Por | Diana Zatz
Editora | Susana Dias
Como o uso da terra impacta a qualidade da água dos rios
Uma intervenção chamou a atenção na Bienal de Veneza em 2024. Vestindo máscara de mergulho, luvas de borracha e um macacão amarelo usado por equipes que trabalham com saneamento, o artista brasileiro Flávio Barollo trazia nas costas a frase: “banhista de rios urbanos”; ou em italiano: “bagnante dei fiumi urbani”. Essa performance integra a pesquisa artística do grupo (se)cura humana, que desde 2014 atua no cruzamento entre arte e ativismo ambiental. Essa ação já foi apresentada em outros espaços, como no Museu do Ipiranga, em São Paulo, com a participação de Flávio Barollo, Odacy Oliveira e Wellington Tibério e busca denunciar o absurdo de se naturalizar a transformação dos rios em esgotos a céu aberto, realidade comum em grande parte das cidades do Sul Global.
Em uma linguagem mais técnica, esses rios seriam classificados como classe 4, pela Resolução CONAMA nº 357/2005, da Política Nacional de Recursos Hídricos do Brasil (PNRH). Isso significa que são corpos d’água de qualidade péssima, altamente poluídos. “Essa condição os torna impróprios para o abastecimento público, já que a eficiência dos processos de tratamento disponíveis no Brasil não é suficiente para remover a grande carga de poluentes presente nessas águas”, explica Caroline Kozak, engenheira ambiental e pesquisadora do ONSEAdapta, na Unidade Científica de Qualidade da Água em Sistemas Ambientais. “Por exemplo, o Rio Tietê não é usado para abastecer a metrópole, a mesma coisa acontece na região de Curitiba, o rio Barigui é usado somente para despejo e a captação é feita na bacia ao lado, do rio Passaúna”, completa.
Pela legislação, esses rios podem ser destinados apenas à navegação e à harmonia paisagística. Não podem portanto ser utilizados para irrigação, pesca, recreação de contato secundário (como caiaque) ou primário (como natação), dessedentação de animais, entre outras atividades. Ainda assim, os “banhistas de rios urbanos” já realizaram um “mergulho” simbólico no Rio Tietê.
Wellington Tibério, artista, integrante do coletivo (se)cura humana e doutorando em geografia, pesquisa o desaparecimento dos rios da vida urbana paulistana e seu ressurgimento por meio de movimentos sociais e artísticos contemporâneos. Ele investiga a história de como os rios foram eliminados da paisagem urbana a partir de discursos sanitaristas e como o afastamento das águas das ruas e do cotidiano levou a uma desconexão da população em relação às águas. “Questionar um rio é questionar a própria formação da cidade e a nós mesmos, a nossa forma de vida”, diz Wellington.
Imagem 1. Crédito: (se)cura humana – imagem de Flavio Barollo
Qualidade da água
Em escala nacional, muitos corpos d’água sofrem com a poluição. E não estamos falando aqui dos impactos de grandes obras, barragens, transposições ou desastres socioambientais. Basta olhar para a poluição cotidiana, que se repete em rios de todo o país, não somente o Tietê, mas também o Guaíba, o Capibaribe, o Barigüi, o Arrudas, o Paraíba do Sul. Como fica a qualidade dessas águas?
Garantir disponibilidade de água em quantidade e qualidade adequadas para as presentes e futuras gerações é, provavelmente, o objetivo mais citado da Política Nacional de Recursos Hídricos. Mas se o termo quantidade pode ser compreendido sem grande dificuldade, remetendo à disponibilidade hídrica e reservatórios, a ideia de qualidade da água é bem mais complexa e controversa do que costumamos imaginar. Mas afinal, o que é uma água de qualidade?
Como explica Caroline Kosak: “Se é para beber, precisamos seguir os padrões da portaria do Ministério da Saúde. Se é para manter o enquadramento dos rios, aplicamos os critérios da Resolução CONAMA 357. Se é para garantir o tratamento adequado de efluentes, seguimos a CONAMA 430. Então, a pergunta não é só se a água é boa, mas boa para quê?”.
