Desenho de Rayane Barbosa Kaingang
ClimaCom – Rayane Barbosa*
Na minha época escolar, o contato com a educação territorializada se fortaleceu a partir das práticas pedagógicas, através do preparo de artesanatos e das histórias contadas por professores e pelos mais velhos. Foi a partir desse movimento que aprendi a escutar e praticar um diálogo com as formigas, o beija-flor e o milho, elementos que fazem parte da cosmologia Kaingang. É a partir desse movimento que trago na minha escrita uma educação voltada ao diálogo com o território e saberes. Na posição de professora e liderança você poderia nos dizer como traz as plantas, rios e toda a diversidade cultural a participarem de suas aulas?
Rosimeire Goiowe
Eu prezo muito por dar continuidade ao aprendizado dos meus estudantes a importância e a valorização da nossa cultura seja ela tanto com os animais, alimentação e o mais importante: o saber a nossa história, a história do nosso povo. Meu trabalho hoje, como professora, liderança, mãe, avó e tia, é fazer o reencontro e recuperar as demandas culturais que estavam adormecidas dentro de nós. Fomos oprimidos e obrigados a não praticar a nossa cultura, falar sobre a nossa história e sobre o fortalecimento da nossa identidade. Enquanto professora, eu prezo muito esse diálogo com os saberes culturais Kaingang, para que as crianças possam aprender a importância tanto de preservar nossa história e identidade. Conhecer a importância e o papel que as ervas-medicinais têm para nós, Kaingang, e como elas fazem parte do nosso dia a dia, seja na prática da preparação do remédio a partir delas, ou no aprender a ouvi-las. Hoje muitos de nós deixaram de lado e não praticam esses conhecimentos, procurando mais a medicação do não indígena. Nossos antepassados tinham vários conhecimentos a respeito dos animais, procuro mostrar e ensinar a meus alunos que os animais trazem notícia boa ou uma notícia ruim. Sempre preservei esse conhecimento com meus avós da etnia Kaingang e da etnia Terena, eu carrego junto comigo esses saberes que vieram através da minha da minha avó e da minha mãe. Eu tenho um cuidado de repassar esses conhecimentos e fazer com que as crianças possam conhecer o que os animais vêm transmitir para nós. Quando vemos a chegada de um beija-flor sabemos que ele vem trazer uma notícia, seja ela boa ou ruim. Às vezes sua chegada vem para dizer que uma visita chegará em nossa casa. Com as formigas também acontece a mesma coisa, elas vêm no nosso dia a dia, ou em sonhos, e trazem orientações e notícias de algo futuro. As formigas carregam a sabedoria dos nossos kofás (velhos, avós) e temos que saber decifrar o que os animais querem nos dizer. Para isso eu tenho que conhecer a história e as presenças desses seres tão importante para cultura Kaingang e ajudar a preservar esse conhecimento e conexão com o sagrado.
Climacom – Rayane Barbosa
Na escola vocês trabalham com os cânticos Kaingang e Krenak. A maioria das letras remete à presença dos seres da natureza. Por exemplo, alguns cânticos falam muito do espírito dos rios. Podemos perceber na prática cotidiana, a presença desses seres em nosso dia a dia. Como você se relaciona com os cânticos e como pratica esse respeito e diálogo com as letras e ritmos?
Rosimeire Goiowe
Os cânticos, para nós Kaingang, carregam muito a presença de nossos animais protetores. O cântico é sagrado. Nem tudo que sentimos e vivemos, podemos transmitir diante do cântico, porque o cântico transmite a nossa história, e algumas partes de nossa história são marcadas por muita dor e tristeza. Existem cânticos que foram feitos a partir da perda de nossos ancestrais, seja por luta ou até mesmo pela doença. Entoar o cântico, através do luto e da guerra, é muito triste. Devemos ter o cuidado de transmitir isso para nossas crianças pequenas, para não trazer esse sentimento doloroso no início de sua vida. Já para o jovem, que está na adolescência, primeiro contamos a história de como que aconteceram nossas perdas e guerras, para poder trazer esses cânticos voltado à parte do luto.
Para que eles possam ter o conhecimento e entoar os cânticos, primeiro têm que saber o porquê desses cânticos e o momento certo de entoar. Existem cânticos de alegria, festividades, luta e, também, existem os cânticos que fazemos para a chuva, natureza e rios.
Quando entoamos um cântico de tristeza, não podemos cantar quando estamos alegres ou quando estamos praticando a culinária, pois os espíritos que invocamos, não pode participar quando fazemos essa prática. A história escondida nas letras dos cânticos tem que ser passada para as crianças antes de fazer a prática do cantar, para que possam respeitar e entender a cosmologia do povo Kaingang, respeitar a história que é contada através dos cânticos. É como aprender a respeitar os ancestrais e os seres da natureza.
Leia a entrevista completa aqui.
* Esta entrevista foi feita por Rayane Barbosa Kaingang como parte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) – Educação Territorializada Kaingang: Pedagogias que Brotam do Chão – apresentado como requisito para obtenção do título de licenciatura em Pedagogia da Faculdade de Educação (FE), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob orientação da Profa. Dra. Susana Oliveira Dias.