O Astro do Tempo e o fim da Era: a crise ecológica e a arte de assuntar entre os quilombolas do Alto Sertão da Bahia


INTRODUÇÃO

Dois homens viviam outrora mergulhados no tempo exterior das intempéries: o camponês e o marinheiro, cuja utilização do tempo dependia, hora a hora, do estado do céu e das estações. Esquecemos por completo tudo o que devemos a estes dois tipos de homens, desde as técnicas mais rudimentares às produções mais sofisticadas. Certo texto grego antigo divide a terra em duas zonas: aquela em que um mesmo utensílio passava por ser uma pá de moinho e aquela em que os passantes reconheciam nele a pá de um remo. Ora, estas duas populações desapareceram progressivamente da superfície da terra ocidental; os excedentes agrícolas e os navios de grande tonelagem transformam o mar e a terra em desertos. O maior acontecimento do século XX continua a ser, sem nenhuma contestação, o desaparecimento da agricultura como actividade principal da vida humana, em geral, e das culturas singulares. Vivendo apenas no interior, mergulhados exclusivamente no primeiro tempo, os nossos contemporâneos, empilhados nas cidades, não se servem da pá do moinho nem do remo, ou pior, nunca os viram. Indiferentes ao clima, excepto durante as suas férias, em que redescobrem, de forma arcádica e estúpida, o mundo, poluem ingenuamente aquilo que não conhecem, que raramente os atinge e nunca lhes diz respeito.

Michel Serres. O Contrato Natural

Este artigo acompanha observações e especulações dos quilombolas da comunidade de Malhada[2], no município baiano de Caetité – BA, a respeito das mudanças ecológicas, formuladas a partir da constatação da mudança de Era. A percepção de que a Era mudou ou está em vias de mudar ressalta uma alteração que faz variar o potencial de criar, e que é sentida ou percebida através de afecções do astro do tempo[3].Sob o signo da mudança de Era, as pessoas, os animais, as plantas, a terra e a água vão diferençando em seu potencial criativo.

O movimento desse pensamento ecológico, que se defronta com a mudança de Era e, no limite, com a possibilidade do fim do mundo, é articulado e ponderado por uma arte de assuntar atenta à instabilidade do pensamento e dos agenciamentos de enunciação. A precaução no ato da enunciação conduz a uma atenção aos artifícios que mediam a prática de assuntar e de adivinhar. Assuntar também é uma forma cautelosa de lidar com “assuntos pesados”, e afrontar algo que ultrapassa a experiência cotidiana e alça o domínio do Mistério, do sobrenatural, do tempo de Deus. A prática de assuntar é cercada de muita cautela, pois, nesses momentos, lida-se com um acontecimento no curso do qual apenas se têm notícias parciais, no limiar das transições sobrenaturais.

Assuntar e adivinhar constituem, então, modalidades enunciativas e práticas de conhecimento mediadas por artifícios. Essas modalidades especulativas são, aqui, tomadas como um modo de conhecer que agencia sinais e compõe o sentido dos acontecimentos, distinguindo-se tanto da profecia quanto da previsão. A arte de assuntar é caracterizada por uma incompletude fundamental, pela recusa da unidade de significado e da síntese totalizadora do sentido dos acontecimentos. A arte de assuntar lida com o perigo, com a indeterminação e com a instabilidade, e se arrisca, continuamente, a cada especulação, colocando em curso um pensamento nômade agitado pelo humor e pela precaução.

São vários os sinais da mudança de Era. Contudo, o mais preocupante é a alteração no modo de criar, através do qual se formula a problemática de uma crise ecológica. Não se trata de uma crise ecológica identificada por um diagnóstico externo: a crise ecológica é pensada e problematizada na medida em que afeta a capacidade criativa da terra, das plantas, dos bichos e das pessoas.

Para entender esse tipo de reflexão, é preciso prestar atenção ao modo como os sinais e eventos são articulados, acompanhar as redes de sinais parciais e heterogêneos que as pessoas traçam ao assuntar a respeito da mudança de Era.

A mudança de Era remete a uma alteração mais radical nas condições de produção da vida naquele lugar. A mudança que se avizinha afeta a experiência das pessoas e a capacidade que elas têm de torná-la inteligível ou apreensível. Em outras palavras, ela afeta as estruturas cognitivas, perceptivas e afetivas, e tensionam o meio através do qual se produz sentido dessa experiência, a linguagem. Tal mudança é antevista, ou melhor, adivinhada por uma saturação singular de sinais.

Na mudança de Era, o verbo “mudar” sinaliza uma transformação mais brusca do que os processos habituais traduzidos pelo verbo “demudar”, com o sentido de modificar novamente ou continuar mudando. Variar ou demudar é esperado como curso normal da vida e do tempo meteorológico. É possível dizer, por exemplo, que o tempo está demudando, quando se refere a uma variação conjuntural do astro do tempo. No entanto, quando se fala em mudança de Era, recobra-se o sentido de ruptura da palavra “mudança”.

Assim, o tema da mudança de Era aparece na fala nativa quando se constatam alterações na capacidade criativa da terra, do sol, da água, do astro do tempo, que configuram um colapso no fluxo ecológico da da criação[4]. Não somente os animais e as plantas experimentam o enfraquecimento de sua potência criativa, como também a capacidade criativa ou produtiva das pessoas sofre bloqueios. O astro do tempo, que articula esses fluxos heterogêneos, passa a dar sinais de colapso. A terra, os ventos, o sol e o regime de chuvas entram em descompasso, e torna-se mais difícil compor com esses fluxos alterados de modo a propiciar o desenvolvimento das plantações e das criações de animais.

A proposta é seguir os movimentos especulativos de meus interlocutores na medida em que são impelidos pela constatação de transformações ecológicas articuladas em bloco como prenúncios de uma mudança de Era. Nesse movimento do pensamento ecológico quilombola, acompanha-nos Maria de Epídio, Leonilda, Teresa, Joaquim entre outros agricultores da comunidade de Malhada que compartilharam comigo suas inquietações e especulações.

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A comunidade de Malhada é parte de uma constelação de comunidades negras rurais das serras de Caetité[5], na região do Alto Sertão[6], no sudoeste da Bahia, que estão próximas a uma mina ativa de urânio radioativo das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), empresa pública instalada em 2000, conhecida pelas pessoas da roça como Urana. Nos últimos três anos, essas mesmas comunidades foram incluídas no roteiro de construção de um parque eólico por empresas privadas, como EPP e Renova Energia, designadas em bloco como Eólica[7]. A esse cenário de tensões se acrescenta uma intensa seca pela qual o Semiárido baiano passou no ano de 2012. Essa complexa conjuntura impelia as pessoas a refletirem sobre as mudanças climáticas e as possíveis influências das energias Urana e Eólica nas atuais condições ecológicas.

A seca do ano 2012 fazia os quilombolas gastarem horas de conversa especulando a respeito da dimensão e do caráter das transformações. O período do auge da seca, entre os meses de agosto e setembro, também incitou a reflexão acerca da distribuição das chuvas, que a cada ano se tornava mais instável.

Ao longo da estiagem daquele ano, frequentemente, uma anciã da comunidade de Malhada, Maria de Epídio, assuntava as alterações do astro do tempo e as afecções nas lavouras e hortas, articulando, com muito cuidado, observações e preocupações com a contaminação decorrente da atividade de exploração de urânio radioativo na mina situada a cerca de 7 km da comunidade de Malhada. A arte de assuntar ou de prestar assunto constitui uma forma de criatividade que perscruta, tateia, conjuga sinais e levanta questões. No exercício dessa arte de articular sinais, Maria inquiria, cautelosamente, o sentido daquelas alterações ecológicas:

Atualmente tá todo mundo tendo medo da Urana. Tá aquele medo ali abafado, porque a gente não tem certeza. Antes o povo lá onde tá a Urana produzia muita coisa, agora não pode produzir nada, porque tá tudo contaminado. […] E não vinga! O que planta queima tudo. O pessoal está quieto aí e tudo mais, mas tem um assunto que está atingindo. Não é assim, não! … Às vezes, é o tempo também, né? Porque mudou o astro, diz que o astro baixou. O astro é o estado da lua, do sol, de tudo isso aí, do plano do astro. O planeta, o estado, as coisas… Essa seca assim é por isso. Mas aí, já é contado, ninguém tem dessa certeza. Eu me acho assim, está difícil do pessoal organizar essas coisas. Eu me acho é que nem as tornas [torres eólicas], uns falam que não prejudica, outros falam que prejudica. E lá é-vai. Outros falam “não pode vender!”. Outros, “não, é só aqueles tempos que eles ficam aí, com pouco, eles tornam a entregar outra vez”. Mas esse assunto não vai entregar. […] E a roça não está dando nada. O planeta não está dando nada. Tudo é fraquinho. Não veve nada nesse ano, não veve nada, só da bolsa família. A gente planta, porque, às vezes, aí vai saindo um pezinho de milho, um pezinho de mandioca. Agora a roça nossa, a gente não pode parar. Nem que seja um pé. Eu planto nem que seja um pé! Dá o que der, eu planto! Eu não paro meu serviço, não. Por mod’esse pessoal da eólica, por mod’eles, eu não paro! E o governo, tem vez que chega um moço que fica corrigindo o que a gente está plantando, mas eu não paro! Esse ano mesmo vou plantar no meu quintal. Não pode parar de plantar!

