Por | Diana Zatz
Editora | Susana Dias
Em 2024, as inundações no Rio Grande do Sul mobilizaram as mídias do país e deixaram muitos de nós com uma imensa sensação de impotência. Mas para um grupo de pesquisadores ligados ao INCT Observatório Nacional de Segurança Hídrica e Gestão Adaptativa (ONSEAdapta), aquela tragédia foi um disparador. Foi nesse cenário que Marcos Benso, pós-doutorando e integrante do grupo, foi provocado por seus orientadores, Mário Mendiondo e Suzana Montenegro, a pensar a resiliência das escolas brasileiras do ponto de vista da segurança hídrica.
A pesquisa, que já vinha sendo realizada a partir de uma revisão de literatura, ganhou uma nova motivação. Ao acompanharem notícias e relatos daquele desastre, os pesquisadores que formam a componente Educação do ONSEAdapta perceberam um aspecto fundamental: as escolas funcionavam como uma rede de resposta, essencial para a resiliência das comunidades. Marcos contou que parte dessa reflexão veio do relato de sua irmã, professora no Rio Grande do Sul. Na escola em que trabalha, rapidamente, a coordenação pedagógica começou a mapear os alunos em situação de vulnerabilidade, acompanhando suas condições e oferecendo suporte. A escola é uma comunidade organizada, uma rede preparada para enfrentar melhor o desastre.
Educação e redução de riscos de desastre
Depoimento de “Camila Benso” – professora de geografia na rede estadual de educação do Rio Grande do Sul e conta sua experiência como educadora nas enchentes de 2024.
A relação entre educação e redução de riscos de desastres é amplamente estudada no Japão, especialmente no contexto de terremotos e tsunamis. Nesses casos, destaca-se o papel educativo de longo prazo: ao adquirir conhecimento, alunos, professores e a comunidade ampliam sua compreensão sobre os riscos e se preparam melhor para enfrentá-los. Essa abordagem preventiva é conhecida como estratégia ex-ante, ou seja, ações realizadas antes que o desastre aconteça.
No Brasil, o principal programa com essa abordagem é o Cemaden Educação (CEdu), vinculado ao Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden/MCTI). Segundo a pesquisadora Heloisa Tavares, foi durante uma viagem técnica ao Japão que Carlos Nobre, então diretor do Cemaden, percebeu a importância atribuída à educação preventiva desde a infância no país. “Isso acendeu uma luz para que o Cemaden também investisse em um projeto voltado à educação”, relata Heloisa.
Atuando desde 2014, o CEdu tornou-se uma referência nacional na produção de metodologias participativas e materiais didáticos voltados à construção de uma compreensão crítica e territorializada dos riscos socioambientais. O programa busca fomentar ações tanto na educação formal quanto na não formal, promovendo o engajamento de escolas e comunidades na construção de saberes locais. “A gente entrega metodologia investigativa para que as comunidades construam esse conhecimento local”, explica a pesquisadora.
A iniciativa de contato com o programa parte, em geral, de professores das áreas de Ciências ou Geografia, interessados em aplicar os conteúdos em sala de aula e envolver a comunidade escolar. Embora os materiais sejam de acesso público, ações formativas presenciais, acompanhamentos mais estruturados e diagnósticos locais dependem da aprovação de projetos e da captação de recursos.
Bem-estar social e segurança hídrica
Para o grupo de pesquisa do ONSEAdapta, outro ponto relevante para a reflexão sobre educação e segurança hídrica é o conceito de bem-estar social do sociólogo norte-americano Corey Keyes. Esse conceito seria a capacidade dos indivíduos acreditarem que vivem em um ambiente seguro, com apoio comunitário e condições de desenvolvimento. Quando há insegurança no acesso à água, seja por escassez ou excesso, afeta não apenas a infraestrutura escolar, mas também seu papel como espaço de estabilidade e de construção de futuro.
Investir em educação hídrica amplia a capacidade de resposta a eventos extremos e fortalece a autonomia das comunidades. A disseminação do conhecimento técnico-científico, quando acessível, contribui para decisões mais acertadas antes, durante e depois das emergências. Isso reduz vulnerabilidades históricas e aproxima a sociedade de uma condição mais equilibrada de bem-estar.
O indicador
Depoimento de “Cheila Baião” – bióloga, mestre em Ciências Ambientais e doutora em Desastres Naturais. Professora da rede pública estadual paulista desde 1999, atua com educação voltada à segurança hídrica, integrando temas curriculares com projetos educativos práticos. Sua pesquisa no mestrado resultou no desenvolvimento de um protocolo participativo para análise de bacias hidrográficas com estudantes, que deu origem ao livro Ampliação da Concepção Ambiental: Contribuição Metodológica com Estudo de Bacia Hidrográfica na Educação Básica
Não faltavam boas justificativas para buscar estabelecer uma relação entre educação e segurança hídrica. O segundo passo seria desenvolver um indicador. Vale lembrar que apesar de estarmos em meio à discussões de sociologia e educação, Benso, seus colegas e orientadores são, na grande maioria, engenheiros, e portanto seu trabalho passa por medir volumes, calcular vazões, planejar barragens, modelar cenários futuros. Nesse caso, a questão de Benso era: como seria possível estabelecer um indicador, ou seja, uma métrica quantificável para calcular a resiliência hídrica das escolas brasileiras.
