Performances e cidade: por uma “temporalidade do precário” em processos artísticos “solidatários”
Raphael Gonçalves de Faria[1]
Juliana Soares Bom-Tempo (professora orientadora)[2]
Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.11)
Introdução
Começo em uma busca por criar relações com certa multiplicidade presente nas urbanidades. Como gerar fissuras nas segmentaridades duras que constituem as cidades? Como reivindicar o direito às vozes das multiplicidades que habitam essa maquinaria urbana? Como gerar encontros e atravessamentos moleculares dentro dessas solidificações do urbano? Como pensar a distribuição de uma terra coletiva? Como construir uma Nova Terra de modo a engendrar planos de composições junto às multiplicidades que ali coexistem? Tais questões atravessam minhas leituras junto a filosofia de Deleuze e Guattari e servem de material para gerar e forçar os pensamentos que atravessam as produções contemporâneas em arte na relação com os contextos urbanos.
Eleonora Fabião (2011), também em conversações com Deleuze e Guattari (1996) e a conceituação prática “Como criar para si um corpo sem órgãos”, propõe uma abordagem para pensar e criar performances, tendo como força de produção o que a autora chama de “temporalidade do precário”. Com um cunho político, Fabião afirma que a performance possui em suas operações uma tendência de confronto as representações e uma valoração da experiência e do corpo. Uma temporalidade do precário, por acontecer no passageiro e no instável, sempre se faz na distribuição de fluxos mutantes, que se voltam para o ato e para a experiência. É sobre e sob os sedimentos da cidade e em uma relação indissociável entre arte e vida que se dão os agenciamentos em arte contemporânea que venho produzindo.
As proposições artísticas que empreendo se dão em um atravessamento direto com minha rotina diária de relações com a cidade, deslocando e habitando os espaços com meu corpo em ato e experiência, gerando, como proposto por Deleuze e Guattari (1996), um Corpo sem Órgãos (CsO), posto a circular, que o socius não deixa experimentar quieto, o que faz dessa maquinaria a rodar um corpo político que excede a norma, a opinião, e, por (re)existência, denuncia as redundâncias de tais doxas. Uma micropolítica do território, numa relação de contraponto com a cidade, improvisação, que recorta procedimentos do capitalismo e da cidade, iluminando as margens dessas semióticas, fazendo problema nas “verdades” capitalísticas.
Divido as proposições em dois modos de operação, que se atravessam e se complementam, mas operam de maneiras distintas com os transeuntes. O primeiro dos modos de operação, chamo de “temporalidade do precário”, inspirado nas propostas de Fabião, e nele as ações performáticas são realizadas enquanto realizo meus deslocamentos de bicicleta, em meu trânsito diário pela cidade, onde a performatividade do corpo acoplado a outros corpos (bicicleta, mochila, placas, palavras), gestam nos encontros afectos e perceptos que fissuram, mesmo que minimamente, as representações e os modos estabelecidos de habitar a cidade. Corpo acoplado à bicicleta, às mochilas, às cargas que carrego, às placas com alguns dizeres; materiais compostos principalmente de uma materialidade de papelão. Esses corpos acoplados ao meu, geram certa aberração na paisagem da cidade, pois rompem com a racionalidade por meio dos modos aos quais me coloco nesse pedalar acoplado aos dizeres, às cargas que carrego e a própria precariedade do material utilizado – papelão. O segundo modo de operação foi intitulado de “solidatário”, e se engendra ao agenciar um processo coletivo que se realiza na noção de coautoria entre proponente e transeuntes. Por meio da participação dos transeuntes e das multiplicidades de forças que habitam os locais de passagem e de trânsito, pessoas são convidadas, de maneiras diversas, a entrarem em um processo colaborativo e intervirem com seus corpos junto ao espaço, utilizando acoplamentos em formatos variados que devem se dispor e comporem conexões e desconexões umas com as outras, criando variações na paisagem arquitetural da cidade. Um modo de operação “solidatário” trata-se de um processo artístico desinstitucionalizado, por isso solitário; e, ao mesmo tempo, depende de certa solidariedade dos transeuntes e do artista para que o processo aconteça e se gere uma Nova Ecologia.