Na fala de Maria de Epídio, a instalação da Urana prefigura um conjunto mais complexo de mudanças, uma saturação de sinais através da qual as pessoas da Malhada anteveem que a Era está mudando. A Urana é o ponto a partir do qual Maria reflete e descreve mudanças no astro, no planeta, alterações nos estados, nos corpos e no modo de viver que infletem sobre a possibilidade de criar/produzir. A instalação das empresas de exploração mineral e energética nas imediações das comunidades negras rurais não representou simplesmente a apropriação da terra ou da água “em si”, mas uma sensível alteração nas próprias condições de possibilidade de criar a vida. É a partir das alterações na criação que os quilombolas formulam questões sobre o problema da crise ecológica.

Maria se preocupa com a restrição à possibilidade de criar, com a capacidade de plantar e criar pequenos animais. O potencial criativo dos seres vem sendo ameaçado por outra articulação ecológica na qual “nada veve” e há muitos bloqueios no fluxo criativo. No afrontamento a esse cenário preocupante que se avizinha, persistir plantando e buscando compor com o ‘fluxo da criação’ constitui uma maneira de divergir[8] e resistir.

 

O ASTRO DO TEMPO E A MUDANÇA NO MODO DE CRIAR

Maria de Epídio é muito cuidadosa ao assuntar e levantar questões e não fecha as possibilidades de outros caminhos enunciativos. Ela observa que depois que a Urana chegou, a Era começou a se diferenciar em relação ao tempo que ela alcançou. A Urana é tomada como um sinal tonante de uma mudança em curso, onde se cruzam várias linhas, além da contaminação da Urana, a seca persistente nos últimos anos, a alteração no astro do tempo, inversões e desajustes ecológicos que prefiguram sinais de uma mudança de Era.

Como explicou Maria, astro do tempo é aquilo que está acima da terra, é uma quentura, uma transformação. Cada uma dessas transformações é caracterizada como astro de chuva, astro quente ou astro frio. O astro do tempo agencia cortes e fluxos atmosféricos nos referidos estados do sol, da lua, do vento ou da água. O astro do tempo constitui o ponto de articulação que permite a variação e novos cortes e fluxos nos estados. Contudo, a partir da constatação de que o astro baixou, nota-se um colapso nessas transformações que acaba por bloquear a variação. A seca está extensa demais, assim como as transições dos estados atmosféricos estão mais lentas. Como Maria observa, o astro está mais baixo e o sol está mais forte e bate na pele igual uma pimenta.

No curso de sua reflexão, Maria também considera um problema energético, e observa essas energias que vêm chegando às comunidades rurais, a Urana em 2001, a luz elétrica em 2008 e a energia eólica (que tentava se instalar em 2012), como algo pesado e forte que assentou por ali. O astro do tempo pode estar também sofrendo alterações dessas energias. Ao dizer que “a Urana está contaminando nosso estado”, Maria articula de modo indiscernível o estado da Bahia e essa composição de estados que perpassa o astro do tempo, vulnerável àquelas energias.

Essas energias” estão afetando o astro do tempo. É prestando assunto a todas essas alterações que Maria conjectura que a Era mudou ou está mudando. E essa mudança é intuída como algo mais recente. Já faz alguns anos que as pessoas mais velhas da Malhada observam que a Era está mudando. Todavia, apenas começaram a considerá-la mais seriamente a partir dos últimos dez anos, momento em que se constata que o astro do tempo está alterado e, em razão dessas afecções, a capacidade produtiva dos seres também está diferente.

Nessa outra Era antevista, que a chegada da Urana e das outras energias prefiguram, o mantimento que resseca nas roças precisa ser comprado no mercado da cidade. As pessoas são impelidas a buscar mais dinheiro para comprar comida para suas famílias e para as criações. Comprar mantimentos que poderiam ter sido plantados na própria roça é um sinal crítico para agricultores e indica alterações das capacidades ecológicas de criar e de fazer fluir o potencial produtivo.

Muitas pessoas das comunidades rurais das serras recusam essa conjuntura ao persistirem em plantar, recolocando em movimento o fluxo criativo, como faz Maria de Epídio. Ainda que venham as energias, os agentes dos programas governamentais e seus incrementos monetários, essas pessoas não deixarão de plantar, de estimular e propiciar o ‘fluxo da criação’. É esse fluxo que permite a renovação, a variação nas atividades produtivas e que recicla as potencialidades criativas dos seres. Isso lhes parece ser mais fundamental.

Nesse meio alterado, com o astro do tempo em colapso e a Urana na vizinhança atrapalhando o sustento, as pessoas também passam a lidar com a semiótica do Estado – através da aquisição de documentos, participação em programas de alfabetização, programa de construção de cisternas de captação de água das chuvas, benefícios de políticas públicas, necessidade da titulação da terra –, com a energia elétrica, com o consumo de produtos industrializados (alimentos e bens duráveis), com a presença preocupante das empresas de exploração de minérios e dos ventos.

Os inúmeros cadastros em programas governamentais que fornecem cisternas e dinheiro para comprar alimento e contornar as perdas consecutivas nas lavouras, mascaram apropriações menos perceptíveis das condições de possibilidade de criar a vida naquele lugar.

Um dos sinais mais atordoantes da mudança de Era é o fim da criação ou, pelo menos, de um modo de criar. As pessoas mais velhas se inquietam ao constatar, nas comunidades vizinhas, que muita gente deixou de criar animais e, sobretudo, de plantar roça de mandioca. A farinha, que sempre foi o último item alimentar a faltar durante os mais agudos tempos de seca, agora desaparecia das mesas dos seus próprios produtores. Um sinal de alerta para Leonilda, para quem “quando falta a farinha, falta tudo!”. Quando isso ocorre, é sinal de uma mudança expressiva e inédita nas condições de vida.

A farinha sumiu do cardápio de algumas casas e sua falta vem acompanhada por um momento de maior monetarização na comunidade. A farinha deixou de ser o termo constante das relações de troca, o lastro de todo o consumo, a base primordial da alimentação e o meio pelo qual se obtinha outros alimentos.

No distrito de Maniaçu, a noroeste do município de Caetité, cujo nome evoca a predominância do cultivo de mandioca, alguns agricultores deixaram de produzir farinha em razão do baixo preço que os comerciantes pagam pelo saco, sobretudo quando provém de localidades próximas à Urana.

O dinheiro das políticas públicas evita que o tempo da fome, anunciado pelo sinal da falta de farinha, atualize-se inteiramente. Como Maria nos faz notar com seu modo particular de assuntar, esses projetos sinalizam uma perda muito preocupante, a redução da capacidade de produzir com os mesmos recursos de outrora, com as condições que lhes são disponíveis. As energias vêm chegando e afetando o astro, e Maria inquieta-se com essa outra Era, em que as pessoas e a terra, as plantas e os animais estão enfraquecidos e o astro do tempo doente ou alterado não lhes oferece condições propícias para desenvolverem suas potencialidades produtivas ou criativas e até mesmo pro-criativas.

Em várias situações cotidianas, os quilombolas da Malhada percebem que a atividade de criar não é mais a mesma e pressentem um colapso no modo da criação. No entanto, eles não vinculam essas alterações sentidas cotidianamente a uma causa unívoca. As transformações são referidas em bloco, como os sinais de uma preocupante mudança de Era. A alteração de suas capacidades criativas remete a uma transformação mais global da possibilidade da criação. A mudança de Era não é um novo tempo, como uma nova fase da história, marcada pelo controle das empresas capitalistas sobre as condições ambientais. Trata-se de uma mudança do tempo e não uma mudança no tempo. Tudo é transtornado, inclusive o ritmo da vida, a longevidade, a velocidade e a variação do astro do tempo.

 

RESSONÂNCIAS PROFÉTICAS

Ao assuntar os sinais da mudança de Era, Leonilda evoca ressonâncias proféticas pronunciadas pelos antigos:

Finada minha avó, mãe Chica, dizia: “É, minha filha, você não sabe, mas vai chegar um tempo em que você vai falar: bem que a finada minha avó dizia que ia vir um tempo assim de tanta coisa que está aparecendo…”. E a gente está vendo como ela falou. [Chica dizia:] “Há de vir um tempo em que acabava gado, acabava tudo… E a mãe velha acendia a fogueira e o menino perguntava “osso de que é isso aqui? é de gado, é de galinha, é de cachorro”. Ia acabar tudo.