A antropóloga Andrea Ballestero, em seu livro A Future History of Water, mostra que dispositivos técnicos como índices e fórmulas para precificar a água não são neutros. Eles não operam apenas com base na objetividade, mas envolvem escolhas políticas e éticas sobre o que deve ser medido, valorizado e protegido. Nesse sentido, criar um indicador que relaciona educação e segurança hídrica, por exemplo, não é só um exercício metodológico, mas uma maneira de redefinir o problema e abrir uma nova frente de ação pública. Para Ballestero, é nesses deslocamentos aparentemente técnicos que se cria as condições para enfrentar as contradições do presente.
Encontrei virtualmente com Marcos Benso. Ele compartilhou sua tela e me permitiu ver o que ele chama de “prévia”, ainda não pública, de um dos resultados mais palpáveis da pesquisa: uma base de dados nacional que cruza a localização de cada escola brasileira com indicadores de vulnerabilidade hídrica à seca e inundação. Esse mapa virtual ainda não está pronto para ser divulgado. Há questões éticas em jogo – ele faz questão de destacar. Não se trata de um mapeamento de risco pois não tem esse nível de detalhamento, mas pode ser uma ferramenta importante para políticas públicas e trabalhos didáticos. Ainda assim, não resisti: pedi para olhar a situação de uma escola da região onde vivo, na bacia do Rio Buquira. Logo descobrimos que a escola Estadual de Monteiro Lobato tem alta resiliência à seca (como já era de se esperar), mas baixa resiliência a inundações.
Para chegar a esse nível de precisão, algumas bases de dados foram fundamentais. A primeira delas foi o Censo Escolar Anual, produzido pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), que concentra dados detalhados sobre cada escola do país e passou a incluir dados georreferenciados a partir de 2021. “Nem todas as escolas estão georreferenciadas ainda, mas estão contempladas 163 mil das 180 mil unidades escolares brasileiras, incluindo escolas rurais e indígenas. Com isso, a gente abrangeu uma comunidade estudantil de cerca de 45 milhões de estudantes”, diz Marcos Benso.
Outra fonte de dados importante foi o Indicador de Segurança Hídrica da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Esse indicador foi criado em 2017, durante um dos piores ciclos de seca no país e tem como foco a escassez de água, não inundações. Mas ele traz um mapeamento detalhado das microbacias hidrográficas, com base na codificação do Sistema Geográfico Brasileiro. Ao cruzar essas informações com o georreferenciamento das escolas feito pelo INEP, a equipe conseguiu localizar cada unidade de ensino dentro da bacia onde está inserida e verificar a vulnerabilidade das escolas à seca.
Faltava ainda uma forma de estimar a vulnerabilidade das escolas às inundações. Então os pesquisadores recorreram ao método HAND (Height Above the Nearest Drainage), desenvolvido no Brasil sob coordenação dos pesquisadores Antônio Donato Nobre (CCST INPE) e Luz Adriana Cuartas (CEMADEN), e hoje usado internacionalmente. Esse método permite calcular, a partir de um modelo topográfico digital, a altitude de um ponto do território em relação ao curso d’água mais próximo. Áreas situadas a menos de 5 ou 10 metros do leito dos rios, por exemplo, tem alto potencial de inundação. O INPE já havia aplicado esse modelo em escala nacional, o que permitiu ter um panorama das escolas vulneráveis também ao excesso de água.
A pesquisa incorporou também o mapeamento de risco geo-hidrológico elaborado pelo Cemaden que identifica áreas vulneráveis a deslizamentos e inundações rápidas. E para finalizar, foi adicionada uma variável que considera a existência de sistemas de alerta: municípios monitorados pelo Cemaden perdem um ponto no índice de vulnerabilidade, já que contam com mecanismos de aviso antecipado em caso de desastre.
Os dados e o problema
Os dados são preocupantes: 57,7% dos estudantes no Brasil estão em escolas com baixa ou mínima resiliência a enchentes. Já a vulnerabilidade das escolas brasileiras à seca afeta 33,9% dos estudantes. Esse resultado talvez devesse figurar como abertura em uma notícia jornalística, no entanto é importante refletir sobre que tipo de agência uma afirmação como essa exerce no leitor. Exclamar o desastre pode não apenas informar, mas também paralisar. Os pesquisadores partiram de muitas reflexões e chegaram a um dado que de fato anuncia um problema, mas que também parte de uma vontade de ação. Então como podemos permanecer com o problema, como diria Donna Haraway, enfrentando as crises contemporâneas, sem buscar soluções fáceis ou respostas rápidas?
Atualmente, cerca de 800 instituições integram a rede colaborativa do Cemaden Educação, um número ainda modesto diante da quantidade de escolas localizadas em áreas de risco no Brasil, mas mesmo enfrentando desafios importantes, como a escassez de recursos e a enorme dimensão territorial do país, o CEdu vem fortalecendo a capacidade de resposta de escolas e ampliando a consciência sobre a importância da educação na redução de riscos de desastres.
