Midas
Título: Midas
Autor: Armando Queiroz
“Depois de morto, roubaram-lhe a dentadura. Eis o nosso rei destronado, devolvido à sua solidão, fraco e pobre como o mais fraco e mais pobre dos seres.”
Comentário sobre o personagem Boca de Ouro,
da peça homônima de Nelson Rodrigues. [1]
Miséria, hanseníase e abandono espreitam Serra Pelada quase trinta anos depois do início da ‘febre do ouro’. Restaram casebres abandonados, pessoas perambulando, quais mortos-vivos, numa cidade fantasma ao redor de um grande lago contaminado de mercúrio, o oco. Restaram velhos aposentados, mulheres e a prostituição infantil. O índice de HIV é altíssimo. O gigante ameaçador, percebido no clima tenso do local, está presente a todo o momento. O gigante quer terra, o gigante quer expulsão, o gigante tem papéis e advogados, o gigante tem anuência do poder constituído. O garimpeiro tem apenas uma amarfanhada carteirinha de autorização para exploração de minério, e muita tristeza da sua atual situação. O garimpeiro tem ao lado de si muitas cooperativas, nem todas bem intencionadas.
Muitos não deixam o local simplesmente por vergonha, não teriam condição de encarar seus familiares tantos anos depois, sem nada nas mãos. É regra geral ouvir que saíram sempre pior do que chegaram. Dos poucos que ainda exploram o minério, pouca ou nenhuma esperança. O olhar vago de um gaúcho à espera de um hipotético sócio – com dois meses de máquinas paradas –, e de um também hipotético veio riquíssimo debaixo de poucos metros de rocha maciça, diz tudo.
Noventa mil homens, como insetos de uma gigante colônia a céu aberto, tiveram a capacidade de revolver inteiramente uma montanha! A montanha foi a Maomé! A montanha curvou-se ao desejo e a cobiça: cobiça, mãe-rainha desta colônia iracunda, deusa filicida. Rabos de dinheiro, viagens de ‘teco-teco’[2] onde o passageiro era apenas um chapéu prosaicamente esquecido. Mulheres, cachaça e muita coragem. ‘Bamburrar’[3] foi para poucos, manter a fortuna para pouquíssimos. Muita morte para que a montanha mantivesse suas vísceras à mostra. Reza a lenda dos garimpos que “montanha que não é banhada por sangue, ouro não brota”.
Muita expectativa, pouca esperança. É comum a todos que vão a Serra Pelada perceber que aquele é um momento especial, algo de positivo irá acontecer brevemente, vã expectativa! Tudo retorna ao mesmo lugar: o lugar da espera, da desesperança. Como tatus cegos que fuçam incessantemente a terra, estes homens não abandonam o sonho do ouro. Aquela cava submersa é ainda o jardim de rosas onde Midas acolheu o velho sátiro Sileno, mestre e pai de Ovídio.
Armando Queiroz, 2010.
[1] Comentário sobre a peça de Nelson Rodrigues disponível no site Olhar Literário. Disponível em: http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/ Contemporanea/Nelson_Rodrigues_O_Boca_de_Ouro_resumo.htm. Acesso em: 10 dez. 2010.
[2] Avião de pequeno porte, que possui apenas um motor, e muito usado para pequenos trajetos. Foi bastante utilizado em Serra Pelada: “A pista improvisada no cabo de enxada era apenas uma tênue nesga de terra rasgada no meio da mata, quase sempre escondida pela chuva, a neblina ou a poeira. Cercada por morros, era também a principal e única rua do garimpo, vivia coalhada de gente. Descer lá sem problemas era como acertar sozinho na loto” (KOTSCHO, 2008).
[3] Bamburrar: ficar rico. Por extensão, bamburrado: aquele que encontra muito ouro, fica rico nos garimpos.
Armando Queiroz nasceu em Belém do Pará em 1968. Sua produção artística abrange desde objetos diminutos até obras em grande escala e intervenções urbanas. Detém-se conceitualmente às questões sociais, políticas, patrimoniais e as questões relacionadas à arte e a vida. Cria a partir de observações do cotidiano das ruas, apropria-se de objetos populares de várias procedências, tem como referência a cidade e o Outro. Foi contemplado com a bolsa de pesquisa em arte do Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas 2009-2010. Em 2010, recebeu Sala Especial no 29º Arte Pará como artista homenageado do salão. Em 2011, participa da 16ª Bienal de Cerveira (Portugal) e da III Bienal do Fim do Mundo, Ushuaia (Argentina). Em 2012, é artista convidado do 64º Salão Paranaense. Em 2013, participa da XX Bienal Internacional de Curitiba. Em 2014, participa da 31ª Bienal de São Paulo. Vive e trabalha entre Belém e Belo Horizonte.