Nesse tempo futuro antevisto no prognóstico de Mãe Chica, as crianças não mais reconhecerão os animais de criação, pois estes terão desaparecido. Com a extinção dos animais de criação e a destruição da possibilidade da cocriação, os humanos estarão abandonados à atividade de se criarem sozinhos[9].Ao recitar aquela enunciação profética, Leonilda pressente que esse tempo está muito próximo. A constatação de que a arte de criar está ameaçada no presente encontra sentido na ressonância profética acerca da extinção da criação.

Leonilda também se lembra de outro eco profético do povo antigo. “Diz que ia chegar um tempo em que iriam pegar água do [rio] São Francisco”. E ela se intriga com isso, “Ô, moço, como pode ir pegar água daquela lonjura”.

Armela, avó de Maria de Epídio, também prognosticou a mudança de Era: “finada minha avó já falava: –‘De hoje em diante, nós vamos ver o que nós nunca viu. Diz que nós vai comer, o dinheiro vai chegar na nossa mão sem trabalho, você pega o dinheiro sem trabalhar’. E olha aí o aposento”. Essa ressonância profética completa o sentido da constatação de Maria de Epídio acerca da monetarização concomitante ao bloqueio nas possibilidades de criar. A enunciação profética de sua avó esboça o sentido de uma conjuntura que é significada quando Maria relaciona a fala profética ao advento do aposento, um meio extrínseco à arte de criar através do qual a alimentação é propiciada.

Entre as profecias atribuídas a Antônio Conselheiro, algumas delas encontram ressonância nos enunciados da mudança de Era. Uma dessas ressonâncias proféticas aparece durante uma conversa entre Isau e seu compadre Vino, do Lajedinho, comunidade contígua à Malhada, que, há alguns anos, havia se mudado junto com a família para uma comunidade próxima à cidade de Caetité. Da janela da casa de Vino, Isau observa as cercas de arame farpado e pronuncia: “diz que viria um tempo de muito pasto e pouco rastro[10].

Vino se lembra de que, há menos de vinte anos, quando ia à feira de Maniaçu, aos domingos, não se via tanto carro, ônibus e moto, as pessoas iam para as feiras a pé, por estradas e carreiros. Naquele tempo, também não se via tanta cerca. Gado, ovelha, cabra e porco eram criados soltos, e apenas as lavouras eram cercadas para proteger os mantimentos. E Vino reitera a constatação de Isau: “Antes era muito rastro para pouco pasto, hoje é pouco rastro pra muito pasto”.

Com aquela formulação, Isau e Vino caracterizam a lei da cerca, que proibiu a criação de animais soltos, e buscam criar sentido para a constatação de que os caminhos por onde antes se transitava livremente estão todos cercados. Isau atualiza ou faz ressoar, no presente, uma profecia de Antônio Conselheiro. Contudo, ela enuncia apenas a primeira parte da sentença. A segunda parte da profecia, o momento da totalização profética, “um só pastor e um só rebanho”, é suprimida.

Aquela mesma ressonância profética é também mobilizada para construir o sentido da constatação do desaparecimento de vários animais de caça. No curso daquele diálogo, Vino constata que os rastros dos animais das matas também estão sumindo. Veado e caititus viraram uma raridade e até mesmo caças mais numerosas, como tatu e os pássaros juriti, codorna e jacu, estão difíceis de encontrar nas matas e capoeiras dos gerais.

No ritmo daquela conversa, Isau e Vino passam do tema do desaparecimento dos animais de caça ao assunto do esgotamento das fontes. A falta de água completa aquele cenário preocupante, e Vino comenta: Acho que entramos no final da Era…”. Depois de uma pausa, ele retoma sua reflexão: “Mas será que o mundo acaba?”. Isau prossegue assuntando: “Eu me acho que quem acaba é nós”.

A alteração no ciclo da vida das pessoas e dos seres também é sentida no dimensionamento da longevidade. Para Maria de Epídio, e tantos outros anciãos da Malhada, hoje as pessoas estão vivendo menos, ao passo que, no passado, o tempo de vida era mais longo. De primeiro as pessoas viviam mais e eram mais sadias.

Se, por um lado, a vida está mais curta em sua duração, por outro, seu ritmo está mais acelerado. “As crianças estão criando ligeiro”, assim constatava Pretinha, enquanto conversava com sua tia Mariinha. “Antes a criança demorava oito dias para abrir os olhos. Hoje é com poucos dias e já quase fala de onde vem”, disse Pretinha, e, em seguida, lançou um prognóstico: “vai chegar um tempo em que criança vai nascer andando que nem bezerro. E bezerro vai nascer dando coice”.

A velocidade desses tempos afeta, também, a duração da vida humana. Se por um lado as crianças e os animais estão crescendo mais rapidamente, por outro, a duração da vida é mais curta. Essas alterações de ritmo e longevidade da vida humana são sentidas ou conhecidas por suas afecções nos corpos que, por sua vez, ficam mais fracos. Esse corpo alterado pela velocidade da Era que está mudando precisa ser reforçado por medicamentos. “Quando a criança está na barriga, a mãe já está vacinada, depois que nasce, recebe mais vacina. E vai ficando fraca”, observa Vino.

Até mesmo Mendonça, dos Gerais da Pindobeira, agente de saúde que atende a Malhada e comunidades vizinhas, não resiste a fazer seus próprios prognósticos e projeções. Dizia ele, em um tom grave: “Vai chegar um tempo em que as pessoas vão ter de tomar remédio para tudo, até para dormir”[11]. O uso intensivo de medicamentos também é arrolado entre os sinais da Era mudando.

Com o fluxo da criação em colapso, os animais, as pessoas e as plantas perdem a força vital e passam a contar com o aporte suplementar de vacinas, medicamentos e adubos. Assim como as criações, as crianças também passam a ser criadas na força da injeção. Os corpos das pessoas e dos seres arrefece ou modifica sua potencialidade ou capacidade.

 

ASSUNTANDO SOBRE A SECA

A partir do mês de agosto, intensificam-se as preocupações dos agricultores em relação à estiagem e à proximidade do tempo das águas. No ano de 2012, atravessou-se uma das maiores secas dos últimos anos. Joaquim da Malhada dizia que há 35 anos enfrenta a seca, contudo, nos últimos 10 anos, não apenas a estiagem se intensificou e tornou-se mais longa, como também a recuperação ou a renovação das capacidades produtivas da terra e das plantas, de um ano a outro, tornou-se mais difícil. Nessa série em que se acumulam anos cada vez piores para as lavouras, as pessoas comentavam que “a cada ano a gente chora o ano passado”. A seca prolongada era situada como um problema na reversibilidade ou recuperação do astro do tempo e da renovação do ‘fluxo da criação’.

Naquele mesmo mês, Joaquim da Malhada e seu vizinho Donizete, dois agricultores muito experientes, assuntavam sobre a seca do ano de 2012:

– E as plantas?, perguntou Donizete.

– Estão fracas, disse Joaquim.

– E o frio, será que não atrapalha, não? Não está nem nascendo?, questionou Donizete.

– Não, não nasce porque não quer mesmo, respondeu Joaquim. Teresa já cansou de plantar. Falei com ela: larga pra lá. O povo da roça está lenhado porque as plantas não querem. Eu lembro, quando a gente era novo, de um proprietário falando com meu pai que quando estava chovendo muito, eles precisavam do verão, as plantas também precisam de sol. Agora não, em 15 dias de sol já está tudo perdendo.

– Será que o pessoal mais novo vai conseguir plantar o que nós plantamos, milho, feijão como era antes?, Donizete prosseguiu com suas questões.

Donizete então prossegue dizendo que há muito tempo já vinha assuntando que as plantações estão enfraquecendo ano após ano. Mas, além de considerar a falta de chuva, Donizete suspeitava que poderia haver outra coisa afetando a produção de mantimentos. E pergunta a Joaquim o que ele pensa a respeito disso:

-Alguma coisa está mudando, pode ser até alguma poluição por aí. Pode ser até a Urana. Quem é que sabe?, assuntou Joaquim.

– E nós que já tem quase 60 anos, como é que vai ser o futuro da turma da roça? Donizete levanta a questão.

– O futuro? O futuro é o que nós viu, asseverou Joaquim.

O futuro é uma aposta na possibilidade da recuperação ou retomada do fluxo criativo imanente às ações produtivas. O tempo que se avizinha é conhecido pelas lutas que Joaquim e sua parentagem atravessaram, nas quais o tempo da fome ameaçava e as pessoas buscavam o ganhão, o trabalho agrícola diarista, para conjurá-lo. O que preocupa Joaquim e os anciãos da Malhada, diante dos sinais da mudança de Era semelhantes àqueles do tempo da fome, é se esse fluxo criativo será renovado ou revigorado, quando ele observa que, a cada ciclo de produção, as capacidades produtivas das plantas, do solo e do sol estão debilitadas.