Transeuntes? Aqueles que passam por um território que não lhes pertence? Cidade – maquinaria de transeuntes. A cidade se apodera do corpo, não se habita, se passa; movimento que faz passar no ritmo do relógio, do carro, da rua. Demarcações horizontais e verticais, espessura solida e lisa, cúpula Capitalismo Mundial Integrado (CMI), que dita o corpo e oprime os desejos. Torna-se necessário criar territórios coletivos, que façam rodar outros modos de ser-em-grupo, de habitar a cidade assim como ela nos habita.
Com relação ao modo de operação da “temporalidade do precário”, a bicicleta, as mochilas e as placas funcionam como “objetos utilitários”, os quais lanço mão diariamente e são elaborados a partir de um material pobre, coletado do lixo: o papelão. O acoplamento deles ao meu corpo gera deslocamentos dentro das representações do vestuário e da paisagem urbana higienizados e seus modos de habitação, pelos meios de transporte e seus ritmos e direcionamentos, pelos dizeres e palavras de ordem próprios a este contexto. O corpo em estado de exaustão, que ofega, que transpira e encharca de suor a si, e o papelão dos corpos que compõem tais acoplamentos performam pela cidade. Agenciar com o lixo e seu deslocamento para um plano de composição, fazendo conjunto, gera um movimento que curto-circuita as semióticas da cidade, ao passo que se faz música com os ruídos. Opera-se na coleta desses materiais descartados, percebendo aí, um fracasso do sistema capitalista escancarado.
Temporalidade do precário – corpo problema
Meu corpo e o papelão se aproximam, fundem-se peles e papéis, que geram nessa conexão um corpo mutante que contrasta a potência de deslocamento de um corpo que pedala e se movimenta no trânsito da cidade com a precariedade material do papelão. Exploro o trânsito da cidade e me aproprio de sua condição para realizar atos performáticos, como é o caso das proposições: “Pró-pagando Nº 1” e “Pró-pagando Nº 2”, que utilizam das vias asfálticas como contexto de atualizações. Em “Pró-pagando Nº 1” utilizo meu corpo como um outdoor ao me deslocar de bicicleta, como um “pixo” móvel, que divulga mensagens polêmicas. Por meio de uma placa de papelão, a qual acoplo a mochila em minhas costas, com alguns jogos de palavras, que possam gerar fricções ambíguas nas relações políticas que atravessam a cidade. Nessas ações me interesso por causar ambiguidades com jogos de palavras, com os dizeres: “SEM TEMER”, “PARABÉNS GENTILEZA” ou “POVO DAS ARTES”. No trânsito diário com essas placas, um dos processos que gero ocorre na repetição exaustiva da ação em alguns transeuntes específicos, que têm uma rotina que coincide com a minha e que, portanto, refazem os seus trajetos diários nos mesmos horários, gerando uma exaustão visual da ação. Operação que aproprio dos modos propagandistas utilizados na lógica esquizofrenizante do capitalismo.
Guattari (1990) em “As Três Ecologias”, propõe quatro principais regimes semióticos, nos quais o Capitalismo Mundial Integrado (CMI) opera, direcionando seu foco e seu regime de operações para “estrutura de signos, sintaxe e subjetividade” (GUATTARI, 1990, p.31). Dessa maneira, Guattari reagrupa modos sobre quatro semióticas: econômicas, jurídicas, técnico-cientificas, e de subjetivação. Esta última é atravessada pelas outras três, mas também se compõe de outras “relativas à arquitetura, ao urbanismo, aos equipamentos coletivos etc.” (GUATTARI, 1990, p.31). Regimes semióticos que operam por instrumentos monetários, títulos, regulamentações, diagramas, estudos, entre outros, gerando universos de valores, pelo intermédio das mídias e da publicidade. Forças do capitalismo que introjetam um poder repressivo nas ecologias sociais e de subjetivação, numa homogeneização das opiniões e do mundo. Behaviorismo do ideal de status, da moda, axiomas de adestramento sustentados por uma lógica da repetição. Lógica que aproprio para uma repetição contrariante, atravessando a ordem “normal” das coisas, deslocando suas funções e significações, operando esses instrumentos enquanto materiais existenciais descorporeificados, que apelam à outras intensidades para comporem novas territorialidades. Cultiva-se o dissenso a fim de gerar novos agenciamentos produtivos.