Um dos índices mais utilizados no Brasil para definir a qualidade da água é o Índice de Qualidade da Água (IQA), desenvolvido pela National Sanitation Foundation (NSF) e adaptado pela CETESB: “Se você pegar qualquer licenciamento no Brasil inteiro, qualquer programa de monitoramento de qualidade da água em rios, verá que são baseados no Índice de Qualidade da Água”, explica Kozak. O IQA tem a vantagem de ser bastante conhecido e de fácil comunicação. Quando se diz que um rio tem qualidade ótima, boa, regular, ruim ou péssima, a mensagem em geral é compreendida, no entanto, segundo Kozak, o índice não é suficientemente completo, deixando de fora uma série de parâmetros relevantes, como metais, contaminantes inorgânicos e agrotóxicos.
Já o enquadramento dos corpos d’água não é exatamente um índice, mas sim um instrumento de gestão previsto na Lei das Águas (Lei nº 9.433/1997). A lei determina que os rios devem ser enquadrados conforme seus usos e a Resolução CONAMA 357 estabelece os critérios técnicos desse enquadramento, dividindo os corpos d’água em cinco classes: a Classe Especial, que representa águas muito limpas (como nascentes), e as Classes 1, 2, 3 e 4, sendo esta última a de menor qualidade.
No entanto, a maioria dos rios brasileiros ainda não possui enquadramento oficial. Isso acontece porque a Política Nacional de Recursos Hídricos prevê que esse processo seja conduzido pelos comitês de bacia hidrográfica, que são instâncias participativas e deliberativas responsáveis pelo cuidado com os rios em suas respectivas regiões. Cabe aos comitês de bacia elaborar tanto o enquadramento dos corpos d’água, quanto o plano de bacia hidrográfica, instrumentos essenciais para a gestão dos recursos hídricos.
Apenas os rios que contam com um comitê ativo, com um plano de bacia e com um enquadramento formalizado podem, a partir daí, viabilizar a cobrança pelo uso da água. Sem recursos financeiros e institucionais, torna-se difícil tanto diagnosticar problemas, quanto implementar as ações necessárias para recuperar e proteger as bacias hidrográficas. “É importante se atentar para o fato de que o enquadramento dos corpos hídricos é um instrumento de planejamento e não de diagnóstico” explica Caroline Kozak. Ou seja, ele parte da condição atual da qualidade da água, mas tem como objetivo principal definir metas de melhoria para atender aos usos pretendidos naquele corpo d’água, isso é descrito na lei como “O rio que temos, o rio que queremos e o rio que podemos”.
Imagem 2. Crédito: (se)cura humana – imagem de Flavio Barollo, com inteligência artificial
Monitorar a qualidade da água de um rio não é uma tarefa simples
A célebre citação do filósofo Heráclito de Éfeso – “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio” – ganha um sentido especialmente concreto para quem se dedica ao monitoramento de qualidade de água em sistemas ambientais. Isso porque a qualidade da água é tão dinâmica quanto a água que corre nos rios. Uma amostra coletada hoje pode apresentar características completamente diferentes no dia seguinte. Basta que um resíduo seja lançado mais abaixo da coleta, ou logo antes, e toda a composição muda.
A Rede Nacional de Monitoramento da Qualidade da Água, coordenada pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), é a principal instância nacional de diagnóstico: “São cerca de duas mil estações de monitoramento de qualidade da água, o que, considerando o tamanho do Brasil, é praticamente nada” explica Kosak. Além disso, as coletas são periódicas, geralmente uma vez ao mês, e pontuais, o que pode gerar falhas nos dados: “Normalmente as coletas são feitas durante o dia, então, alguma indústria, por exemplo, pode deixar para lançar os efluentes durante a noite, evitando assim a fiscalização”, complementa, ressaltando que as coletas também não costumam ocorrer durante episódios de chuva, então não há informações sobre esses eventos.
Do ponto de vista legal, existem instrumentos como a outorga de uso da água e o licenciamento ambiental que visam coibir a poluição dos rios. Uma indústria, por exemplo, precisa monitorar e comprovar a qualidade da água que devolve ao ambiente após o uso, como condição para manter sua licença de funcionamento e sua outorga de uso do recurso hídrico. Nos centros urbanos, um agravante é que a rede de coleta de esgoto e a rede de drenagem pluvial frequentemente se confundem: “isso ocorre não apenas em bairros considerados irregulares ou com pouca estrutura, mas também em áreas nobres da cidade de São Paulo”, relata Wellington.