O tempo da fome do passado[12] que o povo da Malhada e de comunidades vizinhas atravessou também era um tempo em que o ganhão superava a criação. Quando em condições meteorológicas de seca persistente, a crise arrasava as plantações, as pessoas partiam para trabalhar pelo ganhão para obter o de-comer a cada dia. Por muitos anos, as famílias não formavam sua lavoura própria, pois nos momentos das apostas agrícolas, precisavam trabalhar para outros produtores de farinha. Com muita paciência, as famílias, aos poucos, conseguiram formar a lavoura própria de mandioca.

Leonilda alcançou um tempo em que também faltou maniva. Quando um fazendeiro deu as cepas da mandioca abandonada na roça, seu pai juntou e formou sua própria roça. A lavoura deu muita mandioca e a fartura voltou. No presente, as pessoas se queixavam da dificuldade de encontrar manivas para plantar. E as lavouras de maniva estão diminuindo sua extensão em terra plantada a cada ano.

A falta da farinha é vista como um prenúncio de escassez extrema e de possível chegada ou retorno do tempo da fome. Leonilda se empenhava para que seus filhos continuassem tocando as roças de maniva e não deixassem faltar farinha, como um modo de afugentar e conjurar o tempo da fome.

A expressão “tempo da fome” compõe com os dois sentidos da palavra “tempo” – tempo meteorológico e tempo histórico – como algo que acontece aos dois tempos. O tempo da fome, enquanto uma configuração ecológica destrutiva, ameaça o presente. Contudo, a escassez atual apresenta outra configuração[13]: não é o alimento em si que falta, como no tempo da fome do passado que redundava em crises de abastecimento alimentar; no presente, o de-comer não falta, desde que comprado com dinheiro dos benefícios sociais ou do trabalho por ganhão. As condições ecológicas para produzi-los são bloqueadas por uma articulação ecológica complexa, nomeada e problematizada como mudança de Era, que inclui o agenciamento venenoso da Urana e a reivindicação de controle sobre o espaço pela Eólica.

É claro que esse conhecimento sobre o regime das chuvas se abre sempre para a possibilidade da intervenção de Deus, através da ação de renovação no ‘fluxo da criação’. A possibilidade de renovação da vida faz da equação de fartura e escassez ou de seca e abundância uma distribuição reversível e não linear.

Normalmente, o tempo das águas e o tempo da seca eram divididos em seis meses. A alternância ocorria naturalmente nesses dois períodos nitidamente marcados. Nos meses indicados pelas experiências de São João e de São Pedro, a chuva não faltava. Se em um determinado ano a plantação fosse fraca, nos anos seguintes, a fartura voltava às roças, que passavam a produzir mantimentos em abundância.

Nos últimos anos, os agricultores estavam desconhecendo os meses de agosto e setembro. Esperava-se que agosto e setembro fossem meses quentes, pois a quentura ao final da estiagem antecipa chuva farta no mês de outubro. Dito de outro modo, enquanto o astro não esquentar, não chove. Nos meses de agosto e de setembro, esperava-se, também, uma chuva esporádica, conhecida como a chuva dos umbus. Mas, há muitos anos, ninguém vê cair uma gota de água dessa chuva temporã. No ano de 2012, no mês de agosto, o frio foi acompanhado por uma neblina fina e o mês de setembro foi agitado por fortes rajadas de vento. Joaquim da Malhada assuntava essas alterações: “agora aí nós estamos vendo, aí dá os meses da seca e está neblinando e quando dá os meses das águas, falta chuva. A chuva está vindo na época que não é de costume”. Por fim, ele comenta: “esses tempos estão cansados de chuva”.

SINAIS DO TEMPO

O tempo meteorológico e o tempo do calendário se articulam de modo inextrincável. Os usos da palavra “tempo” transformam em sinonímia a homologia entre tempo atmosférico e tempo histórico ou, para usar os termos de Michel Serres (1990), o “tempo que passa e corre” e o “tempo que faz”. A mudança de Era ou o fim da Era atravessa e articula esses dois tempos.

O fim do mundo aparece como um acontecimento[14], uma virtualidade que se atualiza apenas parcialmente em um estado de coisas. Os sinais não apenas o expressam, como também são partes do acontecimento. Contudo, o fim do mundo lida com a possibilidade de atualização total do acontecimento e aguarda o momento de “realizar tudo”, em que aquela virtualidade antevista nos sinais se atualizará inteiramente no mundo.

De todo o calendário religioso, na comunidade de Malhada, a Semana Santa constitui o momento de maior gravidade e recolhimento. É quando as pessoas reforçam as rezas e jejuns tendo em vista a salvação da alma. Anualmente, na transição da Sexta-feira da Paixão para o Sábado de Aleluia, as pessoas da Malhada revivem a ansiedade do fim do mundo. Ao cair do sol de sexta-feira, muita gente se avoluma na igreja da comunidade, onde rezam até o momento em que se escuta o galo cantar. Somente depois desse sinal, todos saem da igreja e ajoelham-se em direção ao norte, para pedir “Haja Vista” à Nossa Senhora através de uma reza em sua homenagem. Quando todos estão ajoelhados em frente à lua, o cantador diz: “Haja vista, Nossa Senhora, que seu mundo não acabou!”. Se o galo não cantar, “a aleluia não passa” e o mundo acaba. Contam que houve um tempo em que Deus quis acabar com o mundo e Nossa Senhora intercedeu, pegou um punhado de terra, jogou dentro da água e disse “meu filho, longos tempos”. No entanto, ninguém sabe o que quer dizer o “longo”. E o fim do mundo permanece como possibilidade não subestimada.

Em todos os anos, o galo sempre cantou. Todavia, não há garantias de que ele cante no próximo ano. A cada novo ano, o galo tem cantando mais tarde. Na madrugada do Sábado de Aleluia de 2012, por exemplo, o galo cantou depois da uma hora da manhã. As pessoas contam que, há alguns anos, o galo cantava sempre antes da meia-noite. Houve ano em que, no momento de pedir “Haja Vista” para Nossa Senhora, deu um mal na lua, um lado dela ficou preto e o outro, avermelhado. Um sinal preocupante e, ao mesmo tempo, uma afecção perigosa num dia em que o fim do mundo é plausível. As pessoas que rezavam na igreja não consideraram prudente sair dela enquanto aquele mal não passasse e o dia começasse a clarear. A mudança de Era ou mesmo o fim do mundo são antevistos por sinais que se precipitam ao longo dos anos, com especial atenção àqueles que se atualizam nos dias da Semana Santa. Essas transições sobrenaturais são mais permeáveis em determinados dias do calendário religioso e, por vezes, intervêm no tempo cotidiano inesperadamente. Nesses pontos de transição, vislumbra-se o fim da Era e, no limite, o fim do mundo.

Enquanto não chega o dia de realizar tudo, o fim do mundo, assim como as transições sobrenaturais, aparece como um quase-acontecimento, no sentido de Viveiros de Castro (2008), como aquilo que quase acontece ao mundo.

Os sinais são inseparáveis do agenciamento enunciativo da adivinhação, uma arte que produz sentido com os sinais que se atualizam na superfície do acontecimento. Os sinais não pertencem a um regime significante, e a adivinhação não capacita ninguém a prognosticar o fim do mundo – um acontecimento que, em sua virtualidade, nenhum humano teria acesso ou poderia significá-lo de modo global. Aliás, a tentativa de atribuir significado aos sinais é vista como uma atitude ridicularizável.

As pessoas observam vários sinais do fim da Era, muitos dos quais se adivinham em alterações nos dois tempos. O galo canta mais tarde na madrugada da Sexta-Feira da Paixão, a farinha está acabando, o astro do tempo está doente, o sol está mais quente, as crianças crescem mais rápido e as pessoas vivem menos. Esses sinais dispersos fazem sentido quando são agenciados pelas artes de assuntar e de adivinhar que se atêm à constatação da mudança, sem procurar atribuir um significado totalizador. A mudança de Era, antevista nas ressonâncias proféticas, ganha sentido através da enunciação da adivinhação. Os sinais, em si mesmos, nada significam. As pessoas assuntam os sinais da mudança compondo com as ressonâncias proféticas e levantando projeções, contudo, com o cuidado de manter a produção de sentido na superfície dos acontecimentos e sem reivindicar um lugar de enunciação transcendente. Entretanto, essas ressonâncias proféticas não repercutem em um mesmo centro de enunciação como na voz do profeta.

