Quando o sol é tão forte como um mel: experimentações de existir – escrever, pensar, comunicar – com crianças| Alice Copetti Dalmaso


Alice Copetti Dalmaso[1]

 

DAS ENTIDADES INTENSIVAS 

 

Conviver, descrever, acompanhar, decifrar um elemento vivo, complexo, variante, pulsional, misterioso, incognoscível: aprender por seus meios, para sermos melhor “aconselhados pelo mundo e capazes de responder ao que nos está dizendo (INGOLD, 2015, p. 12). Meu elemento de observação é vibrátil, inquieto, pulsante, espaçoso, sem propriedade única e definível. Põe vida na vida, traz coisas à vida: uma criança, muitas crianças. 

A necessidade de encontrar crianças se transmutou para o acolhimento dos acasos de seus intempestivos convites. Essa atenção ao elemento-criança iniciou há alguns poucos anos, talvez uns quatro. O eco se fez da insuficiência de, enquanto formadora de futuras/os professoras/es de ciências e biologia, não possuir uma resposta diante da questão usual lançada àqueles/as que trabalham com ensino na universidade: “Como ensinar ciências para crianças?” O que conhecemos por ensinar, enquanto ação pedagógica e voluntária que pede luz a um “como” – e que poucos/as sabem de fato responder – não me atraía tanto, naquele tempo. Mas o mundo relativo ao que chamamos de ciências – os fenômenos, os materiais, transformações, processos químicos, físicos e biológicos de coisas e meios, elementos, corpos, seres – e sobretudo as crianças – com seu específico modo de existir – seguiam me chamando e solicitando composições. 

Percebi que eram nos encontros entre as ciências e as crianças que talvez poderia aprender, afinal, o que elas tinham a ensinar: ambas instâncias tinham algo a inspirar, desafiar, dizer, comunicar, a todo momento. Sigo analfabeta nessa leitura, porém curiosa, não em interpretar a natureza que envolve o mundo das ciências e das crianças, mas em conectá-las, ou melhor, de escrever sobre as conexões e contaminações que estes mundos podem fazer um com o outro, provocando elos e ressonâncias – a partir do que, aqui, tratei como composições entre escrita e leitura, fabricadas com o que observei e ‘ouvi’ de seus comunicados. Estou no processo, e neste texto me propus a compartilhar alguns dos processos atencionais disparados em mim, desses universos ambiguamente díspares e próximos.

Tim Ingold, um antropólogo ecológico-experimental (entre outras nomeações que não o definem, mas singularizam a riqueza de um modo particular de perceber uma antropologia que ganha vida em suas construções e narrativas), encabeça certa metodologia que consiste em dar consistência a três verbos: mover, conhecer e descrever (INGOLD, 2015). Porém, para o autor, não se tratam de operações separadas que se seguem umas às outras, em série, mas sobretudo facetas de um único processo – aquele da vida mesma, do viver. Para que essas operações ganhem vida na escrita e no pesquisar sobre alguma coisa, entretanto, é necessário um observar, um modo de estar atento que implica “estar vivo para o mundo” (INGOLD, 2015, p.13). Estar vivo para o mundo não é pouca coisa. Pede uma intervenção interessada ao modo como as coisas se movimentam no mundo, que rastros deixam e compõem conosco. Tenho me permitido abraçar essas passagens de Ingold, caminhando – movendo, conhecendo e descrevendo – o/no mundo e, especificamente, pelos mundos das crianças com que fui me encontrando. Pequenos mundos das existências-crianças ativadas no percurso de pesquisa e vida: acompanhá-las tem sido aprender a estar viva.

Estar viva/o para o mundo, lendo o que acontece nele. Estar viva/o para o que e como as crianças fazem, dizem, movem, conhecem e descrevem os seus mundos particulares. Um mundo que são feitos de muitos outros mundos, processuais e fabricáveis, os quais se tornam mais vivos, existíveis, pelos corpos e perspectivas delas. Observar devires das crianças e um devir-criança em nós e fora de nós… Segue sendo esse o chamado.

