Alessandra Kasprczak, Gabriela Itaquy, Luciana Knijnik, Mayra Martins Redin e Renata Flores Trepte | Por uma artesania dos dias: entre sonhos e mãos


Alessandra da Costa Kasprczak[1]

 Gabriela Weber Itaquy[2]

 Luciana Knijnik[3]

 Mayra Martins Redin [4]

Renata Flores Trepte [5]

 

 

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“Sonhei que eu havia sido assassinada por razões políticas e depois disso me via sobrevoando as ruas do meu bairro, tranquila e feliz, pensando ‘que bom, não tenho mais que me preocupar com nada disso’. 

Porém, como fantasma, resolvi me dirigir à casa de uma tia advogada e filiada a um partido de esquerda. Queria contá-la sobre a causa de minha morte, pois ninguém sabia”.  

Sonho anônimo recebido, em outubro de 2018, no instagram @artesaniadosdpasted image 0“Há noites turvas em que percebo, ainda atônita, que não há nada mais palpável do que aquilo que me escapa” (DIAS, 2015).  

A escuta dos efeitos da campanha eleitoral para presidência do Brasil, em 2018, evocou a criação de um grupo chamado Escutadoras, em Porto Alegre-RS. Composto por profissionais com trajetória de escuta, preocupadas com os efeitos na subjetividade diante da situação política, o grupo nasceu do desejo de abrir rodas de conversa para escutar e dar lugar aos atravessamentos decorrentes das violências que se tornaram explícitas e frequentes e que passaram a se mostrar, também, nos espaços privados.  

Concomitantemente, em decorrência desta escuta, passamos a coletar narrativas, sonhos e pesadelos acontecidos naquele momento. Criamos então uma plataforma online, inicialmente nomeada @eutiveumpesadelo (que depois se tornou @artesaniadosdias, no Instagram), onde recebíamos e guardávamos estes escritos sem bem saber porquê. Aos poucos fomos entendendo que os pesadelos, compostos por imagens e palavras em sua gramática própria, nos dizem de um tempo, o nosso, mas dizem também da forma como estes corpos sonhadores falam dos modos de estar no mundo, neste momento.  

Pensamos que seria importante trabalhar com os sonhos, não só coletá-los, mas aproximarmo-nos deles, já que colocaram sua urgência quando passaram a surgir com mais frequência nas nossas conversas pessoais, nos posts das redes sociais, nos consultórios e nos espaços de escuta dos quais fazemos parte. Colocou-se o desejo de remontar tais imagens e narrativas, criar espaços de elaboração que nos permitissem usar o corpo e as palavras para dar conta de criar novas imagens a partir destas que por vezes nos tomam de forma tão arrebatadora. Sentíamos em nós essa urgência do trabalho e da convivência.  

Compreendemos também que esta seria uma tarefa coletiva, ou pelo menos, provisoriamente, a ser feita em um espaço comum, entendendo os sonhos como manifestações que se alimentam do que nossos corpos veem, percebem, sentem, cada qual ao seu modo, mas a partir deste mundo em que todos estamos. Foucault (2013) aponta, poeticamente, essa certa indiscernibilidade entre as coisas que estão fora do corpo e sua passagem para “dentro da cabeça”, essa porosidade, no seguinte trecho:  

Mas, na verdade, meu corpo não se deixa reduzir tão facilmente. Afinal, ele tem suas fontes próprias de fantástico; possui, também ele, lugares sem lugar e lugares mais profundos, ainda mais obstinados que a alma, que o túmulo, que o encantamento dos mágicos. Possui, também ele, suas caves e seus celeiros, tem abrigos obscuros e plagas luminosas. Minha cabeça, por exemplo, ah, minha cabeça: estranha caverna aberta para o mundo exterior por duas janelas, duas aberturas, sei disso, pois as vejo no espelho; ademais, posso fechar uma ou outra separadamente. E, no entanto, essas aberturas não são senão uma só, pois não vejo diante de mim senão uma só paisagem, contínua, sem divisão nem corte. E dentro desta cabeça, como se passam as coisas? Elas entram lá – e estou muito seguro de que as coisas entram na minha cabeça quando eu olho, pois o sol, se for demasiado forte e me ofuscar, dilacera até o fundo do meu cérebro – e, no entanto, essas coisas que entram dentro da minha cabeça permanecem no exterior, pois vejo-as diante de mim e eu, por minha vez, devo me adiantar para alcançá-las (FOUCAULT, 2013, p. 10).