A mudança de Era é antevista por rastros do passado e por sinais do futuro. A matéria da construção do sentido é a saturação desses sinais. Assim, a adivinhação interpela uma virtualidade transcendental e não propriamente o passado ou o futuro em si mesmos. Diferentemente da anunciação profética, o acontecimento não tem porta-voz e os seus sinais adquirem sentido através da adivinhação, prática enunciativa que não arroga a alcançar nem a transcendência profética nem o significado profundo da exegese. Embora evocassem fragmentos de profecias para criar o sentido dos sinais que se efetuavam no presente, recusavam assumir a posição de enunciação profética unívoca.

Nessas artes de adivinhar e assuntar, considera-se com muita atenção as afecções do enunciado, seus efeitos corporais e incorporais, as ofensas de que a língua pode ser veículo. Os encantos e os sinais que se mostram no tempo, nos dois sentidos, são matérias assignificantes, sutis aparições e, por vezes, perigosas e temidas. Os sinais, as aparições, as transições sobrenaturais de algumas datas do calendário religioso parecem momentos ou pontos em que a superfície do acontecimento, do Mistério ou tempo de Deus se dobra e, então, vislumbra-se e se afronta diretamente o perigo mais exasperador, o sobrenatural[15]. A mudança de Era é assimilada a um acontecimento em seu aspecto sobrenatural.

As artes de assuntar e de adivinhar buscam articular sinais, combiná-los, e produzir sentido com eles agenciando uma cadeia longa e extensível, sem pretender designar, definir ou significar de modo global o acontecimento com o qual se está lidando, seja a mudança de Era, seja o fim do mundo. Há muita precaução ao lançar essas articulações de sinais em um regime significante. Atribuir significado pode ser uma atitude presunçosa e ofensiva no sentido de tentar reter ou conter algo incomensurável. Não está em questão a verdade, mas uma tentativa provisória e mediada por artifícios de imaginar o acontecimento a partir de suas formas residuais.

Os sinais considerados pela adivinhação remetem e uma semiótica não significante[16].De modo análogo ao que Deleuze e Guattari (1995) conceituaram como uma máquina semiótica pragmática, esse modo de lidar com sinais não elege, como ponto de partida e de chegada, a determinação de um sujeito de enunciação e de um significado totalizador do enunciado. Ninguém sabe exatamente o que os sinais querem dizer, o que significam. Contudo, eles são adivinhados no processo de produção do sentido.

Quando alguém assunta a distribuição de chuvas através de alguns sinais, estes não são tomados como vaticínios. Os sinais das nuvens, do canto do pássaro e da lua não são promessas ou previsões, eles são indiferentes às expectativas de confirmação e exteriores a um regime de validação científica. Ninguém parecia perder a esperança quando os sinais não eram confirmados pela ocorrência da chuva. Assuntar ou adivinhar sinais constitui uma maneira de acercar-se das variações do astro do tempo, sem pretensão de enunciar previsões meteorológicas ou vaticínios. As especulações que meus interlocutores enunciam deslizam na faixa da incerteza e da indeterminação, e jamais tomam os sinais como uma prova, atestação ou indicações para um cálculo probabilístico.

Os sinais estranhos da mudança de Era mostram lampejos de um processo transcendental, incomensurável, indeterminável, entretanto, absolutamente plausível. Não se prevê ou se antecipa o futuro, adivinham-se os contornos do que está em vias de acontecer.

Neste ponto, a adivinhação[17] se distingue da anunciação profética na qual é a palavra divina que se encarna para apontar a direção de um novo mundo, de uma nova humanidade ou de uma nova Era. Como uma arte da imanência, a adivinhação não reivindica para si a transcendência profética. A adivinhação agencia os sinais dos acontecimentos e, ao mesmo tempo, evita encerrar uma totalidade de significação.

A adivinhação constitui um artifício para lidar com os sinais do acontecimento, algo que ultrapassa infinitamente a experiência ou o tempo de vida dos humanos e pertence a outra ordem de grandeza, como o astro do tempo, a mudança de Era e o fim do mundo. Cada enunciação articula sinais parciais e heterogêneos, organiza o meio próprio e nele se arrisca e se engaja. O processo de construção de sentido é, deste modo, mais arriscado e desprovido de garantias.

Por esse agenciamento múltiplo e arriscado, a adivinhação encontra seu meio de consistência ou plausibilidade em ontologias plurais ou universos múltiplos (STENGERS; NATHAN, 2004)[18]. A prática de assuntar ou adivinhar agencia delicadamente as redes de actantes cósmicos ou sobrenaturais que dão forma à mudança de Era. A previsão, ao contrário, lida com um universo único e com os fenômenos organizados na esfera do provável[19].A diferença entre adivinhação e previsão pode ser caracterizada não apenas em termos de possibilidade ou probabilidade (a adivinhação atua no campo do possível enquanto a previsão atua no campo do provável), mas também, como veremos adiante, pelo tipo de rede de actantes que cada uma das práticas mobiliza.

A adivinhação é uma prática de conhecimento muito difundida e não é domínio exclusivo de adivinhões especializados ou curadores. Cada pessoa pode desenvolver suas próprias capacidades aprendendo a atentar para sinais sutis, analisar coincidências, interpretar sonhos e lembranças, rastros e sinais. A adivinhação articula sinais que se precipitam na superfície dos acontecimentos. Esse modo residual e fracionário de se relacionar com os acontecimentos passados (rastros como precipitações de acontecimentos efetuados) ou futuros (através dos sinais como centelhas de acontecimentos em vias de se efetuar) faz da vida cotidiana uma aventura, uma vigilância constante das táticas de defesa e de proteção. Ela é como um jogo que muitas pessoas gostam de praticar. Essa atenção especial aos sinais e rastros expressa exemplarmente um modo de conhecer caracterizado pela prática de adivinhar o que pode ter acontecido ou o que está em vias de acontecer a partir de marcas sutis. Observar rastros e sinais caracteriza uma forma de inquirir o mundo, de acercar-se dele, um modo de conhecer os eventos.

 

O AMBIENTALISTA SABIDO E O AGRICULTOR

Com certa frequência, chega gente muito sabida às comunidades negras rurais de Caetité com o objetivo de ensiná-las. Esses sabidos[20] são quase sempre da cidade, como alguns ambientalistas e professores de agroecologia. Os sabidos defensores do meio ambiente se esforçam para que o povo da roça entenda o entendimento deles e que suas proposições sejam tomadas como pura objetividade. Ao se opor à prática das queimadas para formação de novas roças, os ambientalistas anunciam que elas intensificam a seca e fazem a água desaparecer dos poços. E assimilam a constatação da seca a uma relação de causalidade formulada como uma proposição absoluta e válida para todos os tempos e lugares.

Mas a experiência dos agricultores é bem diferente disso e faz proliferar outros elementos ao assuntar sobre a seca. Acurados observadores das condições climáticas, os quilombolas se recusam a entender o entendimento dos ambientalistas e a aderir a um esquema de explicação que esboça uma cadeia causal curta demais.

Quando querem mobilizar a proposição dos ambientalistas em suas especulações sobre a intensa e persistente estiagem ao longo dos últimos anos, meus interlocutores fazem uso de um modo de enunciação presidido pela expressão “dizem que”, que refrata as designações e repõe a indeterminação e a incerteza à enunciação e ao estado de coisas. Tal partícula de enunciação, “dizem que”, longe da pretensão de ensinar ou de emitir verdades absolutas, mantém o cuidado de não encerrar aquela enunciação em uma proposição exata e acabada sobre o fluxo da água ou o astro do tempo.

Ao final do mês de agosto, durante uma das reuniões na Malhada, convocada para organizar o Encontro Quilombola e criar estratégias para resistir à implantação do Parque Eólico, apareceu um ambientalista conhecido por sua participação na pastoral da Juventude como Joaquim da Juventude, mas também referido por algumas pessoas como “Joaquim Sabe-Tudo”. Enquanto as pessoas ali reunidas focavam na programação do encontro e na mobilização política para refrear a apropriação da terra de fundo de pasto da comunidade por uma empresa de construção de aerogeradores, Joaquim da Juventude pediu a fala e, inusitadamente, deu uma bronca nas pessoas presentes, alegando que elas não estavam cuidando do meio ambiente, tomando a reunião como uma oportunidade de ensinar o povo a preservar a natureza. Disse que havia visto muito plástico ao longo das estradas e clamava para que as pessoas evitassem consumir tanto plástico.