Como encostar (mover, conhecer e descrever) o modo de existência de uma criança a ponto de não representá-la e significá-la? Como atentar ao que podemos aprender com uma (ou mais) crianças, sem romantizar ‘uma infância’ melhor, tampouco idealizá-la, mas tornando-nos, sobretudo, presentes em existir com ela, em presença desse ser? Arrisco afirmar, por ora: talvez levar a sério toda uma etologia da potência do estado sempre nascente, de uma força de engajamento no mundo, um corpo que mergulha em seu caos, engendrando um novo estado em devir, um corpo afirmado em sua própria diferença, estranheza e mistério.

No cosmos das coisas, há aberturas, inúmeras aberturas desenhadas pelos virtuais. Raros são aqueles que as percebem e lhes dão importância; mais raros ainda aqueles que exploram essa abertura em uma experimentação criadora (LAPOUJADE, 2017, p. 44).

Por uma teimosia involuntária uma criança é capaz de adentrar, despretensiosamente, nas aberturas desenhadas pelos virtuais, fazendo nascer um mundo que existe a seu modo, sob seu ponto de vista. Contaminada por essa disposição de encontrar aberturas de criação, a intenção de minhas pesquisas[2] se constitui do desejo de habitar os modos virtuais de existência de coisas, elementos, materiais, seres e acontecimentos sob o ponto de vista de uma criança, forçando encontrar as linhas esboçadas em seus gestos, seu corpo, seus mundos próprios expressos, “não apenas para ver por onde ela vê, mas para fazê-la existir mais, aumentar suas dimensões ou fazê-la existir de outra maneira” (LAPOUJADE, 2017, p. 90).

Considero as crianças como “[…] entidades intensivas, que estão no entroncamento de elementos muito heterogêneos […] ” e que “[…] exigem, para serem apreendidas, uma outra lógica, lógica das intensidades não discursivas” (PELBART, 1993, p. 47). Lógica que se busca lapidar, esses escritos fazem parte de um esforço para que essas entidades-intensivas-crianças pudessem ser apreendidas, captadas, capturadas em sua multiplicidade e potência, solicitando uma apreensão pática, que é “aquela que apreende, por exemplo, um ‘clima’ de uma festa, a ‘atmosfera’ de uma manifestação, ou de um psicótico, ou de uma obra de arte” (PELBART, 1993, p. 47). Um esforço, uma disciplina, uma desorganização constante do corpo e dos códigos que me constituem e me atravessam, para poder encontrá-las.

Então, uma criança ou mais crianças, abertas às perspectivas que suscitam, são tomadas aqui como entes pulsantes, visíveis, existíveis, criadoras, dançarinas na arte de desvelar mundos alegres, dimensões e planos ainda inexplorados do pensar e do sentir, mas que são, “por direito, numerosos” (LAPOUJADE, 2017, p. 47). Tenho aprendido a pesquisar e escrever arregimentando uma atenção capaz de produzir essa apreensão pática, na captura de tons, intensidades, expressões, gestos, afectos, do que foge, por vezes, à compreensão e às significações (PELBART, 1993). Desse modo é que a escrita se engaja, como ação/procedimento que adentra num campo mais consciente ao acontecimento, simpatizando com o ponto de vista da criança e, pelo qual, assim, explora-se, brinca-se, desavergonhadamente se ativa uma composição momentânea de pensamento e escrita.

Por isso, estes escritos se perdem, em alguns momentos, em variações poéticas, composições de linguagens que podem soar “sem sentido” às/aos leitoras/es. Com “composições” quero dizer o que Stengers (2007) afirma sobre escrever como possibilidade de acesso a um portal mágico de processo metamórfico, parte da ação de reivindicar procedimentos, palavras, ideias, gestos que ativem nossa força de cura e cuidado, capaz de experimentar um sem fim de vínculos, impulsionados pela nossa potência comum de enredamento e conexão.