Esse tipo de fonte com uma origem precisa, como um cano de esgoto ou a saída de uma estação de tratamento, sejam elas legais ou ilegais, são conhecidas como fontes de poluição pontual. Mas existe também um outro tipo de poluição, bastante relevante e ainda mais difícil de monitorar: a poluição difusa. Resíduos sólidos, fumaça, óleo, poluição atmosférica, agrotóxico, fezes de animais; a poluição difusa é o resultado de tudo que é lavado dos entornos de uma bacia hidrográfica e que em algum momento acaba chegando dentro do rio, principalmente durante as chuvas. “Para esse tipo de poluição, a gente não tem nenhuma diretriz legislativa. Nenhum parâmetro de qualidade, nem um órgão responsável por esse cuidado”, explica Kosac.
Imagem 3. Crédito: (se)cura humana – imagem de Jennifer Glass
Investigando a poluição difusa
Segundo Deyvid Wavel Barreto Rosa, engenheiro civíl e ambiental e pós-doutorando do ONSEAdapta, na Unidade Científica Águas Urbanas e Soluções Baseadas na Natureza; a poluição difusa é uma preocupação relativamente recente no Brasil: “Com o déficit histórico de saneamento básico, a poluição difusa parecia uma problemática secundária. Mas agora, com algumas bacias chegando perto da universalização do saneamento, podemos voltar o olhar para esse tema que precisa ser enfrentado”, afirma.
Enquanto a poluição pontual costuma apresentar variação pequena e constante de vazão, o que permite projetar estações capazes de tratá-la de forma eficiente, a poluição difusa chega em pulsos, carregando grandes quantidades de sólidos e nutrientes em pouco tempo. “Quando chove e a vazão dos afluentes aumenta, mesmo estações de tratamento não conseguem processar todo o volume. Essa água acaba indo para os rios e reservatórios”, explica Deyvid.
Caroline Kozak dedicou seu mestrado e doutorado ao estudo da poluição difusa em corpos d’água. Para isso, utilizou um equipamento automatizado, instalado diretamente no leito do rio. O sistema era composto por um engradado com 20 garrafas e programado para entrar em ação quando o nível da água aumentava 5 centímetros em, no máximo, 10 minutos, indicando um episódio de chuva. A partir daí, o dispositivo coletava amostras em intervalos regulares, enchendo até 20 garrafas por evento. “No doutorado, monitoramos dois pontos do rio e, em alguns casos, peguei três chuvas seguidas. O laboratório ficava lotado de garrafinhas. Eu era a primeira a chegar, a última a sair”, relembra. No mestrado, conduziu todas as análises sozinha; no doutorado, contou com a ajuda de duas alunas de iniciação científica e um técnico de laboratório.
Monitorar a poluição difusa é um grande desafio. “O IQA não mede a maioria dos poluentes da poluição difusa, assim como os enquadramentos de corpos hídricos”, diz Kosac. Além disso, a chuva carrega resíduos das superfícies, mas também dilui os poluentes, o que pode mascarar os dados. Ainda assim, sua pesquisa permitiu identificar que mesmo pequenas variações no uso da terra contribuem para o aumento da carga de poluição que chega aos rios.
Solo impermeabilizado, ausência de vegetação ciliar, redes de drenagem de águas da chuva precárias e lixo acumulado: a poluição difusa está diretamente ligada à forma como usamos o território. Assim, discutir qualidade da água envolve discutir ocupação do território e governança das bacias. Por isso, Deyvid destaca as Soluções Baseadas na Natureza, também conhecidas como Infraestruturas Verdes e Azuis, como uma alternativa estratégica: “Elas permitem controlar a poluição na própria fonte, de forma difusa, reduzindo a carga que chega ao rio”.
Imagem 4. Crédito: (se)cura humana – imagem de Wellington Tibério
Modelagem
Apesar da complexidade, controlar a poluição difusa costuma ser mais barato do que arcar com os custos de tratamento e recuperação ambiental implicados em suas consequências. É o que diz Deyvid e colaboradores no artigo Water quality benefits of implementing Green and Blue Infrastructure in a peri-urban catchment. Sua abordagem propõe simulação de cenários comparando uma urbanização convencional, com intervenções tradicionais para drenagem de águas das chuvas, a um cenário alternativo que incorpora soluções baseadas na natureza.