Figura 1 – Foto anterior a uma das ações dos “Pró-pagando Nº 1”, Uberlândia/MG. (Foto: Raphael Faria).
Em “Pró-pagando Nº 2”, performance que se apropria de práticas urbanas de semáforo, que dentro das operações cotidianas da cidade, podem tornar-se espaços des-reterritorializados, utilizados então como local de venda de ambulantes, de esmolas e do compartilhar de práticas artísticas. Assim, utilizo do espaço-tempo que o semáforo cria no trânsito para realizar intervenções. Palco precário, onde, de ciclo em ciclo, renova sua plateia. Há, nesse modo de operação, certa subversão da funcionalidade dos semáforos que se distribuem pelas cidades na tentativa de controlar esses grandes conglomerados de veículos e passam a servir de espaço-tempo para fazeres desinstitucionalizados, que operam nesses semáforos des-re-territorializações fazendo funcionar “temporalidades precárias”, que criam, assim, vazões, fissuras, nos fracassos dessas estruturas. Durante as ações de “Pró-pagando Nº 2”, incorporo algumas operações recorrentes nas práticas de semáforo e dobro-as a ponto de causar uma inversão em suas maneiras de funcionar: me posiciono abaixo do sinaleiro, erguendo uma placa com as inscrições “todo corpo é um artista / tornai o segredo produtivo”. Após alguns segundos vou em direção aos automóveis e distribuo cédulas de dinheiro antigas carimbadas com o mesmo texto utilizado na placa. Em uma relação direta com a cédula de dinheiro e todos esses deslocamentos de valores que se dão no contexto operacional da performance, inverto as proposições de transferência monetária que se têm preestabelecidas nos semáforos com os pedintes, propondo, assim, friccionar a lógica capitalista que “confunde” as relações de preço e valor. Tal procedimento cria uma ressonância molecular que atravessa diretamente as segmentariedades molares geradas pela economia capitalista, desloca as macros dimensões de representações do sistema nessas micro instâncias de encontros e afectos.
Solidatário
No segundo modo de operação que proponho, “solidatário”, busco um agenciamento mutante, em que afectos e perceptos atravessam indistintamente transeunte e artista, coexistindo nas elaborações das experiências realizadas. Por meio da solidão, busco mergulhar solidariamente nas multiplicidades, no coexistir das singularidades e das experiências presentes na cidade. Peter Pál Pelbart (2006) aproxima as ideias de solitário e solidário para falar de seres que caem no buraco negro em busca por novas conexões, novos cosmos; o autor afirma, também, como esses seres sempre atravessaram a filosofia de Gilles Deleuze como aqueles que trazem o sem-fundo à superfície. Indivíduos solitários e, ao mesmo tempo, que se abrem a agenciamentos coletivos nas superfícies e nos planos dos encontros. Habitar a solidão positiva, de modo que com sua passividade esses agentes esvaziam a mola do sentido
[…] que garante a dialética do mundo e põe tudo a correr numa desterriteriolização da linguagem, dos lugares, das funções, dos hábitos, ele não foge do mundo, mas faz o mundo fugir. Do fundo de sua solidão, tais indivíduos não revelam apenas a recusa de uma sociabilidade envenenada, porém são um chamamento para um tipo de solidariedade nova, o apelo por uma comunidade por vir. (PELBART, 2006).
Fissurar a segmentaridade da cidade, de sua arquitetura, de seus valores culturais e psicossociais, como afirma Fabião, se dá numa atividade paradoxal, onde não se recusa os valores da tradição, mas cria uma nova estética do precário “e assim dialoga com a tradição (simultaneamente mantendo-a, reinventando-a e abolindo-a) ” (FABIÃO, 2011, p. 70). Propor experiências artísticas com os transeuntes, que convoque as multiplicidades, gestar atos que atravessam as crostas que segmentam as vidas na cidade, novos modos de habitar, novos cosmos de relações: estas são buscas que me guiam na produção artística.
