Por Janaína Quitério
Quando criança, a visão do céu – a única, ele enfatiza – costumava ser disputada com a mãe, que estendia dúzias de roupas no varal do anexo externo, “esses lugares incríveis, acreditem”, da casa onde morava na capital paulista. Walmir Thomaz Cardoso, hoje professor do departamento de Física da PUC-SP, conta que sua mãe interagia com a astronomia quando mudava os varais de posição para mantê-los sob o sol nas diferentes épocas do ano, ainda que ela sequer se desse conta disso.
São essas formas de ver o céu com suas interações cotidianas – algo próximo da vida – que a denominada astronomia da cultura se interessa em estudar. “É uma área de pesquisa multidisciplinar preocupada em compreender as relações entre o céu e os seres em seus ambientes culturais e naturais, em diversas culturas e povos”, iniciou o debate sobre a astronomia indígena e seus outros modos de ver a luz na programação indígena da 67ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que acontece ao longo desta semana no campus da Ufscar, em São Carlos.
Formado em Física e com mestrado em História da Ciência, Walmir Cardoso voltou seu olhar para a etnoastronomia em sua pesquisa de doutorado após receber um convite do Instituto Socioambiental (ISA) para ensinar astronomia à comunidade indígena Tukano. Mas quem mais aprendeu, admite, foi ele.
Com cartas celestes de papel, projetor e gerador elétrico na mala, o pesquisador subiu por três dias o rio Tiquiê, no alto Rio Negro, depois de passar pela última cidade – São Gabriel da Cachoeira, até chegar à região conhecida como Cabeça de Cachorro. Na recepção de boas-vindas preparada pela comunidade Tukano, ele, pela primeira vez, viu as sombras das luzes que levava: as bandeirinhas estendidas foram montadas com as páginas rasgadas de livros didáticos. “Era a verdade, a luz, transformada em bandeirinhas”, Cardoso zomba de si mesmo.
O que os Tukano queriam, na verdade, era criar um calendário que registrasse os eventos da natureza (inundações, fases lunares, secas, plantio etc.) em consonância com o céu. Essa construção se iniciou com a produção de uma carta celeste a partir de desenhos feitos pelos estudantes indígenas, além de histórias dos mitos das constelações contadas por quatro sábios da comunidade – ou, como poetizou Cardoso, “pelas bibliotecas vivas de astronomia dos povos” –, e de observações noturnas. Todo esse céu pode agora ser visualizado no site Stellarium (www.stellarium.org).
O calendário circular, dinâmico, reflete o movimento das constelações e os eventos naturais correspondentes. “Esse calendário reflete o céu dos Tukano, mas existem muitos céus, de muitos povos”, enfatiza. “Não existe constelação sem o observador. É ele quem inventa o céu a partir do seu local”, compartilha.
Preocupando-se com as mudanças verificadas nos fenômenos naturais, o ISA está atualizando o calendário e investindo em pesquisas que possam registrar as conexões entre natureza e céu, para que, com as alterações em curso, essas percepções, essas lógicas internas tão interconectadas entre os diferentes povos indígenas, não percam seu brilho na Terra.