Por: Meghie Rodrigues e Janaína Quitério
Climas novos estão surgindo enquanto outros desaparecem. Dados recentes do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) preveem que, em comparação com as médias climáticas registradas entre 1986 e 2005, o aumento na temperatura global por volta de 2100 pode variar entre 0,3ºC e 4,8ºC. Ondas de calor mais frequentes com maior duração em mais regiões do planeta (como a observada no sudeste da Índia no fim de maio desse ano) já afetam e continuarão afetando ecossistemas e, consequentemente, a distribuição da vida no planeta no futuro. E há quem considere que o Antropoceno – termo ainda em debate usado para designar a “era dos humanos” – está causando a extinção de várias espécies animais em um tipo de “defaunação” ou “desfaunamento”, termo inspirado no seu análogo mais próximo, o desflorestamento.
Urgência e complexidade também circundam a escolha de quais espécies priorizar em ações de conservação. A tarefa não é simples e suscita muito debate entre conservacionistas. Levar em consideração dados que constam em relatórios como a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em Inglês), o Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção, do Ministério do Meio Ambiente (MMA) ou a Lista de Espécies Ameaçadas de Extinção do IBAMA (que enumera exemplares da flora nacional em risco) é apenas um ponto de partida, mas não o suficiente, para informar políticas de conservação da biodiversidade. As listas elencam diversas categorias de alerta – no caso da elaborada pela IUCN, fauna e flora mundiais podem variar entre os grupos “de menor preocupação” e “extintos”, tendo “quase ameaçados”, “vulneráveis”, “em perigo”, “criticamente em perigo” e “extintos em seu habitat” como nuances entre os dois extremos.
De acordo com o documento do órgão internacional, 41% dos anfíbios, 26% dos mamíferos e 13% das aves se encontram sob ameaça de desaparecer em todo o mundo atualmente – números que proveem evidência para estudos que acreditam que estejamos atravessando uma sexta onda de extinção em massa no planeta, somando-se ao rol das cinco anteriores, que aconteceram nos últimos 600 milhões de anos, em decorrência de fenômenos naturais como glaciações e aumentos na temperatura global.
No Brasil, o Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão do MMA, é responsável por avaliar o estado de conservação de espécies da fauna nacional – que categoriza o risco de extinção entre espécies “ameaçadas” e “quase ameaçadas” (incluindo os grupos com dados insuficientes nesta categoria), e também se utiliza dos critérios da IUCN para classificação. Os dados vão para a Lista de Espécies Ameaçadas do Ministério do Meio Ambiente, cuja versão mais recente, de 2014, dá conta de que 1.173 grupos se encontram sob ameaça de extinção no país.
A lista aponta, por exemplo, que a subespécie rufa do maçarico-de-papo-vermelho, endêmica no Maranhão e no Rio Grande do Sul, teve sua população reduzida em 80% nos últimos 26 anos. Por terem hábitos alimentares bastante específicos (ovos de caranguejo são o elemento principal de sua dieta), a previsão é a de que essas aves continuem declinando a uma taxa de 3% ao ano pelos próximos dois anos, principalmente em decorrência da atividade humana nas praias – o que coloca as rufa na categoria dos animais que se encontram “criticamente em perigo”. Isso significa que, além da alta taxa de redução que sofreu nas últimas décadas, esses pássaros têm sua ocorrência restrita a áreas menores que 100 km² e população estimada em menos de 250 exemplares adultos – sob risco de extinção completa dentro de uma década ou em três gerações.
Taxa de extinção, área de distribuição e estimativa de indivíduos adultos vivos dentro ou fora de seus habitats são, aliás, os principais critérios que a IUCN utiliza para qualificar espécies como “vulneráveis”, “em perigo” e “criticamente em perigo” – que são as três subcategorias que formam o grupo de espécies ameaçadas. O cedro-rosa, que no Brasil ocorre no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, enquadra-se na categoria “em perigo”: sua população se reduziu em cerca de 70% nos últimos dez anos ou pelas três últimas gerações, têm sua ocorrência delimitada a áreas menores que 5 mil km² e conta com menos de 2.500 exemplares adultos vivos, com 20% de probabilidade de extinção completa nos próximos 20 anos ou cinco gerações. Já espécies vulneráveis como o sagui-da-serra-escuro, endêmico das florestas de montanha de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, tiveram sua população reduzida pela metade nos últimos dez anos ou pelas três últimas gerações, ocupam áreas menores de 20 mil km² e possivelmente têm menos de 10 mil exemplares adultos vivos hoje, com 10% de probabilidade de extinção em um século.
Tatear o porvir
A intensificação das alterações climáticas têm desafiado as ações de conservação da chamada biodiversidade. Em um estudo de 2007, John Williams, Stephen Jackson e John Kutzback, pesquisadores das Universidades de Winsconsin e Wyoming, nos Estados Unidos, estudaram a projeção de distribuição climática para o fim do século e seu impacto no ordenamento da vida no planeta. “O clima é um constritor primário na distribuição de espécies e no funcionamento de ecossistemas”, escrevem eles. E observam que ecologistas são confrontados com o desafio de prever mudanças “na abrangência de espécies, riscos de extinção, mudanças de biomas, regimes de perturbação alterados e em ciclos biogeoquímicos”. Mas prognosticar tais mudanças pode ser uma tarefa intricada por causa da dificuldade em se antever respostas dos ecossistemas a condições ambientais fora da experiência atual.