Figura 2 – cédulas carimbadas para a ação “Pro-pagando n° 2”. (Foto: Raphael Faria)
Encadeando os agenciamentos práticos propostos na filosofia de Deleuze e Guattari, juntamente às proposições de Eleonora Fabião e na articulação teórica de Pelbart entre solidário e solitário, proponho o modos operacional o qual chamo de “solidatário”, para pensar e criar práticas artísticas pautadas em gerar fissuras experimentais nas máquinas estruturantes segmentarizadas da cidade, ao passo que agenciam novos coletivos efêmeros. Penso essas operações pautado na noção de experiência em ato e coautoria, em que as relações entre arte e vida se implicam, e os processos artísticos são constituídos em parceria com o transeunte-artista, engendrando Novas Terras que podem ser habitadas de modos diferenciais e mutantes, junto a ecologias que des-re-territorializam os modos de habitação e também as organizações urbanas.
As ações que proponho, que operam nesse modos “solidatário”, são as proposições “Jogos Nº 1” e “Birutas Nº 1”. Em “Jogos Nº 1” elaboro colagens em placas de papelão, composições abstratas que utilizam basicamente o elemento gráfico linha. Proponho aos transeuntes que elaborem composições, por meio de operações que desejem, criando “novas organizações” com o material. As placas que compõem os “Jogos Nº1” apresentam uma potência de relação por suas formas geométricas e materiais, entretanto, não é claro o modo como essas relações podem se dar, e é o transeunte, coautor, que por um agenciamento criativo propõe essa nova composição. Estas placas quando dispostas pelos espaços, criam uma interferência na paisagem, gestando uma possibilidade de habitação, que brota dos espaços de trânsito da cidade. Este convite a habitar, a viver junto por um momento que seja, para gerar em coletivo agenciamentos criativos e micropolíticas do convívio, em busca de uma Nova Ecologia. Esses agenciamentos “solidatários” buscam atravessar as dinâmicas estratificadas dos espaços de encontro da cidade. A proposição dos “Jogos Nº 1” articula com os princípios da arquitetura, da agrimensura e dos monumentos, demarcando territórios, espaços e tempos novos junto aos transeuntes de modo “solidatário”, formando coletivos efêmeros que fomentam o encontro das multiplicidades presentes na cidade, des-reterritorializando em bando.
Figura 3 – Ação “Jogos Nº 1”. Universidade Federal de Uberlândia. 30/08/2016. (Foto: Calisson Alves)
É na lógica incompleta da operação, que não direciona a operação criativa, que se dá a abertura para que se possa buscar uma ecologia entre os indivíduos que operam a prática. A questão do direito que se dá na ação, surge ao passo que afloram problemáticas nos diferentes modos de operações que esses agentes compartilham dentro processo, gerando coletivos impossíveis, de multiplicidades, que entendo como agenciamentos “solidatários”, que compartilham uma comunidade de encontros. O interesse no trabalho é gerar espaço-tempo de encontros, Novas Terras, Novas Ecologias.
Figura 4 – Ação “Birutas Nº1” – Uberlândia. 18/11/2016. (Foto: Leticia Ferrucci)
Na proposição “Birutas Nº1” que também se agencia dentro do modo de operação “solidatário”, ocorrem ações que vão explorar as possibilidades de encontros, em que os (co) autores investigam variações de movimento do seu corpo em relação com sacolas plásticas e o vento. Os agentes participam ativando seus corpos e o espaço, onde as especificidades físicas e motoras de cada agente, ao ativar-se, soma-se, gerando uma comunidade de “birutas” que habitam esses espaços aéreos. O interesse no trabalho é ativar os corpos por meio da possibilidade de movimento que o vento cria nas sacolas e, dessa maneira, gestar experiências psicofísicas que vão afetar os corpos dos transeuntes que participam das proposições e a paisagem urbana que eles constroem em coletivo durante a ação. Um “balé maluco” que acontece no cuidado do compartilhar do espaço-tempo com o outro, na sutileza de agenciamentos, semelhantes aos de um devir criança. Busco por meio dessa proposição gerar a possibilidade de agenciamento que entendo como “solidatário”.