Denise Taffarello, também pesquisadora da componente Educação do ONSEAdapta está propondo uma nova frente de reflexão, em que elabora a possibilidade de inclusão da dimensão educacional no Plano Nacional de Segurança Hídrica, publicado pela ANA (2019). Atualmente o plano se concentra em quatro dimensões: social, econômica, de resiliência e ecossistêmica. A proposta de pensar a educação como uma quinta dimensão parte da compreensão da urgência de formular políticas públicas voltadas à formação de estudantes críticos e capazes de dialogar com os desafios do clima e da água que enfrentamos e que ainda estão por vir.
Aprender com a água
Depoimento de “Fernando Almeida” – educador e coordenador do Núcleo de Educação Ambiental e Climática do Instituto Conservação Costeira (ICC), que atua há mais de uma década na cogestão da APA Baleia Saí, em São Sebastião (SP). Morador da região há 16 anos, Fernando coordena o “Projeto Escolas Seguras, Educando para o Risco”, que promove educação climática integrada à redução de riscos e desastres em escolas públicas.
O conceito de alfabetização hídrica, embora já figure entre as discussões acadêmicas e políticas sobre sustentabilidade e governança da água, ainda é incipiente e controverso. Inspirado pela alfabetização científica, busca desenvolver ferramentas conceituais e práticas para compreender os ciclos da água, os riscos associados à sua escassez e poluição, e os caminhos possíveis para uma gestão mais justa e sustentável.
Há iniciativas concretas que atuam nesse campo. O programa Observando os Rios, da Fundação SOS Mata Atlântica, é um bom exemplo. Criado nos anos 1990 com o objetivo de mobilizar a sociedade pela despoluição do rio Tietê, hoje reúne cerca de 2 mil voluntários monitorando 112 rios e corpos d’água em 67 municípios de 14 estados da Mata Atlântica. Por meio de kits simples de análise da água, a iniciativa incentiva coletivos diversos – escolas, ONGs, conselhos, associações e grupos da sociedade civil – a se organizarem para realizar coletas mensais, produzindo dados sobre a qualidade dos rios em seus territórios. Os relatórios anuais do programa se tornaram referência na pressão por políticas públicas e ações locais em defesa das águas.
Aline Cruz, bióloga e educadora ambiental, é uma das coordenadoras do programa. Ela conta que conheceu o Observando os Rios quando ainda era professora da rede pública em Ilhabela. “Quando levava os alunos para o rio, os moradores começaram a notar aquela movimentação, ver os jovens medindo a água. Isso despertou uma nova percepção na comunidade”, lembra. O dado vira diálogo, e o diálogo vira cobrança por cuidado, por transparência.
Para aprender com a água, talvez seja necessário fomentar uma Educação Ambiental Revolucionária, como propõe Marcos Sorrentino e colaboradores no livro Crise Ambiental e Educação (2024). Para os autores esse é “um caminho possível para nos ajudar a resistir e (re)existir no Antropoceno, por meio da indignação, da conexão com a Terra, a terra, o território, o comum e o espírito”. Essa perspectiva reforça a urgência de uma educação ambiental crítica, que articule saberes diversos, reconheça conflitos e promova pertencimento. A água, nesse horizonte, não é apenas um recurso a ser gerido. É também memória, identidade e possibilidade de futuro.
Outra frente do grupo ONSEAdapta é a Ciência Cidadã, da qual Marcos Benso participa. A proposta é que o banco de dados gerado pela componente Educação do projeto seja alimentado pelas estratégias participativas das escolas. Assim as próprias comunidades escolares podem inserir dados locais, ampliando a conexão e transformando uma ferramenta técnica em uma plataforma viva.
Nos últimos anos, pesquisadores das chamadas ciências duras vêm reconhecendo o papel da educação, das artes e das humanidades no enfrentamento da crise socioambiental. Fica cada vez mais evidente que se trata de uma crise também cultural, política e social. Por isso, cresce o reconhecimento da necessidade de dialogar com outras áreas do conhecimento, com outros saberes e com a experiência dos que vivem as ausências e excessos da água no cotidiano. O desafio é incorporar essas reflexões em estruturas que ainda operam com base em indicadores, metas e resultados. Talvez aí esteja a beleza de transitar entre diversas ciências e nesse caso, a educação pode ser a ponte entre a ciência e a experiência, entre o dado e o vivido.
| Pegada hídrica |
A série de reportagens e entrevistas “Pegada Hídrica” é parte de um projeto de pesquisa em divulgação científica integrado ao INCT Observatório Nacional de Segurança Hídrica e Gestão Adaptativa (ONSEAdapta). Este projeto propõe uma reflexão audiovisual sobre as questões teóricas e também sobre as imagens que são utilizadas e geradas nas pesquisas que compõem o INCT, com o objetivo de investigar formas não convencionais de divulgar e afetar os públicos sobre o tema da segurança hídrica. Esse projeto é financiado pelo programa Mídia Ciência de jornalismo científico da FAPESP, Processo: 2023/11956-0.