Escrever e compor existências mínimas de devires de uma criança (e de um devir-criança)[3] é talvez abraçar a magia que nos envolve na experiência do escrever e de brincar com o mundo das palavras. São agenciamentos que investem em produzir provocações, chamados, evocações, fazendo pensar, sentir, imaginar: palavras-ações, palavra-incitação, palavra-sentido, palavra-força, palavra-devir. Palavras como práticas de medicação, de manutenção de uma cura que se retroalimenta enquanto se escreve.

Junto às composições de escrita, nas próximas páginas as/os leitoras/es encontrarão também imagens do fotógrafo francês Alain Laboile[4], trazido para impulsionar a instância criadora e não discursiva do trabalho, misturando-se às falas, gestos, sons de João, Mateus, Antônio, e com outras crianças desconhecidas e anônimas, seus gritos que invadem minha janela, seus movimentos, sobressaltos ao acaso, em lugares de festas, ruas, passagens, bares, piscinas, parques. Crianças de escolas, de vídeos aleatórios, de lembranças, de sonhos lúcidos misturados à imaginações[5]. O verossímil que já não pretende significar o real, posto que o real é ele mesmo um mergulho no inventado, para tudo ser um possível contaminante: as palavras me são concretas, elas constroem crianças e são por elas inventadas. Por isso, desmontam coordenadas, fazem nascer novos universos, novas maneiras de fabricar mundos. 

Contaminada por tanto – ao ‘por as coisas todas juntas’[6] – deixo o convite, para enquanto acompanham os escritos e pousam na leitura, ouvirem duas composições do músico Yan Tiersen: Tempelhoff: <https://www.youtube.com/watch?v=mTlyklNcn80>, e Pell: <https://www.youtube.com/watch?v=VFVMAPEOZjo&list=RD0BdfH0CAKK4&index=8> (sendo ouvidas em modo repetição, ou deixando que outras músicas e sons, em sequência, cheguem aleatorialmente e atravessem a leitura).

 artigo 8

Figura 1: La Famille 2015. Fonte: Alain Laboile – Site do artista.

 

(Leia o artigo completo em PDF)

 

Recebido em: 30/06/2020

Aceito em: 30/07/2020

 

 

[1] Professora Adjunta do Departamento de Metodologia do Ensino, do Centro de Educação, da Universidade Federal de Santa Maria (MEN/UFSM). Doutorado e Mestrado em Educação (PPGE/UFSM). Bacharel e Licenciada em Ciências Biológicas (UFSM). E-mail: alicedalmaso@gmail.com

[2] Estes escritos são compostos pelos atravessamentos da pesquisa de pós-doutorado intitulada Experimentar (com) um modo de existir-criança: composições para pensar ciências, artes, divulgações, educações, desenvolvida no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, na UNICAMP-SP, sob a supervisão da pesquisadora Susana Oliveira Dias (UNICAMP). Aulas, encontros, conversas, materiais, dos quais tive contato durante o pós-doutorado, misturam-se às pesquisas e olhares generosos de Susana (e de seu Grupo de pesquisas multiTÃO), a qual lida com perspectivas que procuram operar com toda ordem de seres e coisas – assim como as crianças – como parceiras e parceiros de pensamento, abrindo visões de mundo, brechas para pensar a comunicação e a divulgação, as ciências, as artes e filosofias.

[3] Há alguns anos o conceito de devir-criança, enunciado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997), oferecem a cintilância dos trajetos, das forças, das singularidades, agenciamentos, dos corpos, dos afetos que envolvem o ser em devir de uma criança. O conceito deve dizer o acontecimento, não a essência, afirmam os autores. Por isso, uma criança aqui se apresenta enquanto individuações, acontecimentos sem sujeito, e não sob o caráter de pessoalização, essência, forma. O devir-criança, assim, se impõe por sua força, ao instaurar um acontecimento em nós e fora de nós (um modo de ser, um devir tornado visível, passagem alegre, vento desmedido, um som inaudito, corpo descodificado, fluxos e contrafluxos desconhecidos que põem a vida em movimento).