Cidade – Nova Ecologia – Uberlândia sou eu
Para que a cidade? Compreendo a cidade como uma complexidade de multiplicidades que estão lidando com estruturas de poder, se relacionando, se afetando, sendo afetadas, se envelopando, em uma terra governada e estratificada pela lógica esquizofrenizante do capitalismo, que segmenta dentro de um processo de unidade e homogeneização, não potencializando as multiplicidades. Lido com a cidade de modo a propor operações artísticas propositivas, agenciando a possibilidade de individuação das multiplicidades que convivem nos meios urbanos, gestando coletivos que se articulem em uma Nova Ecologia. De modo “solidatário”, empreendo práticas de me infiltrar nas estruturas solidificadas da cidade (rua, praças, instituições públicas e privadas), e des-reterritorializar esses espaços como locais potenciais de encontro e de vivência. No desejo de criar um mínimo de territórios existenciais, por meio de práticas que gerem movimentos de subjetivação, engendra-se nessas operações de deslocamentos materiais e imateriais, agenciamentos moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo.
Pelas aproximações das proposições com os transeuntes, na relação com o espaço urbano, é preciso destacar que os locais onde são realizadas as ações não são locais específicos de arte e o desejo de trabalhar em tais locais, aposta no potencial de agenciamento dos próprios afetos da cidade, reivindicando territórios:
Possuir um território, não é isso que pretende toda reivindicação, toda expressão? Toda reivindicação, toda pretensão não é, primeiro territorial, territorializante? Chegar num meio, nele criar hábitos, nele inscrever suas marcas e suas referências como delimitações, nele adotar condutas de acordo com determinados ritmos, em suma, compor um ritornelo, já não reivindicar um território, à maneira de um direito consuetudinário? Há reivindicação territorial, assim que há composições de espaços-tempos determinados, mesmo quando provisórios ou móveis. […] Com efeito, as pretensões não passam de composições de espaços-tempos – ou de ritornelos, isto é, uma vez mais, de territórios. (LAPOUJADE, 2015, p. 40).
Essa construção territorial é feita junto aos transeuntes que participam das ações, transformando esses locais de passagem que não fomentam afetos e relações em locais de arte. As ações desenvolvem uma des-reterritorialização desses espaços-tempos, onde eles se tornam locais de encontro, permissivos a relações de sensibilidade sobre a arte e a cidade, promovendo o encontro de diferentes individuações que trafegam pelos espaços em que ocorrem as ações. Para além da construção de uma nova relação estética com o espaço, há a construção de uma nova paisagem ética para o local. Mais fluida e participativa, essa arquitetura vai sendo trabalhada pelos coautores que operam construindo e modificando as composições dos espaços-tempos com seus corpos, de certa maneira agenciando questões que são congruentes aos processos de organização da cidade e os processos de segmentariedade.
As modificações que tais ações criam nesses espaços-tempos influenciam a relação do trânsito, muitas vezes desacelerando a temporalidade dos locais de passagem. As características dos locais de trânsito são des-reterritorializadas como locais de encontros, modulando esses espaços que já estavam enquadrados nas rotinas diárias dos transeuntes, que não eram mais percebidos em suas multiplicidades potenciais. Esses agenciamentos de espaços-tempos e matérias possuem características de apropriação e composição com as próprias estratégias do que aqui chamamos urbano: “O território é o primeiro agenciamento, a primeira coisa que faz agenciamento, o agenciamento é antes territorial” (DELEUZE; GATTARI, 1997, p.132).
Trabalhando com princípios de agenciamentos criativos, por meio da presentidade do corpo que se desloca e dos recursos oferecidos pelo meio, a práxis das ações se encontra nesse fissurar das segmentações, em busca por construir Novas Terras, novos planos de composição e monumentos coletivos. Os processos no capitalismo negam as multiplicidades. A relação “solidatária” perpassa um pensar cósmico onde as propostas se realizam em respeito a essas multiplicidades. Uberlândia sou Eu! Tomo o conceito de ecologia social de Guattari (1990), para mapear as relações operadas, que se propõem a deslocar o contexto urbano, as redundâncias do trabalho, do comportamento, das vizinhanças, convidando os transeuntes a experimentações de novos modos de ser-em-grupo, por efêmeros agenciamentos ético-estéticos, se abrindo ao caos, ao passo que iluminam um potencial institucionalizante da experimentação.
