Pedra lascada, pedra polida | Telma Hoyler

Título | Pedra lascada, pedra polida

A série “Pedra polida, pedra lascada” foi desenvolvida a partir de reflexões com a floresta feitas em uma imersão no Parque Itatiaia (RJ). O nome do parque, em si, sugere o pensamento sobre a pedra. Na língua Puri, Itatiaia significa “pedra cheia de picos” ou “pedra pontiaguda”. Sempre tive o hábito de observar e sentir as pedras, mas deparei-me pela primeira vez, nesse parque, com uma novidade para além da variação de cor, tamanho, formato e textura: uma quantidade grande delas estava quebrada. Pedra quebrada, pedra lascada: não demorei a voltar em pensamento ao período em que os humanos eram essencialmente nômades e caçadores-coletores e aos primeiros instrumentos de caça feitos em madeira, osso e pedra lascada, como ficou também conhecida essa era, suplantada pela pedra polida, em que nos sedentarizamos e desenvolvemos a agricultura. Essa história contada e recontada sobre a civilização humana é frequentemente lida de forma linear e evolutiva, carregando a ontologia de um progresso iminente, da superioridade do homem (cis e branco) sobre o mundo, como se sua capacidade (na verdade desejo ou impressão) de dominar a natureza representasse uma superioridade moral, ética, estética e um posicionamento fora e para além dela. A série tece uma crítica a essa narrativa linear ao propor a recombinação de objetos situados em diferentes períodos históricos, questionando noções de espaço-tempo. Em “pedra polida, pedra lascada” vemos, formando um só corpo escultural, a combinação de pedras que nasceram junto às lascadas e elementos que descenderam do seu polimento, como foi o têxtil, possível a partir da agricultura. A catalogação das pedras de Itatiaia que meu trabalho evoca não se limita a reconstruir o passado, mas a tornar viva a memória. Afinal, o que chamamos de passado é apenas nossa longa regressão em direção ao presente (Agamben, p. 20). Nos lembra Krenak (2020) que o primeiro recurso do poder é nos separar de nosso passado, criando distinções que não existem e fazendo esquecer de que somos feitos. Ao misturar materiais e objetos que representam distintos espaços-tempo, imagino trajetórias possíveis que reconhecem a não linearidade da história e a indivisibilidade da vida humana e da floresta. Parafraseando o que também podemos dizer sobre as plantas, trata-se de perguntar como podemos contar histórias de pessoas e pedras se envolvendo umas nas vidas outras em processos de contornar-se (Myers, 2021). Não deixa de ser contraditório carregar para a cidade elementos da floresta, mas questiono, a partir desse deslocamento, o sentido de preservação enquanto congelamento estático da natureza, como se o respeito a esse princípio pudesse por si refrear nossa marcha insensata em direção ao abismo. Nada é estático na natureza. Mantendo-nos distante de seus elementos apenas reafirmamos a grande mentira, de que estamos apartados dela, e, dessa mentira não virá mudança. Nós não salvamos as árvores, são elas nos salvam assim como nos salva ouvir as pedras. Nesse sentido, desejo aprender com as pedras, circular e produzir conhecimento a esse respeito e um dia ver esse trabalho descansar de volta no Parque Itatiaia.


| FICHA TÉCNICA |

Nome | Telma Hoyler

Instituição | Universidade de São Paulo

E-mail | telmahoyler@gmail.com

Telefone | (11) 97607-0936

Materiais | linha, tecido e pedra

2022


HOYLER, Telma. Pedra lascada, pedra polida.ClimaCom – Políticas vegetais [online], Campinas,  ano 9, n. 23. dez. 2022. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/pedra-lascada/


 

SEÇÃO ARTE | ESSE LUGAR, QUE NÃO É MEU? | Ano 9, n. 22, 2022

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