[4] Portfólio e Biografia do artista: <http://www.laboile.com>.

[5] Nessas construções, ainda que muitas crianças tenham movimentado – e inventado – essa pesquisa e escrita, não contemplei as forças anestesiadas de crianças medicalizadas, tampouco as que sobrevivem em cenários de miséria material e afetiva, vulneráveis a toda dor e violência a que estão submetidas, em função da negligência de seus contextos políticos, econômicos, de gênero, racial. Estou atenta a isso. As forças de devir-criança dessas crianças estão aqui como um grito ininterrupto e inaudito, me ajudando a encontrar o que resta em si mesmas, e em nós, enquanto força ativa de vida e criação.

[6] […] Num juntar atento aos modos como as relações entre-imagens, entre-sons, entre-sons-imagens, entre-palavras-sons-imagens, entre-linguagens podem escapar aos funcionamentos ilustrativos e metafóricos […] (DIAS, 2017, p. 139).

Quando o sol é tão forte como um mel: experimentações de existir – escrever, pensar, comunicar –  com crianças

 

 

RESUMO: Estes escritos se engajam em processos de pesquisar que simpatizam e adentram a força de pensar e escrever afetados pelas crianças – explorando e ativando modos de dar a ver (e dizer) sobre os mundos que nascem ao observar e acompanhar uma criança e seus devires (e um devir-criança em nós). Trata-se de operar com composições de escrita que perambulam por instâncias de um comunicar/divagar-criança, embaladas por perspectivas antropológicas, filosóficas, artísticas e educacionais que encontram aberturas de criação de mundos e possibilidades de existências múltiplos e diversos. Sob a companhia das crianças e suas relações com as coisas – que se tornam vivas e dignas de atenção – aprende-se a habitar o sol, areia, tinta, pedras, água, traços, percursos, gestos, corpos, espaços, superfícies: testemunhar uma etologia da potência do estado sempre nascente, da força ativa de engajamento no mundo, corpos que mergulham no cosmos, engendrando um novo devir, afirmado em sua própria diferença, estranheza, mistério e leveza. Encontra-se a graça de um cenário de vínculos infinitos, de conexões entre seres humanos e não-humanos, variações corporais de sentir, de arquitetar novos desejos de presente e futuro, os quais nos ponham a fabricar (e aceitar) impensáveis dimensões do viver. Apostar nisso e seguir.

PALAVRAS-CHAVE: Criança. Modos de existência. Experimentação.

 


When the sun is as strong as honey: experimentations of existing – writing, thinking, communicating – together with children

 

ABSTRACT: This writing engages into research processes which sympathize with and enter the power of thinking and writing affected by the children – exploring and activating ways of revealing (and talking about) the worlds that are born while observing and following a child and its becoming (and a child-becoming within us). This is about operating with writing compositions that wander along instances of a child-communication/roaming, propelled by anthropological, philosophical, artistic and educational perspectives which find openings for creating multiple and diverse worlds and possibilities for existence. With the company of children and their relationship with things – which become alive and noteworthy – one learns to inhabit the sun, sand, paint, rocks, water, traces, paths, gestures, bodies, spaces, surfaces: witnessing an ethology of the potency of the always rising state, the active force of engaging in the world, bodies that dive into the cosmos, engendering a new becoming, affirmed in its own difference, oddness, mystery and lightness. One finds graciousness in the scenery of endless links, connections between human and non-human beings, corporeal variations of feeling, architecting new desires of present and future, which make us create (and accept) unthinkable dimensions of living. Betting on and following it.

KEYWORDS: Child. Ways of existence. Experimentation

 

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DALMASO, Alice Copetti. Quando o sol é tão forte como um mel: experimentações de existir – escrever, pensar, comunicar –  com crianças. ClimaCom – Devir Criança [Online], Campinas, ano 7,  n. 18,  Set.  2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/quando-o-sol-e-tao-forte-como-um-mel-experimentacoes-de-existir-escrever-pensar-comunicar-com-criancas-alice-copetti-dalmaso