 

Nesta direção que nos aponta o sonho enquanto algo em que se mesclam – a princípio numa esfera privada -, atravessamentos da cultura, sociais, políticos e a subjetividade do sonhador, nos chegou às mãos o livro “Sonhos no terceiro Reich”, de Charlotte Beradt (2017). A autora coletou sonhos de 300 pessoas “comuns”, moradoras de Berlim, durante os anos de 1933 até 1939, na ascensão do nazismo. Sua pesquisa mostra, com toda contundência de pesquisadora, que os sonhos não são invioláveis, contrariando a declaração de um oficial do Partido Nazista, Robert Ley, de que “O único ser humano que ainda possui uma vida privada na Alemanha é aquele que está dormindo” (BERADT, 2017, p. 29).  

Dunker, no prefácio da edição brasileira deste livro, diz o seguinte: 

A eliminação das paredes entre o público e o privado, situação em que é impossível esconder-se ou manter segredos, é resolvida pela criação de não-lugares ou de lugares impossíveis: esconder-se entre duas cadeiras, esconder-se no chumbo, esconder-se no fundo do mar, ir para além da Lapônia ou tomar o ônibus cujo ponto final se chama Heil. (BERADT, 2017, p.11).  

 

Neste sentido, pudemos nos colocar a pensar o entrecruzamento entre a experiência privada e os eventos políticos, que se dão a ver, ao seu modo próprio, através dos sonhos, e foi este um dos motivos que nos levou a querer trabalhar os sonhos e com os sonhos do presente. Poder olhar e ler a atualidade através de narrativas calcadas em imagens oníricas que, em certa medida, nos dizem dos modos como as pessoas elaboram e dão lugar simbólico para os atravessamentos do presente, nos instigou e nos colocou a questão, que nos levou a criar a Artesania dos Dias, ampliando nossos gestos para além da coleta dos sonhos, incluindo um certo fazer coletivo.    

Os corpos percebem: os pesadelos escreveram-se e ainda se inscrevem. Sentimos: é tempo de encontrar, no pesadelo, o que não é pesadelo. Os pesadelos nos vem, nos tomam, mas decantamos, destilamos e coletivamente remontamos lugares para os sonhos de porvir. O grupo-oficina se reúne para construir encontros e criar cotidianos. Um espaço aberto de trabalho através dos sonhos e das mãos. A partir da prática da colagem e das operações do sonho, buscamos criar novas imagens, sempre incompletas e em formação. Experimentamos configurações e reconfigurações que permitam aproximar, compor e criar vizinhanças entre mundos por vezes distantes, aproximar e reinventar realidades.  

Desde dezembro de 2018, Artesania dos Dias vem se reunindo mensalmente, num espaço público da cidade de Porto Alegre, a Biblioteca Municipal Josué Guimarães, do Centro Municipal de Cultura. O grupo é aberto e gratuito. Nos sentimos politicamente responsáveis por criar imagens incompletas e amplas de sentidos. Na borda insegura do risco que nunca nos garante forma prévia alguma, propomos este espaço para composições imprevistas, dando lugar ao que transborda, desviando, recortando, subvertendo imagens prontas e fáceis, das publicidades, das falsas notícias, dos imperativos que muitas vezes nos arrebatam através de um choque e não por uma nuance. 

O exercício da colagem em grupo e em roda é um exercício de riscar uma linha que o outro vai tratar de continuar, e o seguinte também, até passar por todos. Há o aprendizado da confiança na continuidade e na própria espera, há o gesto de entrega nas mãos do outro a colagem iniciei. Aos poucos, aprendemos a acatar os apagamentos e as sobreposições que surgem, como proposição, para que a imagem possa ser remontada por uma outra via ainda não percebida. A proposta considera cada um/a na sua possibilidade de conversa pela imagem-texto em construção, pensando assim a série como sempre imprevista, não se tratando de uma escuta individualizante. Trata-se de dispor e olhar para o material de nosso cotidiano partilhado e de trabalhar para compô-lo, recompô-lo, inventá-lo. 