Joaquim da Juventude sempre foi bem-vindo na comunidade, mas, às vezes, chateava ao tentar ensinar o povo. Ele buscava prevenir as pessoas em relação ao “consumismo”, queria convencer as mulheres a abandonar o uso de fraldas descartáveis e, frequentemente, tentava infundir nas pessoas da Malhada a culpa ou a responsabilidade pela falta de água. Para se fazer mais convincente, ele costumava insistir que a prática de queimada das capoeiras nas terras altas e arenosas onde se planta maniva era a responsável por aquela seca, como se fosse um “castigo”. Habituadas às suas aulas longas, as pessoas da reunião o deixaram falar até esgotar a lista de recomendações e faltas. Sem interlocução, Joaquim da Juventude se convenceu da efetividade de sua lição e voltou para a cidade antes mesmo de terminar a reunião. Ao final daquela reunião, procurei Teresa e Joaquim para saber o que eles pensavam a respeito da fala do ambientalista. Teresa contestou:

– Dizem que não está chovendo porque o povo desmatou muito o mato, mas não é isso, não. Pra que lugar mais desmatado do que São Paulo? Só cidade, só cidade, cidade que some de vista e é o lugar que mais chove. Aqui, que desmatação que tem? Um tira um pau grande, já tem outro acompanhando aquele.

– Que desmatamento tem aqui?, Joaquim da Malhada, questionou. O povo põe uma rocinha desse tamanzinho, o resto é tudo mato. Esse Joaquim queixou com o povo por mod’a tirada de madeira. Foi uma revolução por mod’essa tirada de madeira. Dizia que a chuva não estava chegando porque o povo estava tirando madeira. O povo da CPT [Comissão Pastoral da Terra] e da AMATER [Movimento Ambientalista Terra de Caetité], ih, virou um nojo! Diz que estava desmatando, que o povo de primeiro tirava muita lenha… Agora só tem uma coisa que eu acredito que sim. Se tiver uma minação, você for na beira daquela minação e desmatar e queimar, a minação vai embora.

– É duas coisas: fonte não gosta de briga e não gosta que desmate e bote fogo na beira dela, de jeito nenhum, Teresa continuou a explicação. […]Mas não é só isso, não. Tem vários lugares aí que a gente está vendo que era cheio de água e acabou. Na barrinha [na Vereda dos Cais] era uma minação forte, acabou a água. É, moço, onde é que a gente plantava arroz. Tinha que saber onde capinar, campinava pra ali ir enxugando pra depois planar. Plantava arroz quase dentro d’água. É um assunto que a gente não está fazendo.

– Na [comunidade] Passagem da Pedra, era tudo desse jeito tinha um brejo tinha um rio nas águas [no tempo das águas] tinha que saber onde passar, secundou Joaquim. Aí nesses tempos – eu estava conversando com os meninos lá por esse rio – o brejo acabou. Em todo canto, não é só assim. A gente fala do que aconteceu, mas não é só isso. Por essas coisas que está acontecendo que é mesmo uma mudança. E com os outros também está acontecendo, né? Esse tipo de mudança. Que mudou, mudou. Tem um bocado de ano que não aconteceu mais que nem teve ano que deu fartura, agora parece que não quer. Mais ou menos uns 5 anos para cá as coisas diferençou mesmo.

As divergências ecológicas entre o agricultor e o ambientalista não se colocam em termos de diferentes causas para a seca geral, uma vez que são afrontadas diferentes maneiras de se enunciar uma crise ou problema ecológico. O ambientalista não assunta junto com as pessoas do lugar, ele já se coloca no campo de enunciação como alguém que “sabe-tudo” e tem acesso privilegiado ao conhecimento acerca da realidade da mudança climática e das alterações ambientais, e busca criar uma maneira tolerante e pedagógica de explicar o que já sabe aos agricultores.

Ao invés de lidar com divergências e levantar questões ecológicas capazes de envolver ou reunir diferentes observadores em torno de um problema, a prática pedagógica ambientalista quer produzir consensos precariamente configurados, como palavras de ordem que se ocupam mais em fazer obedecer do que em fazer pensar.

O sabido ambientalista corta uma rede muito curta e associa forçosamente a prática da queimada à seca. Ao reproduzir uma cartilha genérica da preservação ambiental, como uma vacina ou remédio para todos os contextos, ele toma a “natureza” como unidade monolítica, em relação a qual as pessoas do lugar deveriam assumir inteira responsabilidade.

Bem ao contrário, a arte de assuntar busca prolongar a rede, articular constatações e suspeitas, levantar questões, adicionando novos elementos através das reconsiderações “não é só isso, não”, “tem mais coisas afetando” e lidando com a dimensão do desconhecido. A palavra “assunto” designa aquilo com o que se lida sem, contudo, ser conhecido. As pessoas da Malhada rejeitam essa mera relação causal descontextualizada entre desmatamento e seca, e recusam atribuir um fenômeno climático de influências cósmicas e divinas à ação de algumas pessoas. A arte de assuntar compõe com o cosmos enquanto multiplicidade, sem procurar reduzi-lo a correlações causais.

O agenciamento do “dizem que” desmonta o reducionismo dessa outra formulação, mais interessada em convencer e sentenciar do que em fazer pensar ou prestar assunto ou engajar uma reflexão. Entre o desmatamento e a falta de água, há muito mais nuances e variações a serem consideradas.

Com certa frequência, depois que alguém formulava uma especulação, eu escutava reconsiderações do tipo, “diz o povo”, “são os homens que estão dizendo, mas ninguém sabe”, sobretudo, reconsiderações referentes a especulações sobre a seca ou o astro do tempo.

A seca de 2012[21] também era tema recorrente nos programas de rádio. A cada mês, uma nova previsão meteorológica era divulgada. Aos prognósticos e previsões propalados pelas rádios, Joaquim da Malhada respondia: “diz que os homens estão dizendo que vai chover nesta semana na Bahia. Deus ajuda que chove”. Às vezes, ele desafiava os radialistas e seus meteorologistas convidados a falar nos programas radiofônicos: “na semana passada os homens estavam dizendo que ia chover dia 15, hoje é dia quinze, e aí? Eles querem falar a verdade. Tem a moda de querer falar a verdade, falar que sabe”.

Joaquim se incomodava com os prognósticos dos meteorologistas, nos quais via uma atitude arrogante, e completava: “Só chove com a licença de Deus… O homem só manda até onde o braço alcança”. Às vezes, diante daquela estiagem prolongada, que eu jamais tinha presenciado, eu chegava a me alegrar com as previsões meteorológicas divulgadas nas rádios, e procurava Joaquim para comentar a boa notícia. Joaquim me respondia prevenindo-me sobre o deslumbre do enunciado dos meteorologistas: “quem diz isso é tudo comedor de feijão”. Os enunciados dos comedores de feijão não poderiam reivindicar qualquer tipo de forma transcendente de conhecimento acerca do astro do tempo, uma realidade descomunal em relação ao entendimento humano. Aliás, os enunciados que veiculavam essa pretensão poderiam ofender e infletir sobre o estado de coisa. As pessoas observavam que os tempos estavam mudando e preveniam-se com especial determinação dos enunciados totalizadores. Joaquim fundamentava essa precaução a partir da consideração de que

Os mais velhos sempre falavam que deus falou que, quando os homens passassem a saber mais do que ele, que ele mudava a época. De uns tempos para cá, a gente está vendo a Era mudando. Pai dizia que quando o homem quer saber mais do que Deus, Deus muda tudo.

Para Joaquim, os comedores de feijão não poderiam ocupar esse lugar transcendente de fala. Depois de considerar a objeção de Joaquim, as expressões dos radialistas passaram a me parecer como fórmulas com um poder quase encantatório: “vai chover no dia 15”.

As pessoas da Malhada não nutriam expectativas de que o sentido dos eventos climáticos fosse revelado por um sabido que se vê na posição de julgar e de falar a verdade. A arte de assuntar é refratária a definições unívocas e a pretensões de hierarquização dos enunciados e dos sujeitos de enunciação. É nesse sentido que a especulação e a arte de assuntar constituem um gesto de resistência ao provável e às reivindicações de totalização das modalidades enunciativas que se impõe “em nome da Ciência”, evocando uma posição de transcendência que, segundo essa lógica, apenas poderia ser ocupada de modo legítimo por Deus.

O pensamento ecológico é enunciado por uma modalidade discursiva antidelocutiva. A partícula enunciativa “dizem que” é tanto um agenciamento do humor quanto da precaução. Ao mesmo tempo em que essa partícula debocha ou zomba dos enunciados que se impõem como palavras de ordem, destituindo-os da respeitabilidade ou autoridade que reivindicam, cuida-se para, com ela, explicitar o artifício da enunciação de maneira a lidar com o perigo de modo mediado. O uso do artifício da antidelocução no discurso é parte do que Deleuze e Guattari chamaram de usos menores da língua, que transmuta a palavra de ordem e a coloca em variação contínua. Antes de se preocupar em localizar um sujeito para o enunciado, o discurso indireto com sujeito indeterminado introduzido por essa partícula é agenciado para despojar o sujeito do enunciado anterior de capacidades especiais ou pretensões de superioridade ou, ainda, torná-lo irrelevante. A eficácia política das operações do ‘dizem que’ ou ‘diz que’ consiste em desmontar outro tipo de enunciado que pretende alçar prerrogativas de um fato, uma unidade enunciativa tomada de modo independente do artifício da linguagem.