Os locais em que ocorrem as ações, espaços não formais, não institucionalizados como espaços de arte, são des-reterritorializados junto aos transeuntes, que agenciam essa nova arquitetura urbana. Dessa maneira, deslocando o transeunte enquanto artista, enquanto (co)criador, enquanto aquele que possui, dentro de uma relação social e micropolítica, potencialidade para engendrar Novas Terras, estabelecer territorializações, reterritorializações e desterritorializações dos espaços-tempos e dos planos de segmentos que pertencem às semióticas solidificadas. As ações agenciam reterritorializações dos espaços da cidade, aproximando as relações entre os corpos e meio, entre os agenciamentos de subjetivação e arte, entre arte e vida, na busca por gestar novos mundos.
Bibliografia
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1; tradução Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3; tradução Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1996.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? . tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
FABIÃO, Eleonora. Performance e Precariedade. Em: A performance ensaiada: ensaios sobre performance contemporânea. Fortaleza: Coleção Juazeiro; Série LICCA, 2011, p. 63 –85.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. São Paulo: Papirus, 1990.
LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. São Paulo: Edições n-1, 2015.
PÉLBART, Peter Pal. Como viver só. Palestra de 04 de agosto de 2006. Disponível em :< http://www.forumpermanente.org/event_pres/simp_sem/semin-bienal/bienal-vida/vida-doc/video/conferencia-6-como-viver-so> Acesso em: 11/04/2017.
Aceito em: 15/03/2018
[1] Graduando em Artes Visuais pela UFU- Universidade Federal de Uberlândia. Bolsista de iniciação cientifica FAPEMIG. Membro do grupo de pesquisa vinculado ao CNPq “Asfalto – texturas entre artes e filosofia” – http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7855832596713047 . E-mail: raphaelfaria@ufu.br
[2] Professora do curso de Dança da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Líder do grupo de pesquisa vinculado ao CNPq “Asfalto – texturas entre artes e filosofia” – http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7855832596713047 E-mail: ju_bomtempo@yahoo.com.br.
Performances e cidade: por uma “temporalidade do precário” em processos artísticos “solidatários”
RESUMO: Corpo e cidade. Se traz aqui uma maquinaria de corpo que opera em um modos que busca gerar novas ecologias, no sentido guattariano, nos territórios molarizados da cidade. Corpo aberrante que ilumina as margens do limitado, abrindo ao caos os territórios da cidade; devires que fazem flutuar os limites, esperança de novas terras. Agenciamento por linhas da arte, que buscam desreterritorializar as semióticas do Capitalismo Mundial Integrado, em uma micropolítica da existência que, junto aos transeuntes, desloca a cidade e a si, na práxis artística “solidatária”.
PALAVRAS-CHAVE: Nova Ecologia. Solidatário. Temporalidade do precário.
Performances and city: for a “temporality of the precarious” in artistic processes “solidatários”
ABSTRACT: Body and city. It brings here a body machinery that operates in a ways that seeks to generate new ecologies, in the guattarian sense, in the molarized territories of the city. Aberrant body that illuminates the borders of the limited, opening to chaos the territories of the city; becomings that make the limits float, hope of new lands. Agencement by lines of art, which seek to dereterritorialize the semiotics of Integrated World Capitalism, in a micropolitics of existence, which, along with passersby, displaces the city and itself in the “solidatária” artistic praxis.
KEYWORDS: New Ecology. “Solidatário”. Temporality of the precarious.
FARIA, Raphael Gonçalves de; BOM-TEMPO, Juliana Soares. Performances e cidade: por uma “temporalidade do precário” em processos artísticos “solidatários”. ClimaCom [online], Campinas, ano 5, n. 11, abr. 2018. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=9002