“Sabe-se que a distribuição da vida no planeta sofrerá mudanças, e que novas associações entre espécies animais e vegetais poderão surgir – mas não se consegue precisar como acontecerá”, conta Alessandra Penha, ecóloga, professora da Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora da Sub-rede Divulgação Científica e Mudanças Climáticas, da Rede Clima.
Em um futuro próximo, pode ser que combinar estratégias de conservação e restauração da diversidade biológica não seja o bastante. Para John Williams, Stephen Jackson e John Kutzback, técnicas usuais como a instituição de unidades de conservação podem tornar-se insuficientes para preservar a biodiversidade porque não se sabe como as espécies se adaptarão aos novos climas que surgem, especialmente no que diz respeito às suas rotas de migração.
Por sua vez, para Mariana Vale, professora do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora da sub-rede de Biodiversidade e Ecossistemas da Rede Clima, há muitas possibilidades de redistribuição de climas, biomas e espécies. Assim, pode ser que áreas que atualmente não são preservadas em unidades de conservação contem com mais biodiversidade no futuro. “Com as mudanças climáticas, existe uma redistribuição espacial da riqueza de espécies e talvez áreas de conservação que são muito importantes hoje deixem de ser importantes no futuro – simplesmente porque elas migraram”, observa Vale. Na falta de conhecimento suficiente para estabelecer quais serão estas áreas, será necessário estabelecer novas unidades de conservação para receber ou manter estas espécies em um cenário de variação do clima, alerta a pesquisadora.
Para Alessandra Penha, as mudanças climáticas podem ser catalisadoras do processo e tornam o cenário tão urgente que têm o potencial de revirar as posturas dos ecologistas ao avesso e fazê-los pensar, numa escala muito maior, em termos de conservar grupos funcionais ao invés de espécies particulares, ajudando a enxergar a biodiversidade de outra forma. “Pode ser que sejamos obrigados a classificar grupos pelas suas diversas funções ecossistêmicas: polinização, plantas que produzem frutos que atraem animais, dispersão de sementes, atração de fauna e de macrofauna decompositora do solo, por exemplo”, diz. Isso porque, segundo ela, talvez esta seja uma visão menos ambiciosa e mais realista da conservação, já que não há tempo ou recursos suficientes para salvar a todas as espécies: “vai nos forçar a ser menos puristas enquanto ecólogos”.
O valor da vida ou a vida como valor?
É possível medir o valor da vida? Valorizar algumas vidas em detrimento de outras? Há espécies que valem mais do que outras? É possível escolher quem deve viver e quem deve morrer? Para Thom van Dooren, pesquisador da University of South Wales, a conservação nos coloca diante dessas questões políticas e, por isso, precisa ser problematizada. Segundo o antropólogo, é necessário repensar a responsabilidade perante a vida dos animais com quem compartilhamos o planeta.
Em suas pesquisas, van Dooren dedica-se a complexificar a relação entre conservação e extinção, a partir de situações específicas nas quais práticas conservacionistas podem resultar no que ele denomina como “cuidado violento”: em nome da preservação de certas espécies, uma série de outras podem ser sacrificadas e mortas. Em meio a projetos conservacionistas voltados para aves no Havaí, o pesquisador busca explorar o tema da responsabilidade que, para ele, precisa ser pensada a partir do modo como as possibilidades de vida e de morte se configuram em contextos e situações específicas, em vez de se discutir princípios éticos de maneira universal e generalizada.
Responsabilidade também discutida por Donna Haraway no artigo “A partilha do sofrimento: relações instrumentais entre animais de laboratório e sua gente” (2011), no qual a filósofa da ciência considera que o discurso naturalista que separa animais e humanos é um erro porque distingue os seres que podem ser mortos dos que não podem: os animais tornam-se uma categoria de seres vivos já considerada de antemão como passível de ser morta. “Não é matar que nos leva ao exterminismo, mas sim tornar os animais matáveis”, escreve Haraway (2011, p. 43).
Para Thom van Dooren, que em seu livro traz o diálogo que teceu com Donna Haraway a respeito da partilha do sofrimento dos animais que participam de pesquisas experimentais em laboratórios, o ato de luto pelas extinções em voga pode se tornar vital para todas as espécies, humanas e não humanas.
“Maneiras de viver e de morrer são importantes; quais práticas multiespécie de viver e de morrer, historicamente situadas, devem florescer? Não há nenhum exterior de onde responder a essa questão obrigatória; precisamos dar as melhores respostas que venhamos a saber dar para articular e fazer alguma coisa, sem o truque da certeza de quem finge ser deus”, alerta Haraway (2011, p. 52). Nesse contexto, o desaparecimento de espécies torna-se uma questão política que envolve modos de articulação entre corpos, entre humanos e não humanos, entre seres vivos. Com essa outra perspectiva de problematização, pode-se deixar de pensar a vida como já constituída – e passível de ser quantificada, mapeada, listada e calculada: a vida torna-se o valor por meio do qual tudo é avaliado.