Desde a graduação Deyvid trabalha com controle de inundações e modelagem hidrodinâmica. A modelagem é uma representação matemática da realidade. O modelo é alimentado com diversos dados de um território e calibrado até que ele de fato dê resultados compatíveis com os observados na natureza. Por exemplo, a vazão do rio simulada pelo modelo para um determinado evento de chuva e a vazão medida no rio no mesmo evento, precisam estar o mais próximo possível. Com o modelo calibrado é possível alterar os parâmetros de entrada para simular cenários futuros alternativos.
Aplicar o modelo para qualidade da água é um segundo passo mais complexo, ainda mais considerando a poluição difusa, “pois nesse caso precisamos considerar o processo de acumulação da poluição na superfície, o processo de carregamento dessa poluição pela chuva e os processos de deposição e de depuração, então realmente é bastante desafiador” explica Deyvid.
Mesmo com as dificuldades para se avaliar as dinâmicas da poluição difusa, é fundamental enfrentar esse problema: “Em Belo Horizonte, o regime hídrico é marcado por seis meses de chuva e seis meses de estiagem. Então, no período seco a poluição que chega aos cursos d’água não é difusa, e sim de esgoto e efluentes. Com essa ‘poluição de base’ calibrada, tudo o que se soma à carga poluidora durante as chuvas é considerado poluição difusa, e é bastante significativa”, complementa. Nesse caso, citado por Deyvid, um dos parâmetros da poluição difusa que é bem evidente são os sólidos, sedimentos que têm impacto relevante para o assoreamento de corpos d’água, alteração da dinâmica fluvial e comprometimento da capacidade de armazenamento de um reservatório, como aconteceu na Lagoa da Pampulha logo após um processo de intensa urbanização na cidade.
Recentemente, Caroline Kosack, Deyvid e suas respectivas Unidades Científicas, se propuseram a realizar uma parceria dentro do ONSEAdapta, e usar os dados coletados em campo por Caroline sobre poluição difusa para construir e ajustar modelagens e então avaliar cenários alternativos para qualidade da água.
Imagem 5. Fonte: Equipe Micrópolis – Programa Já Tô Lá @jatola.barreiro
Soluções baseadas na natureza
As Soluções Baseadas na Natureza (SBN) voltadas à qualidade da água têm dois objetivos principais: reter e reduzir a poluição que chega aos rios e córregos, e tratar parte dos poluentes. Tecnologias como jardins de chuva e células de biorretenção utilizam camadas de vegetação, brita, areia e mantas geotêxteis para filtrar contaminantes, fazendo com que a água alcance os corpos hídricos com menor carga contaminante.
Para Deyvid Rosa, a adoção de SBNs enfrenta desafios que vão além da questão técnica. “Estamos falando de limpeza urbana, recuperação de vegetação ciliar e mudanças na própria lógica de urbanização”, explica, “São soluções simples, ninguém está reinventando a roda, mas essas soluções precisam ser implantadas de forma ampla e distribuídas pela bacia hidrográfica, desde as cabeceiras”, completa.
Essa abrangência exige intervenções tanto em áreas públicas quanto privadas, o que implica também em um processo de conscientização e engajamento social, capaz de incentivar mudanças de comportamento. A participação popular no planejamento das soluções baseadas na natureza é fundamental, até porque elas exigem manutenção contínua para permanecerem eficazes.
Deyvid Rosa e seus colegas atuam em múltiplas frentes para promover discussões sobre as águas e as Soluções Baseadas na Natureza. Desenvolvem oficinas participativas, formações em escolas públicas e consultorias para administrações municipais. Além disso, em parceria com a empresa Micrópolis, trabalharam com a produção de imagens de futuros possíveis, alterando digitalmente fotografias de córregos degradados para criar a imagem de rios limpos, com vegetação nas margens e até crianças brincando na água. Esse exercício com as imagens, segundo Deyvid, é uma forma potente de mobilizar o imaginário das comunidades com as quais trabalham, instigando os participantes das oficinas a se engajarem no cuidado com os rios.
Nas pesquisas de Deyvid sobre cenários futuros, além de considerar o uso do solo e a aplicação de Soluções Baseadas na Natureza (SBN), também estão sendo incorporados os efeitos das mudanças climáticas nos modelos. E nesse sentido, Deyvid conta que um resultado preliminar, e polêmico, aponta que a velocidade das mudanças climáticas é maior do que a capacidade atual de transformação do paradigma e do modelo de urbanização necessários para adaptação.