Essa partícula desarma as ciladas dos enunciados totalitários, que não apenas os meteorologistas e ambientalistas costumam manejar, mas que, de modo geral, são eficazes em um meio que concede prerrogativas aos enunciados científicos ou àqueles que se impõem “em nome da Ciência”. Ao descrever etnograficamente a produção dos enunciados científicos, Latour e Woolgar (1997) mostram como eles alçam o estatuto de fatos na medida em que se eliminam as marcas do processo de criação, os aparelhos, instrumentos e outras formas de inscrição e registro que os fazem existir[22].Enquanto na prática científica de produção de enunciados o artifício é mascarado para que o enunciado se apresente como um fato que existe por si próprio, os enunciados antidelocutivos, ao contrário, explicitam o artifício da própria enunciação. As expressões ‘dizem que’ e ‘eu me acho’, mobilizadas no momento em que se assunta ou se adivinha, preconizam a redundância da marcação do sujeito do enunciado, torna o artifício da enunciação aparente e obvia a unidade do enunciado tomado como um fato do mundo, independente da ação enunciativa humana.

Ao obviar ou colapsar os enunciados soltos que são articulados pela fala dos radialistas e meteorologistas como fatos ou declarações autorreferidas, o “dizem que” recoloca a voz humana no enunciado que é divulgado como se tivesse sido emitido de uma posição transcendente.

Os enunciados não criam um mundo unificado, cada enunciado articula um meio específico no qual se arrisca. A incerteza não recai sobre alguns enunciados “não científicos” ou “não comprovados”, mas sobre a possibilidade de enunciação. Não se trata de uma questão de verdade ou de comprovação do que se diz, mas de modalidades de enunciação que consideram ou não a importância do artifício. A enunciação é sempre incerta, é uma arte de conexões parciais com um meio instável, seja o astro do tempo, seja o conjunto da mudança de Era. Tudo pode ser considerado e não apenas o que se impõe como fato comprovado. Os enunciados existem na variação e não na estabilidade ou na totalização de um significado unívoco. A enunciação também é investida de cuidados porque é uma ação no mundo que pode afetar um estado de coisas e influir no curso dos fenômenos. É considerado um procedimento de flagrante falta de cautela tomar os enunciados como proposições neutras, lançados em um meio inócuo e que apenas se acrescentariam ao “real”.

Esse modo de lidar com o enunciado e com a prática de enunciação não constitui uma declaração niilista que reduz as possibilidades enunciativas a uma questão de opinião. Diferentemente da doxa, do bom-senso ou do senso comum, as enunciações são parciais e irredutíveis a generalizações, pois seu sentido se completa no meio com o qual elas compõem.

A arte de assuntar constitui, portanto, um modo mediado de lidar com articulações complexas nomeadas como mudança de Era, considerando uma multiplicidade de agenciamentos possíveis que inclui as transições sobrenaturais. Especialmente nos momentos em que se defronta com assunto tão pesado, a enunciação precisa lidar explicitamente com seus artifícios.

Inquirir a mudança de Era com precaução e humor constitui uma exigência das práticas de conhecimento da adivinhação. Ao considerar o Mistério, uma transcendência implacável, em seu pensamento ecológico, os quilombolas da Malhada se tornam capazes de resistir não apenas aos apelos dos enunciados totalizantes manejados “em nome da Ciência”, mas também às reivindicações de legitimidade das ações de controle das empresas sobre a “natureza”, uma totalização com a qual buscam respaldar sua dominância política e autoridade técnico-científica.

Esse pensamento ecológico é a política do meio que se articula no afrontamento com os limites da Era e, no horizonte de possibilidades, com o fim do mundo. A articulação ecológica quilombola não está desassociada de um modo particular de enunciação. O perigo e os sinais sutis constituem a matéria com que as artes de assuntar e de adivinhar lidam.

Não estamos diante de acessos diferenciais ao “real”, ao fato da crise ecológica ou do fim do mundo, mas sim de uma modalidade de enunciação que explicita o artifício e lida com ele e de outra que, apesar de se servir de artifícios e mediações técnicas, mascara-os para que o enunciado circule como um fato.

Assuntando e adivinhando, os quilombolas dos gerais de Caetité reconhecem os sinais de várias alterações climáticas e ambientais nomeadas como “mudança de Era”, com o cuidado de não ofender o astro do tempo e o Mistério e sem subestimar seu caráter sobre-humano. Essa articulação ecológica, que propicia o fluxo criativo da vida, está na iminência de ser bloqueada por outra articulação ecológica complexa, que os quilombolas nomeiam como Mudança de Era, que inclui as energias: o agenciamento venenoso da Urana e a reivindicação de controle sobre o espaço e a paisagem da Eólica, respaldados pela ação do Estado indiferente a essas alterações climáticas e ambientais.


 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 20/07/2015

Aceito em: 25/07/2015


[1] Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ), professora da Universidade Federal de Goiás (UFG).

[2] A comunidade Quilombo de Malhada está localizada no distrito de Maniaçu, a noroeste do município, na faixa limítrofe com o município de Livramento de Nossa Senhora. É um ponto de articulação entre as comunidades quilombolas dos dois municípios. Ao longo da mobilização política contra as apropriações de terra por empresas de energia eólica, a Malhada foi se consolidando como um ponto de concentração dessa luta. A Malhada é também a menor das comunidades, com aproximadamente 37 famílias, quando em outras comunidades o número de famílias é o dobro. Desde 2005, as comunidades negras, como Malhada, Lagoa do Mato, Vereda do Cais, Contendas, Sapé, iniciaram o processo de autorreconhecimento quilombola na Fundação Cultural Palmares. Em 2013, parte desses processos foram finalizados e as associações de pequenos agricultores foram renomeadas como associações quilombolas, com estatuto próprio. Até o momento, a comunidade de Malhada e de Vereda dos Cais deram início ao processo de titulação do território.

[3] O ‘astro do tempo’ não se refere a corpos celestes, mas a um estado do firmamento que define as condições atmosféricas de pressão e de temperatura.

[4] O ‘fluxo da criação’ é uma formulação que proponho para tornar inteligível um agenciamento divino que perpassa as formas vivas e com o qual os quilombolas lidam em suas ações produtivas ou criativas. A ação humana é criativa não em si mesma, mas na medida em que se combina favoravelmente com o ‘fluxo da criação’, cuja causa última é Deus. Alguns usos analógicos da palavra criar e criação são semelhantes àqueles que normalmente fazemos dessa palavra. No entanto, essa acepção nativa ressalta seu aspecto produtivo e vital, que atravessa vários campos de significação. As pessoas vivenciam a ação produtiva como uma composição ou relação com o ‘fluxo da criação’ (VIEIRA, 2015).

[5] Caetité localiza-se na encosta da Serra do Espinhaço, em uma região conhecida como Serra Geral. O município situa-se na faixa do Semiárido baiano, com áreas de elevadas altitudes.

[6] Alto Sertão é um termo recorrente na literatura historiográfica e, geralmente, é evocado para identificar uma ampla região onde se localiza Caetité. Essa denominação remete à formação territorial do período colonial e toma como referência mais constante a Serra do Espinhaço, mas as localidades que o termo abarca são variáveis.

[7]Urana” é o nome pelo qual os camponeses e quilombolas se referem à empresa pública que explora urânio radioativo, de modo a ressaltar seu modo de ação. O elemento urânio e a empresa são condensados na mesma palavra. E “Eólica” é modo genérico de se referir às várias empresas de construção de aerogeradores responsáveis pela implantação de parques eólicos nas serras de Caetité.

[8] Aqui, sirvo-me da proposta de Stengers (2009, 2006), de uma ecologia das práticas. Ao considerar as práticas e os praticantes em sua heterogeneidade, aquilo que importa e é constitutivo para eles é justamente o que os faz divergir. O que importa para os quilombolas da Malhada é o potencial criativo dos seres e o controle próprio sobre as condições de criação da vida naquele lugar. É nesse ponto que a articulação ecológica da Malhada diverge em relação à articulação ecológica capitalista antevista a partir da instalação das empresas.

[9] Uma variante das narrativas do fim do mundo, para utilizar os parâmetros da reflexão de Danowski e Viveiros de Castro (2014), que apresenta uma paisagem distópica de humanos sem mundo. Os sinais do fim do mundo, na profecia citada por Leonilda, antecipam a perda progressiva da capacidade dos humanos de criar e de cocriar a vida e um cenário em que os animais desaparecem e os humanos são apenas capazes de acender uma fogueira, signo da criação artificial e não viva.

[10] Sem se referir ao beato, Isau replica um fragmento da profecia atribuída a Antônio Conselheiro “em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho”, reportada de pequenos cadernos encontrados em Canudos por Euclides da Cunha (2010, p. 174).