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“Ontem sonhei com um tombo da lua, na verdade, quem estava caindo era a gente, a terra, de fúria começou a girar muito depressa e tínhamos que procurar onde nos segurar para não sermos jogados no abismo”.  

Sonho anônimo recebido, em abril de 2019 no instagram @artesaniadosdias. 

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Como viver – me perguntou alguém numa carta, 

a quem eu pretendia fazer 

a mesma pergunta (SZYMBORSKA, 2014). 

 

São muitas as formas de compreender os sonhos. Há tempo eles vêm sendo entendidos como um presságio, um anúncio de algo que está por vir, ainda a ser decifrado. Num pensamento positivista, o sonho é entendido enquanto uma manifestação insensata, análoga a loucura e que, por isso, deve ser ignorado. Já Freud vai justamente dar lugar aos sonhos sustentando o caráter de estranheza e desconhecimento que temos de nós mesmos como algo que compõem quem somos ou quem nos tornamos. Dá aos sonhos o lugar de uma escritura feita de imagens, com sentido e gramática própria. Freud passa a ouvir os sonhos. 

Sempre haverá quem diga, atravessado pelo ímpeto de narrar: eu tive um sonho…. Contar é parte do sonhar. Walter Benjamin (2019), dizem os arquivos, também foi tomado pelo desejo irresistível de contar um sonho. Numa carta a Gretel Adorno ele admite: “I had such a beautiful dream while lying on my cot last night that I am unable to resist my desire to tell you about it. There are so few beautiful, not to mention pleasant, things about which I can tell you”. A carta, de 12 de outubro de 1939, foi escrita do então chamado campo de “trabalhos voluntários”. Estávamos na II Guerra Mundial, no Château de Vernuche, em que Benjamin ficou detido, por vários meses.  

Benjamin sonhava na guerra. Nós também sonhamos e contamos os sonhos do nosso tempo, como narradores que dão a ver o que há de impessoal, de público e coletivo nas produções oníricas.   

Os sonhos, recebidos no instagram @artesaniadosdias, são disponibilizados nas oficinas de colagem. A cada encontro um sonho é partilhado, lido em conjunto. Em seguida, o texto do sonho impresso é ofertado como material para colagem. Vale ressaltar que a oferta do sonho vem com a restrição (nem sempre observada) ao uso de texto das revistas. Palavras, só do sonho.  

O sonho passa a ser do sonhador e de quem mais o partilha a cada lance de dados. O sonho vira outro sonho, a imagem outra imagem. Ainda assim, o mesmo sonho, a mesma imagem. Concomitâncias admitidas pelo inconsciente numa cadeia associativa em que tudo se move no enlace de fios sutis.  

Aumentamos um ponto acrescentando elementos. Aumentamos, sem colocar nada a mais, no jogo da montagem. Recortar e colar é um jogo de falseamento em que alguma relação se guarda. Não se guarda a propriedade, nem a veracidade.  

Assim, os elementos utilizados nas colagens não se limitam aos significados imediatos. Elas ganham sentido pelo trabalho associativo de recortar e colar que produzirá outras imagens, outro discurso. 

Tudo se dá pela pausa no modo frenético a que estamos a todo tempo sendo convocados. É um trabalho que requer alguma quietude, um silêncio calmo de quem está acompanhado. 

Diz Ohno (2016) que não crescemos quando estamos em movimento, que é preciso que descansemos e sonhemos para crescer. Sonhar é, portanto, voltar a atenção para qualquer coisa de ininterpretável. 

Freud formulou que o sonho é o guardião do sono, um modo de colocar colocar a consciência em suspenso para que o corpo possa descansar. Nesta direção, pensar as atividades do sonho e do tédio é fazer resistência frente ao modo produtivista que nos impõe atividades com objetivos e resultados. No livro “Sociedade do Cansaço”, Byung-Chul Han (2017, p. 33) nos diz da forma como nos dias de hoje construímos uma atenção dispersa em que se muda de foco entre “diversas atividades, fontes informativas e processos” para sermos mais produtivos.  