A qualidade das águas está em risco, e a forma como ocupamos o território tem relação direta com sua degradação. As cidades exercem uma pressão gravíssima não apenas sobre os rios que as atravessam, mas também sobre os lençóis freáticos e as bacias hidrográficas vizinhas. E não são apenas as cidades: práticas como a agricultura extensiva e o desmatamento também ampliam essa pressão. Mesmo com todo o conhecimento já acumulado, ainda não fomos capazes de reverter esse quadro.
Imagem 6. Fonte: Equipe Micrópolis – Programa Já Tô Lá @jatola.barreiro
Cenários futuros alternativos
A partir das provocações do coletivo (se)cura humana podemos pensar a cidade como uma obra coletiva e contraditória: “A produção da cidade não é apenas material, mas também subjetiva, é o nosso desejo de conforto que faz com que eu queira asfalto, são os hábitos e formas de perceber o mundo que moldam nossas cidades”, diz Wellington Tibério. Segundo ele, é preciso agir no presente para produzir desejo de uma outra cidade possível.
Um dos primeiros e mais duradouros trabalhos do coletivo (se)cura humana é o lago artificial da Travessa Roque Adóglio, no bairro da Pompéia, em São Paulo. Antes apenas um corredor de concreto sobre o Rio Água Preta soterrado, a Travessa começou a ser transformada por artistas e moradores que passaram a se reunir para habitar e realizar intervenções naquele lugar. Uma das primeiras experiências com o rio, foi retirar uma tampa de bueiro para tornar possível vê-lo passar logo abaixo.
Wellington conta que um dia, ao andar pelo bairro, passou por uma pequena nascente, algo que poucos moradores da cidade são capazes de notar. A água, limpa, corria continuamente pela Sarjeta, descendo a rua até um bueiro onde caía no rio Água Preta, que nesse ponto já se encontra bastante poluído. A sacada de Wellington foi de que aquela nascente estava mais alta do que a Travessa Roque Adóglio na geografia do bairro. Então o coletivo decidiu levar essa água até lá, “a vontade era proteger essa água limpa, cuidar dela pelo máximo de tempo possível”, relata Wellington.
Com alguns metros de cano, o grupo conseguiu captar a nascente e conduzir a água por gravidade até a travessa. No início, a água era armazenada em uma caixa d’água velha, mas logo surgiu a ideia de criar um pequeno lago coletivo que se tornou símbolo do lugar. Análises indicaram que a água tem boa qualidade. Peixes introduzidos para controlar larvas de mosquito e plantas aquáticas se desenvolveram bem, comprovando a saúde do ecossistema.
Com essa nova configuração, a Travessa passou também a ser frequentada por pessoas em situação de rua, que usavam a água para tomar banho e lavar roupas. O sabão, no entanto, comprometia a vida dos peixes e das plantas. Com isso, foi instalado um tanque de lavar roupas separado. Outras medidas de cuidado foram se fazendo necessárias: limpeza regular da tela que evita entupimentos dos canos, pequenos reparos e reconstruções após as enchentes. “Dá muito trabalho, requer manutenção constante, mas é essa a ideia, ir convivendo com essa materialidade da cidade”, diz Wellington.
Criado sem autorização formal, o lago foi ameaçado por pressões de condomínios vizinhos, mas resistiu. Hoje, a Travessa é muito mais que um beco: tornou-se um espaço de convivência e imaginação coletiva. Crianças pintam os muros de contenção do lago, moradores cuidam dos peixes e artistas seguem criando em diálogo com as águas. “É uma obra viva, que se refaz o tempo todo. E é nesse processo que a gente vai aprendendo e criando outros sentidos de cidade”, diz Wellington.
Caroline, Deyvid e Wellington, cada um à sua maneira, buscam provocar rupturas nas formas convencionais de pensar e viver os rios nas sociedades urbanas. Caroline insiste que as políticas públicas e os instrumentos legais precisam considerar os efeitos da poluição difusa. Deyvid projeta cenários de futuro e expõe o descompasso entre a velocidade da degradação e das mudanças de comportamento. Já Wellington, com o coletivo (se)cura humana, aposta no espanto como uma forma de disputar sentidos sobre a presença da água na cidade, mostrando que rios soterrados e esquecidos podem voltar a ser experiência e campo de aprendizado e de convívio.