionados à inteligência artificial etc.. Como valorizar e preservar esse espírito vivo dentro da vivência escolar e também dentro da comunidade para que não se torne algo banalizado? Às vezes fazemos um cântico que evoca os espíritos protetores, mas as crianças não acreditam mais nisso, acham que é tudo mentira. Hoje está se tornando mais difícil ter essa escuta, mais cuidadosa, mais singela, com os territórios de saberes indígenas, saberes ancestrais… Por isso eu gostaria de saber como podemos fazer na escola indígena para aprender a ouvir, a escutar. Vocês evocam o cântico do bambu do povo Krenak, não é? Vocês evocam ali também um chamado de proteção. Como ouvir esse chamado? Como isso reverbera no dia a dia da comunidade?

 

Lidiane Damasceno

Essas práticas culturais, sejam espirituais, religiosas ou apenas cânticos de casamento ou brincadeiras, nós também ensinamos às crianças. Ensinamos também a tradução das músicas, o que aquele cântico diz e o porquê daquele cântico ser feito. Sempre orientamos as crianças, quando forem passar por algum lugar, ou entrar dentro de uma mata ou até mesmo dentro de um rio ou uma cachoeira do córrego, para pedirem permissão. Porque nós, povos indígenas, acreditamos muito que a natureza, o rio, é um ser vivo, ele tem que ser respeitado. Hoje toda tecnologia da inteligência artificial no mundo está fazendo com que tudo se torne superficial, tudo se torne “nada a ver”, como as crianças falam. O espiritual, o religioso, acaba se perdendo dentro dessas pessoas e quando você traz para o nosso jovem indígena eles trazem isso com uma energia muito forte. Os mais velhos sempre dizem: “Quando entrar num rio, quando for entrar numa cachoeira, entrar numa mata, para que uma cobra não te morda, para que você não morra afogado ou para que você tenha uma boa pesca ou uma boa caça, sempre tem que pedir permissão a mãe natureza, a mãe da água, ao rio que é o nosso pai velho”. Sempre acabamos passando para a juventude a importância das permissões. Hoje conseguimos ver o que está acontecendo no mundo, o homem não indígena não respeita a natureza, ele não vê a natureza como um ser vivo. Muitas vezes, a natureza acaba fazendo como o pai e a mãe que, para corrigir o filho, deixa o filho de castigo. A natureza está cobrando aquilo que foi tirado dela de uma forma muito brusca e violenta. Nós passamos isso para as crianças, que o que está acontecendo hoje no mundo é, muitas vezes, o retorno que a mãe natureza dá ao que antes o homem fez e tirou dela. O homem não indígena machucou a natureza, feriu e tirou o que a natureza dá para nós. O homem não indígena não conversou, chegou e fez, não pediu permissão, como nós, povos indígenas, fazemos. Quando vemos uma árvore crescendo porque vamos cortar ela? Nós só vamos protegê-la e, protegendo essa árvore, virão passarinhos e outros animais, vão nascer novas sementes e assim formar uma grande mata. O respeito perante os espíritos das matas sempre dialoga com as nossas práticas no dia a dia. Passamos para nossas crianças esse respeito com a mãe natureza, que é um ser vivo e potente. Essas práticas acabam reverberando através das narrativas dos mais velhos, que um dia caçou, pescou e pediu a devida permissão. Temos narrativas em que um de nossos mais velhos tirou uma raiz, uma erva, sem pedir permissão, e houve uma punição da mãe natureza e nunca mais esse homem fez esse movimento de desrespeito com a terra. Utilizamos esses exemplos para conversar com as crianças, assim elas acabam tendo esse respeito e diálogo com os seres da natureza e seres espirituais.

Leia a entrevista completa aqui.

 

* Esta entrevista foi feita por Rayane Barbosa Kaingang como parte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) – Educação Territorializada Kaingang: Pedagogias que Brotam do Chão – apresentado como requisito para obtenção do título de licenciatura em Pedagogia da Faculdade de Educação (FE), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob orientação da Profa. Dra. Susana Oliveira Dias.