O autor segue dizendo que não toleramos um tédio profundo que Walter Benjamin chamou de “pássaro onírico, que choca o ovo da experiência”:  

Se o sono perfaz o ponto alto do descanso físico, o tédio profundo constitui o ponto alto do descanso espiritual. Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente. Benjamin lamenta que esse ninho de descanso e de repouso do pássaro onírico está desaparecendo cada vez mais na modernidade. Não se ‘tece mais e não se fia’. O tédio seria um ‘pano cinza quente, forrado por dentro com o mais incandescente e o mais colorido revestimento de seda que já existiu” e no qual “nos enrolamos quando sonhamos” (HAN, 2017, p. 34).     

 

Este aspecto “não produtivo” que está contido nas atividades como o sonho e o tédio, fazem frente, portanto, ao modo hiperativo que vivemos. Por si só, dormir e sonhar é já se permitir um espaço para aquilo que “não serve para nada”. Contar nossos sonhos é como falar do tempo que faz, muitas vezes serve apenas para começar uma conversa sem objetivos específicos e sem final determinado.  

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“Não consigo trabalhar nem dormir direito. Noite dessas sonhei que voltava para casa depois de muitos anos, com as crianças já adolescentes e encontrava com as minhas gatas velhas em casa. Acordei sem entender nada e depois, contando o sonho pro Eduardo, me deu uma coisa muito forte. Eu tinha sonhado com o exílio. Era muito doloroso”. 

Sonho anônimo recebido, em outubro de 2018. no instagram @artesaniadosdias. 

Quem pensa que os sonhos, assim como a loucura, são experiências absurdas, sem sentido e desprovidas de coerência, portanto irreais, assume que a realidade é uma experiência racional dotada de existência, unidade e identidade, independentemente do que possamos pensar ou dizer sobre ela. Mas o que dizer quando olhamos para a realidade e experimentamos que ela é absurda, incoerente e destituída de sentido? O que sonhar quando a realidade social diante de nossos olhos adquire os mesmos traços de irracionalidade e fratura de sentido que atribuímos aos pesadelos e à paranóia”?  (DUNKER, 2017, p.20). 

 

Como trabalhar os atravessamentos políticos que se dão a ver pelos sonhos? 

A atual situação política do país demarca um momento de ruptura que intervém diretamente nos laços afetivos, comunitários e sociais. A democracia tem sofrido ameaças, sendo fragilizada em seus movimentos de construção, as violações tornaram-se constantes e vindas de diferentes esferas contando com a autorização do Estado. A violência sempre demarca a ruptura com a linguagem e aponta o excesso de real, desse modo emudece os sujeitos e facilita a entrada no campo do desamparo.  

A metodologia de trabalho que a Artesania busca é um exercício da política. A colagem surge como possibilidade para o exercício de estar junto, de perceber a materialidade que o relacional produz, de escutar os enlaces e as dissonâncias entre imagem e palavra.  

As operações experimentadas por essa via se constituem como um exercício de estar em roda. No encontro, vive-se os limiares entre o individual e o coletivo. Nesse momento, estar junto torna-se uma aposta no laço social, uma construção partilhada com aproximações, conexões e diálogos inusitados. 

O fazer vem sendo construído e atualizado em ato, legitimado através da leitura de cada momento. A partir de algum disparador da atividade do dia (livro, poema, imagem, notícia, conversa inicial), aposta-se no dispositivo que promove uma espécie de associação livre a partir não somente do papel em branco, mas também da sequência de imagens já colocadas. Cada pessoa escuta a composição que lhe chega e se relaciona com algo, oferece algo àquela conversa, e vamos formando uma economia solidária de imagens e palavras. A equipe proponente participa lado a lado na artesania dos encontros-colagens. Provoca, desloca, incomoda, acalma.  

Nas oficinas, percebemos e cultivamos a dimensão do tempo e da espera, o habitar um modo de atenção e presença. Percepção de si na relação com o outro, com aquilo que o outro propõe, com aquilo que espero, com aquilo que ofereço, com aquilo que corto e colo encorajado pela situação. No início dos trabalhos e para cada pessoa que chega, vemos que muitas vezes há um desejo de fazer a sua própria colagem, o seu trabalho individual. E a roda convida a abrirmos mão desse modo aparentemente mais seguro e confortável.  