[11] Como tomar medicamentos era um hábito relativamente recente ali, momentos da vida como o sono ainda não tinham sido medicalizados.

[12] As crises mais detalhadamente narradas foram a de 1932 e 1939. Os quilombolas descreviam um tempo de calamidade vivido por seus pais e avós, em que as lavouras de mandioca foram inteiramente perdidas com o atraso das chuvas e a criação de animais minguava dia a dia. Os animais de caça, sobretudo pássaros, também desapareciam.

[13] Há alternâncias entre fartura e escassez, contudo, elas são redistribuídas de forma distinta ao longo dos anos. Fartura e escassez não caracterizam um tempo ou uma época como um bloco. O tempo de hoje é um tempo de fartura de artigos comercializados, mas, ao mesmo tempo, de escassez de mantimentos produzidos nas roças. É difícil definir o significado dessa Era que se adivinha como um tempo de fartura ou escassez, porque os sentidos dessas noções encontram-se inteiramente modificados.

[14] Acontecimento é um conjunto de singularidades virtuais que se atualiza apenas em parte. Deleuze (2007) caracteriza o acontecimento como coextensivo ao devir e à linguagem, pois ele necessita da linguagem para ser expresso. Acompanhando a interpretação de Zourabichvili, o acontecimento recorta transversalmente a dualidade entre proposição e estado de coisa, pois, ao mesmo tempo em que é exprimível através da linguagem, é um atributo do estado de coisas. “O acontecimento é inseparavelmente o sentido das frases e o devir do mundo; é o que, do mundo, deixa-se envolver na linguagem e permite que funcione.” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 7). O acontecimento não é um efeito da percepção individual porque é anterior à individualização e ao sujeito. No entanto, a analogia entre a concepção da mudança de Era e aquela do fim do mundo, do modo como é articulada pelos quilombolas da Malhada, e o conceito de acontecimento encontra seus limites justamente no ponto em que o pensamento quilombola se fundamenta na suposição de um Mistério transcendental. Desse modo, esses “acontecimentos” não são alcançáveis inteiramente pelo entendimento humano, por seu caráter virtual mas também transcendental.

[15] Entendo, aqui, o sobrenatural como Viveiros de Castro (2008, p. 298) o descreve: “aquilo que quase acontece no nosso mundo, ou melhor, ao nosso mundo”.

[16] Taddei (2014) também observa, entre os profetas da chuva do sertão do Ceará, que a relação de seus interlocutores com os sinais não é apenas semiótica. A conexão que eles estabelecem com os fluxos cósmicos atmosféricos é da ordem do que o autor chama de “viceração”, uma experiência compartilhada entre seres humanos, animais e plantas, em cujos corpos os sinais se manifestam. Apesar de esse esquema teórico lidar com os sinais como um regime de signos que não se reduz a uma semiótica significante, tenho a impressão de que o argumento da “viceração” enterra os sinais na profundeza dos corpos, tomando-os como afecções. Meu esforço aqui é tomar a prática da adivinhação como um modo mediado de lidar com os sinais enquanto atualizações parciais de fenômenos que ultrapassam enormemente a experiência dos seres, como um modo de conhecimento intuitivo ou visceral. De fato, muitos sinais são sentidos como afecções dos fenômenos da atmosfera sobre os corpos. Contudo, penso ser necessário considerá-los dentro do agenciamento enunciativo da adivinhação, que se oferece como um agenciamento de superfície onde se passa a criação de sentido, tangenciando os fenômenos incomensuráveis e seus efeitos corporais.

[17] Por adivinhação, refiro-me de modo genérico à prática de adivinhar como um modo de conhecer cotidiano. O tema da adivinhação recebeu maior consideração em outro trabalho (VIEIRA, 2015), no qual trato das adivinhações que se referem a eventos do cotidiano da comunidade. A adivinhação é um exercício constante e um estilo de criatividade marcante na comunidade Quilombo de Malhada. Rastros, ruídos e outros sinais compõem os elementos da adivinhação. Uma chuva forte e repentina é sinal de que morreu um velho ou um pai ou mãe de família. Através do canto de algumas aves noturnas, como corujas, antecipa-se o advento de uma possível doença e torna-se mais vigilante com relação às técnicas de proteção. Um beija-flor dentro de casa é sinal de que chegará uma visita, entre vários outros sinais. Muito embora esse modo particular de agenciar sinais através do exercício da adivinhação esteja difundido em várias ações e eventos corriqueiros, neste artigo enfoco uma modalidade específica dessa prática que se conecta às alterações climáticas e atmosféricas reunidas sob a constatação da Mudança de Era.

[18] Nathan e Stengers (2004) comparam as práticas divinatórias yorubá e as práticas psicanalistas e destacam a multiplicidade ontológica do primeiro tipo de prática. Na prática divinatória, não é considerada uma pessoa sozinha que age ou duas que se comunicam, médico e paciente, como no caso do diagnóstico, mas uma multiplicidade atuante no processo. Essa comparação esboçada entre a prática divinatória e a prática do diagnóstico fornece alguns parâmetros para comparar as práticas da adivinhação e da previsão.

[19] A desqualificação, como procedimento que diferencia as ciências modernas (STENGERS, 2002), também parece ser eficaz em um universo único que não se abre para os possíveis. As formas de determinismos e fatalismos constituem expressões estritas desse mundo único. Talvez, por isso, como veremos a seguir, a palavra do meteorologista tenha pouca eficácia nesse meio de mundos múltiplos.

[20] O sentido da designação nativa “sabido” é investido de ironia. O sabido ou o estudado se respalda na posse das informações da leitura, com base nas quais reivindica uma posição superior. Ele confia tanto no conhecimento adquirido através da leitura e da escola que se julga invulnerável, e perde a capacidade de compor com as situações e de aprender com outras pessoas. Esse tema é desenvolvido com mais detalhes em outro momento (VIEIRA, 2015).

[21] Naquele ano, a seca foi especialmente intensa em toda região do Semiárido. Na Bahia, segundo avaliação da Companhia de Engenharia Ambiental e Recursos Hídricos da Bahia, a seca de 2012 era comparável à seca de 1965, uma das mais críticas já registradas. Desde o mês de abril, a prefeitura de Caetité já havia declarado estado de emergência.

[22] O fato científico, produzido ao final dos processos de inscrição e enunciação, distingue-se de outros tipos de enunciados, conforme caracterizam Latour e Woolgar (1997, p. 33), por “não [estar] mais acompanhado por qualquer outro enunciado que modifique a sua natureza”.

O Astro do Tempo e o fim da Era: a crise ecológica e a arte de assuntar entre os quilombolas do Alto Sertão da Bahia


Suzane de Alencar Vieira[1]


RESUMO: Este artigo acompanha as especulações dos quilombolas de Caetité-BA a respeito de mudanças ecológicas em diferentes escalas e proporções e a partir da constatação da Mudança de Era. As pessoas da comunidade Quilombo de Malhada sustentam que a Era mudou ou está mudando ao observar alterações e afecções do astro do tempo, dos estados do planeta, da capacidade criativa dos seres. Sob o signo da mudança de Era, as pessoas, os animais, as plantas, a terra e a água vão alterando seu potencial criativo. O pensamento ecológico quilombola se defronta com a mudança de Era e, no limite, com a possibilidade do fim do mundo. Esse esforço especulativo é articulado e ponderado por uma arte de assuntar, uma prática de conhecimento caracterizada pela precaução e por um modo de enunciação que agencia sinais de modo a compor o sentido das mudanças ecológicas. A arte de assuntar constitui uma modalidade enunciativa e um modo de conhecer singular que se distingue de outros agenciamentos como a profecia e a previsão.

PALAVRAS-CHAVE: Crise ecológica. Seca. Práticas de conhecimento. Comunidades quilombolas. Alto Sertão da Bahia.

 

The Astro of Time and the end of the Age: the ecological crisis and the art of assuntar between the maroons of the Alto Sertão da Bahia

 

ABSTRACT: This article follows speculations of maroons from Caetité-BA about ecological changes at different scales and proportions, based on the statement of the Change of Era. People assert that Era has changed or it is changing observing astro do tempo (atmosphere) transformations, and the decrease of creative capacity of humans and non-humans. The Marron ecological thinking is faced with a change of Era and, ultimately, with the possibility of the end of the world. This speculative thinking is linked to an art of assuntar (to pay attention), a practical knowledge characterized by precaution and a mode of enunciation that assemble signals and aims create a meaning of ecological changes. Art of pay attention involves enunciative modalities and a singular mode of knowledge that differ from others assemblages like prophecy as the forecast.

KEYWORDS: Ecological crisis. Drought. Knowledge practices. Marron communities. Alto Sertão (outback) of Bahia.