Pelo exercício da colagem vão sendo possibilitadas algumas ferramentas de trabalho com a imagem que são também ferramentas de relação: folhear uma revista, observar conexões entre as páginas já recortadas anteriormente e o que elas dão a ver; ler um sonho; ler ao final, o que resta do sonho; deixar-se afetar por algo sem saber bem pelo quê. Recortar. Colar em algum espaço de alguma folha. Olhar ao redor. Esperar. Passar para a esquerda. Receber. Perceber. Buscar conexões. Por vezes colar aleatoriamente, sem pensar na conexão. Imagem ou palavra? Propor. Fazer relação. Testar. Colar. Observar. Silenciar. Esperar ou ser esperado. Dar algo. Receber outro algo. Escutar. Relacionar-se com uma relação já existente. Perceber um ritmo que se estabelece. Ser guiado pelo quê? Procurar. Continuar. Sobrepor? Dispor ao lado?  Recortar. Respirar. Colar. Estranhar. Passar a outro. Receber outra cena espaço proposição. Ser fisgado por um pedacinho. Guardar recortes com o intuito de usar mais adiante. Levá-los embora. Demorar-se ali. Habitar. Penetrar? Limitar? Exceder?  Rasgar a imagem. Transbordar. Puxar caderninho, escrever um poema, tirar uma foto. Respeitar o vazio. Completar. Rasurar, sobrepor para apagar. Ser esperado. Despossuir-se. Respirar. Passar adiante. Abrir-se ao que vem… 

Através da prática da colagem em grupo avistamos um trabalho utópico que acredita no porvir construído em um grupo provisório e que muda a cada encontro. Trabalho que demarca o incômodo diante do presente e das contradições existentes no âmbito social, o que nos toca a ampliar os modos possíveis de nomeação e de edição do excessivo. O viés utópico permite o atravessamento da “obscuridade do instante vivido”, ultrapassando o curso natural dos acontecimentos. Acreditando na necessidade da substituição do bafo impregnado da mesmice vindo do porão, pelo ar puro e renovador da manhã (BLOCH, 2005, p. 23). 

[…]  a vocação da utopia é o fracasso, o seu valor epistemológico está nas paredes que ela nos permite perceber em torno de nossas mentes, nos limites invisíveis que nos permite detectar por mera indução, no atoleiro das nossas imaginações no modo de produção. Concluímos, portanto, que a utopia mostra aquilo que não podemos imaginar. Só que não o faz pela imaginação concreta, mas sim por meio dos buracos no texto (JAMESON, 1997, p. 85). 

 

Tratar da coletividade do que produzimos é também abrir-se a conviver com o mal estar, produzir com o incômodo, compor com a diferença, com o assombro, com o que pede pausa e passagem, com o que não concorda e que só se faz possível na relação de escuta e composição com as propostas que precederam nossa entrada na cena. Ao recortarmos sonhos, através das palavras e imagens pré-estabelecidas, e ao colarmos de modo não usual e coletivo, criamos novas configurações. Os recortes são subvertidos dos conceitos iniciais, os significados são descolados e reconstruídos ao longo do processo de colagem. Desse modo, o recortar e o colar vão dando novo horizonte para o sonho/pesadelo, torcendo a palavra inicial e a jogando em uma nova construção de imagem e rede de sentidos.  

Acreditamos ser possível dar alguns contornos ao excesso de real e possibilitar que a linguagem e o campo simbólico possam voltar a compor a cena do que estava demarcado somente pelas rupturas e violações. Apostamos em modos de relançar a potência da palavra e da imagem como leitura, escrita, fluxo e política do estar junto. Assim, no laço social, buscamos construir possíveis ressignificações aos pesadelos que dizem não só do campo psíquico do sujeito, mas também do campo social em que se está inserido.  

 

Bibliografia

BENJAMIN, Walter. Carta para Gretel Adorno em 1939. Disponível em: <https://www.museumofdreams.org/fichu>. Acesso em 10.08.2019 

BERARDT, Charlotte. Sonhos no terceiro Reich: com o que sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler. São Paulo: Três Estrelas, 2017. 

BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Vol 1. Trad Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ Contraponto, 2005. 

DIAS, Bianca. Névoa e assobio. Belo Horizonte: Relicário, 2015.  

DUNKER, Christian Ingo Lenz. O sonho como ficção e o despertar do pesadelo. In: Sonhos no terceiro Reich: com o que sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler.  São Paulo: Três Estrelas, 2017. 

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 edições, 2013. 

FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos (1900). Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2012.  

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução,  Giachini, Enio Paulo. Petrópolis: Vozes, 2017. 

JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997. 

OHNO, Kazuo. Treino e(m) poema. Tradução de Tae Suzuki. São Paulo: n-1, 2016.  

SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas. Tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 

 

Recebido em: 30/06/2019

Aceito em: 30/07/2019


[1] Alessandra da Costa Kasprczak, psicóloga, psicoterapeuta, cofundadora do Espaço Conversações: Psicologia e Cultura, ativista do grupo Artesania dos Dias. E-mail: alessandrack@gmail.com. Telefone: (51) 99367-8454.

[2] Gabriela Weber Itaquy, psicóloga, mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), ativista do grupo Artesania dos Dias. E-mail: gabi.itaquy@hotmail.comTelefone: (51) 99993-0702.

[3] Luciana Knijnik – psicóloga, doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), ativista do grupo Artesania dos Dias. E-mail: lukni2014@gmail.com. Telefone: (51) 98129-3201.

[4] Mayra Martins Redin, psicóloga e artista, doutora em Artes (UERJ) e mestre em Educação (UFRGS), professora do Atelier Livre de Porto Alegre e Ativista do grupo Artesania dos Dias. E-mail: mayraredin@gmail.com. Telefone: (51) 99542-5820.

[5] Renata Flores Trepte – psicóloga, mestre em Saúde Coletiva (UFRGS) e doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), ativista do grupo Artesania dos Dias. E- mail: renata.trepte@gmail.com. Telefone: (51) 99729-9279.

 

Por uma artesania dos dias: entre sonhos e mãos

 

RESUMO: Este primeiro ensaio escrito percorre caminhos da Artesania dos Dias, grupo-oficina que surgiu durante o período eleitoral brasileiro de 2018, atento à escuta do presente e que se reúne para construir cotidianos a partir da prática da colagem e da coleta de relatos de sonhos. O trabalho acontece a partir de encontros abertos, gratuitos e em espaço público apostando no exercício da potência coletiva pela imagem e pela palavra. Para dar conta das imagens que por vezes nos tomam de forma arrebatadora, através das operações que envolvem a colagem e os sonhos, criamos espaços de elaboração. Remontamos os sonhos numa máquina coletiva de criar imagens. Pretendemos assim extrapolar o que poderia ser tomado como mais íntimo e fazemos uma leitura no social, do sonho como expressão do mal-estar da civilização, possível de ser recomposto coletivamente. 

PALAVRAS-CHAVE: Sonho. Imagem. Psicanálise.


For a craft of the days: between dreams and hands 

 

ABSTRACT: This first written essay follows the ways of Artesania dos Dias, a workshop group emerged during the 2018 Brazilian electoral period. Attentive to listening to the present, the group gathers up to practice collage and to collect dream narratives. The work happens from open and free meetings in public space, betting on the exercise of collective potency through image and word. To handle images sometimes overwhelm us, we create spaces for elaboration through operations involving collage and dreams. We reassemble the dreams in a collective machine of creating images. Thus we intend to extrapolate what could be taken as intimate to make a reading with the social, understanding the dream as an expression of the malaise of civilization, which can be collectively recomposed.

KEYWORDS: Dream. Image. Psychoanalysis.

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KASPRCZAK, Alessandra da Costa; ITAQUY, Gabriela Weber; KNIJNIK, Luciana; REDIN, Mayra Martins; TREPTE, Renata Flores. Por uma artesania dos dias: entre sonhos e mãos. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [Online], Campinas, ano 6,  n. 15,  set.  2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/por-uma-artesa…-sonhos-e-maos/